domingo, abril 08, 2007

7 Poemas para Carlos Paredes

As Palavras Possíveis*
É preciso pararmos um momento a ouvir o silêncio. Nesse espaço povoado, teremos de saber marcar encontro com as coisas maiores, vestirmos lenta e suavemente cada uma das palavras escutadas, os sons corporizados de alguns mistérios, a inquietação e a paz do reencontro com as formas mais elevadas da criação artística.
De um lado um poeta, voz contida e atormentada na incessante busca da exactidão, cinzelando, palavra a palavra, em crescimento com e contra o silêncio e as sombras, o poema, corpo definitivo para a vivificante fruição do prazer.
Do outro, uma guitarra geracional e ímpar, corpo intemporal em gritos de um sonambulismo vigil, inquieta respiração do génio que fulgurava na lira de Orfeu.
Humanizados, fundem-se num tempo único a voz do poeta e os acordes multiformes da guitarra, ganham dimensão e elevam-se ao mais alto patamar do refazer ontológico, batem contra o tempo, revelam-se no refinamento solitário e nu, cingidos à própria realidade. É o Homem revelado, messias de todas as esperanças redentoras, porque só os que encontram a Arte podem ser redimidos.
Felizes os que sabem ouvir os choros que pela noite ferem os momentos e ficam sentados à porta do sonho, com a luz em sofrimento , presos dos mistérios e silêncios, a ouvir uma guitarra sobre o pranto.
Não uma guitarra qualquer, um qualquer dedilhar trilhado de melancolias de noites de suor e bafio, de desencontros amorosos, de jogo de cartas marcadas nas esquinas suspeitas da noite.
Mas a outra, a que ganhou um outro corpo e outra voz para subir em noites estelares às janelas de todo o desassossego, a guitarra de Coimbra, com outros olhares, outros sorrisos, pauta multímoda de signos e registos cromáticos projectados contra o tempo e o silêncio, Artur guardando ciosamente o Graal das harmonias universais.
Herdeiro do génio, reinventando todos os possíveis, Carlos, com asas nos dedos, leva definitivamente o ouro e o mistério da criação ao altar supremo da Arte, numa forma singular de nos fazer ouvir a reinvenção da guitarra, corpo onde acordam sonoridades coimbrãs metamorfoseadas em refinamento aristocrático de um universalismo sem tempo e sem lugar.
Desta dinastia dos Paredes, Artur e Carlos, príncipes desse reino poderoso e tangencial ao absoluto da criação, há em Carlos uma voz outra, humaníssima e perscrutadora, que passa de leve nos corredores do sonho para com mãos de semeador chegar ao indizível dos sons, numa celebração de guitarra longínqua que toca por dentro dos muros as palavras esquecidas do Passado.
Quem não souber ouvir essas sonoridades, quem não souber transportá-las para dentro de si e guardá-las em celebração eucarística, ou nunca passou em Coimbra o tempo de todos os encantamentos ou tem a alma fechada à secreta beleza que viaja o interior das coisas superiores e íntimas. Em tal deserto, cairá irremediavelmente condenado ao dissonante vazio de não saber que existe e porque existe.
O que tento dizer-vos, do que vos falo, franzido de terror porque nada ou pouco se sabe dizer do que se sente, é de um objecto rigoroso de criação poética que sobrevive da inteligência e sensibilidade de Carlos Carranca, manifesto poético que parece edificado em meditações jansenistas, que não acolhe porém a mais leve concessão, por isso hipostasia a beleza como categoria estética e nos aproxima, como leitores, do culto particular e silencioso das mais elevadas concelebrações da liturgia sensorial e da meditação ascética:
Pela noite secreta um som nos liberta...
Senhora, nossa senhora Guitarra sedutora!
É a guitarra de Carlos Paredes, canto maternal que nos acolhe e chama, ancoradouro de todas as tormentas, inesgotável seio de todas as fomes, que o poeta nos oferece como quem reza os salmos de um destino português, bordão de peregrino, vidente e nosso, Pascoaes visionário a tanger os mistérios da nossa condição, ser povo e ser universal, com a missão de destinar ao mundo, nos sons impossíveis de um instrumento plebeu, a voz de um país por dedilhar, feito de memórias e viagens, que Carlos Carranca, na exactidão do poema, afastando névoas e esconjurando fantasmas, dimensiona à escala redentora, quinto império da voz de um povo no corpo-coração-encordoado e na boca circular de madrepérola, o braço encimado por uma lágrima de marfim, guitarra cúmplice, guitarra mulher possuída em êxtase murmurante.
Quebradas todas as grilhetas, solta gritos prometaicos que roubam o fogo sagrado da mesa dos deuses, liberta corcéis deprazer ou raiva, ou simplesmente derrama sorrisos tomados de brisas primaveris, também a Liberdade em manifesto gritado aos quatro ventos da utopia, guitarra cravo de Abril a convocar-nos para a festiva soberania do Povo, finalmente senhor do seu destino:
Ó guitarra lusitana!
Ó harpa das loucas correrias!
salgado mar das fantasias...
É a voz do Povo que te chama!
Redentora e fraternal,
és tu quem anuncia
a hora da alegria
de ser de novo
o Povo, o Rei de Portugal.
Sete poemas, um só poema, corpo saído da persistência cinzelada que percorre a poética de Carlos Carranca, palavras exactas no lugar exacto, que ficam dentro de nós e nos aguardam, nos guardam e se demoram para essa experência maior do saber viver e criar em cio, que, no dizer de Rilke, era o caminho a percorrer, o atingível a perseguir. Sete poemas, um poema, a ler e reler incessante, penosamente, porque nada vale a pena se é fácil. Se o belo é o difícil, como diz Platão, saibamos merecê-lo na busca da perfeição que percorre os poemas deste livro.
Figueiredo Sobral não ilustra os poemas. Não é um sublinhar, é um corpo-a-corpo. Anda com eles por dentro dos gestos e avança na harmonia das formas e das cores toda a complementaridade que torna o livro um objecto-manifesto de Beleza.
Descontem e esqueçam tudo o que vos disse. Não vim apresentar um livro. Vim presentear-me e se me permitirem presentear-vos com o gesto despretencioso de apontá-lo.
De um lado o discurso poético, do outro o discurso pictórico. Ligados como uma trança de mulher em sagração de Primavera.
Convido-vos para a valsa lenta que há-de demorar-se em nós como recordação teimosa que o tempo não pode apagar. Ouçam a guitarra desse génio evocado nos poemas, sintam-lhe o corpo apetecível revelado nas pinturas de Figueiredo Sobral.
Leiam e olhem demoradamente. Procurem de novo uma e outra vez. Cada objecto, na sua multiplicidade unificável, será sempre outro e sempre novo. Partilhem os poemas e as pinturas, rosa a rosa, demorem na boca o gosto de ambos, vinho e pão consagrados para a epifania dos sentidos, também para o recolhimento, para a plena fruição deste belo e raro objecto que é o livro-lareira em torno do qual aquecemos hoje as mãos e confortamos as almas, neste fraternal encontro com a Poesia, espectáculo de exactidão.
José Henrique Dias
(professor jubilado da U.N.L. e Presidente do Conselho Científico do Instituto Superior Miguel Torga)
* Na cerimónia da abertura das comemorações dos 25 anos do 25 de Abril (Óbidos – 1999) presidida pelo Senhor Presidente da República Dr. Jorge Sampaio.
Do Blog de Carlos Carranca, Neste lugar sem portas

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