sexta-feira, setembro 15, 2006

ANTÓNIO MENANO
(Fornos de Algodres, 05-05-1895; Lisboa, 11-09-1969)
Por José Anjos de Carvalho e António Manuel Nunes

I - Cintilações e Gorjeios de um “Rouxinol”
(Roteiro biográfico e artístico)
Natural de Fornos de Algodres, António Paulo Menano é um dos poucos divos cujo nome ornamenta em letras douradas a abóbada da “Capela Sistina” da Galáxia Sonora Coimbrã (conceito avançado por Vera Lúcia Vouga, “Na Galáxia Sonora: Sobre o Fado de Coimbra”, Porto, 1991, depois generalizado em ensaios de Armando Luís de Carvalho Homem).
Nascido nas faldas da Serra da Estrela, oriundo de uma família numerosa, António Menano é o mais conhecido e popular cantor de Fados de Coimbra do seu tempo e um dos “magníficos” da Década de Oiro. Era filho de António da Costa Menano e de Januária Augusta Paulo, domiciliados em Fornos de Algodres.
À semelhança de Augusto Hylario que em vida gerara uma autêntica onda de hilariomania, António Menano foi considerado o novo Hylario do primeiro terço do século XX. A sua voz, composições e reportório, originaram um fenómeno de menanomania ainda hoje difícil de avaliar. Além das digressões artísticas feitas um pouco por todo o Portugal continental, António Menano deslocou-se a Espanha, França e Alemanha como artista no activo. Foi ouvido por todo o Portugal continental, insular e ultramarino. A sua voz chegou ao Brasil e aos EUA.
Entre 1918-1925, antes do ciclo de gravação de discos de 78 rpm, o já amplo reportório musical impresso de António Menano era vendido em casas de música, quiosques, e no distante Brasil. O espectro reportorial mais popularizado de António Menano foi tocado por filarmónicas, tunas, grupinhos de liceais, operários fabris e meninas de famílias burguesas com instrução pianística. Por exemplo, Menano estava muito bem representado na fonoteca do teatro recreativo dos operários da Fábrica da Vista Alegre, em Ílhavo, pela década de 1930 (testemunho do maestro João Anjo em 2002). Apodado de o “Rouxinol do Mondego”, António Menano parecia ser o equivalente do Carlos Gardel à portuguesa, reunindo todas as condições para se transformar numa vedeta de alcance internacional.
Num volte-face difícil de explicar, e estando o artista no auge da fama e das solicitações, António Menano domiciliou-se com a família em Moçambique no ano de 1933. Seguiu-se o silêncio. A Medicina tinha triunfado sobre a Música. Nem participações no Rádio Clube de Moçambique, nem saraus nos círculos de antigos estudantes da UC radicados em Lourenço Marques, nem cumprimentos aos organismos académicos que se deslocavam em digressão a Moçambique. Na opinião dos antigos estudantes da UC domiciliados em Lourenço Marques, a responsável pelo “sequestro” artístico de António Menano seria a sua esposa, Henriqueta Menano que o teria pressionado a escolher entre o casamento e a carreira artística. Este pormenor da micro-história, sendo verídico, foi-nos confirmado pelo filho do cantor, Eng. António Nuno Menano.
António Menano nunca falou publicamente sobre os motivos familiares que estiveram na origem da sua retirada dos meios artísticos, quando tudo indicava que se movimentava com grande à vontade em campos como a cultura de rua (serenatas), a cultura de palco (espectáculos) e os salões animados pelas elites burguesas e aristocráticas. António Menano tinha jeito para os palcos, não se incomodando em interpretar qualquer tipo de reportório do agrado do público. Colaborou nas campanhas de marketing que rodearam a edição do seu reportório e com ele, a Canção de Coimbra ganhou o estatuto de mercadoria posicionada no circuito dos bens de consumo para as massas.
António Menano está tão intimamente ligado ao chamado Fado de Coimbra e este a ele que, na verdade, não se podem dissociar um do outro. Na opinião dos admiradores coevos, falar de António Menano é falar do Fado de Coimbra e da Década de Oiro (1920-1930), numa espécie de simbiose mística.
Segundo nos conta João Seabra em tom exaltado (“Revista Turismo”, Nº 56, de Jan/Fev de 1944), a lembrança e a saudade de Hilário foram esmorecendo com o tempo mas as guitarradas e os cantadores continuaram a ouvir-se no Mondego; um dia todos os rouxinóis se calaram para ouvir um outro que erguia mais alto os seus harmoniosos trinados, o estudante António Menano. Mais nos conta o autor citado que a recordação do seu nome trazia à memória a loucura que se apossou de Coimbra e, depois, de Lisboa e de todas as terras do país, para ouvirem a sua admirável voz de tenor. Diz-nos ainda que iam a Coimbra milhares de pessoas só para o ouvir cantar e que, em Lisboa, nalgumas festas em que participou, mesmo em recintos de grande lotação, como o Coliseu dos Recreios e o Jardim Zoológico, os bilhetes se esgotavam e a ansiedade para o ouvir era enorme, tendo-lhe sido prestadas ovações “como raras vezes se fizeram às maiores celebridades líricas”.
O Dr. João Falcato vai até mais longe e afirma que “essas ovações apoteóticas nunca se fizeram às maiores celebridades líricas” (in “Coimbra dos Doutores”, 1957, pág. 169). O médico Fernando da Silva Correia (1893-1960), contemporâneo e admirador de António Menano utilizou a figura do artista para construir o personagem do mavioso “Passarinho”, no romance de quilate literário menor “Vida Errada. O Romance de Coimbra”, 1ª edição de 1933 (outro inspirador foi Fausto de Almeida Frazão). A voz de António Menano gerou um imparável movimento de solicitações. Era procurado e visitado para ser ouvido por admiradores de ambos os sexos. Eram-lhe oferecidas letras para por em música, como aconteceu com a "Carta de Longe", uma encomenda que António de Sousa pretendia dedicar à esposa. Eram-lhe ofertadas composições para efeitos de estreia, como "Saudades", de Paulo de Sá, "Fado d'Anto", de Francisco Menano, D'Um Olhar, de Alexandre Rezende, e "Um Fado", de Varela Cid.
Tamanha e invulgar singularidade artística em nada confirma o lendário oral escrito por Paul Vernon em Março de 1995 no CD "António Menano (1927-1928). Fado's Archives V", London, Interstate Music Ltd, reeditado em Portugal pela Tradisom, sobretudo nas matérias que pretendem assacar ao cantor uma espécie de precocidade mozartiana. O facto de António Menano cantar fados desde criança e temas da CC, apenas corrobora que estava familiarizado com a guitarra e a CC através dos irmãos que tinham estudado em Coimbra, e que também conhecia fados no estilo de Lisboa provincialmente popularizados. Não poderia nunca ter composto o oitocentista "Fado da Severa" (atribuído a Sousa Casacão, sofrera impressão musical no séc. XIX), nem o "Fado Maria Victória" (maestro Alves Coelho), nem o "Fado Maria"="Fado Manassés" (Manassés de Lacerda), como também não protagonizou a passagem da CC do século XIX para o século XX com a adopção generalizada do compasso quaternário nas monodias estróficas (fenómeno que teve por figura central Manassés de Lacerda).
Os chamados “irmãos Menanos” constituíram a mais famosa e fecunda plêiade de artistas que passou por Coimbra entre finais do século XIX e o crepúsculo do primeiro quartel do século XX. José Paulo Menano e Paulo da Costa Menano (1881-1960), ambos formados em Direito, em 1901 e 1903 respectivamente, notabilizaram-se em récitas e outras actividades artísticas. Tocavam guitarra em afinação natural. Francisco Paulo Menano (1888-1970), chegado ao Liceu de Coimbra em 1905, formado em Direito no ano de 1912, colaborou na parte musical do rancho promotor das Fogueiras de São João activo no Largo de São João de Almedina (Largo do Museu Machado de Castro), foi 2º tenor e ensaiador do Orfeon de António Joyce, guitarrista, compositor amador e recolector de canções populares destinadas ao Orfeon Académico e Orfeon da Figueira da Foz. Após a formatura estabeleceu-se por alguns anos na Figueira da Foz, mas continuou a participar com regularidade em eventos ligados a Coimbra, nos quais iam aparecendo António Menano, Agostinho Fontes e Paulo de Sá.
Horácio Paulo Menano (1890-1972?), formado em Filosofia (1912) e Medicina (1915), destacou-se como cantor e executante de guitarra em afinação natural. Andaram ainda em Coimbra Abel Menano e Alberto Menano (formado em Direito no ano de 1919-1920), discretos tocadores de guitarra. À semelhança de seus irmãos, António Menano sabia dedilhar em guitarra afinada pelo natural os acordes básicos de acompanhamento do canto. Possuía guitarra e nas serenatas espontâneas costumava cantar e acompanhar-se, prática confirmada por testemunhos oculares (testemunhos prestados por Jorge “Xabregas” e José de Almeida Borges).
Quando António Menano se matriculou na Faculdade de Medicina da UC em Outubro de 1914, seu irmão Francisco já se encontrava formado em Direito e a trabalhar como jurista na Figueira da Foz. O apadrinhamento do jovem cantor caberia a Paulo de Sá, guitarrista que trabalhou como notário em Coimbra até 1919. Paulo de Sá compusera recentemente o tema “Saudades” (Saudades são orações), com letra de Alfredo Fernandes Martins, dedicando-o ao seu jovem afilhado que se estreou na melodia de Capa e Batina, num jeito muito peculiar que consistia em colocar os dois dedos polegares nos bolsos do colete (testemunho de José Archer de Carvalho). E o tema logo fez sucesso, pois em 1915 a Livraria Neves fez sair uma 2ª edição cuja tiragem se abeirou do “3º milhar”.
A escola vocal seguida por António Menano não seria, contudo, um mero repisar dos ensinamentos colhidos em mentores como Paulo de Sá, Francisco Menano e Agostinho Fontes. Muito rapidamente, fruto de sensibilidade própria e da continuada presença no Orfeon Elias de Aguiar, António Menano definiu um estilo vocal interpretativo diferente do consagrado no meio estudantil pela “Escola à Manassés”. Simultaneamente, distanciou-se das práticas vocais em usança na cultura popular local, preservadas nos discos dos Irmãos Caetanos. Aproveitando a herança da vocalização ariosa e dos prolongamentos de ais neumáticos ad libitum, Menano apostou sobretudo no forte contraste entre crescendos agudos e prolongamentos em pianíssimo. As frases passaram a ser entoadas com sentimentalidade muito vincada, coloridas com plangentes ultra-românticos. O cantor mostrou-se muito cuidadoso com a acentuação das sílabas tónicas e na adopção da fonética coimbrã, evitando desagradáveis efeitos auditivos. Amigo e companheiro de deambulações de António Menano, Mário Machado destaca-lhe os “pianíssimos impressionantes”, as “rápidas e perfeitas transições de frases” (Cf. Mário Machado”, “O Rouxinol do Mondego”, Rua Larga, Nº 42, 12 de Julho de 1960), em alusão a uma técnica vocal a que não seriam alheios os treinos orfeónicos implementados por Elias de Aguiar e a audição atenta da imensa discografia de Caruso.
A imagem de António Menano como "menino prodígio" ou "cantor génio" constitui um eco tardio de uma crença típica do Romantismo do século XIX. O Ballet Romântico tinha vivido um processo de refinamento virtuosístico, assente no treino codificado dos movimentos, na coreografia dos "grandes temas" e na introdução do trabalho de pontas que conferia às bailarinas titulares uma sugestão de voo sobre os tablados. A ópera tivera as suas divas e a execução pianística atingira exageros dificilmente superáveis. Menano congregava alguns desses predicados românticos: tenor extenso, versatilidade interpretativa, timbre cativante, bom ouvido, sentido de ritmo e de palco.
Quando António Menano se começa a afirmar em Coimbra, a pintura, a escultura, a poesia, o ballet e a música erudita, estavam a viver complicados processos de ruptura em relação aos códigos estéticos tradicionais, apontando para trilhos alinhados pela primeira grande ofensiva modernista do século XX. Embora praticada por elites letradas, a CC mantinha-se totalmente alheia às interpelações estéticas formuladas pelas várias artes do tempo, por um lado devido ao esmagador peso das representações ultra-românticas, por outro devido à condição de marginalidade que a vinha a situar no campo das chamadas "artes menores".
António Menano era dono de uma voz extensa, segura, geradora de enorme comoção pública. Composições como "Fado Hylario Moderno" e "Fado do Choupal" permitiam a António Menano proezas vocais consideradas inauditas. Os agudíssimos ais podem ser vistos como o equivalente local do dançar em pontas, das notas das sopranos líricas que partiam vidros, ou dos insuperáveis galopes de Franz Liszt sobre os teclados dos pianos. O pendor estrófico de grande parte do seu reportório de serenateiro permitia fenómenos rápidos e eficazes de empatia entre o cantor e o grande público. No final de um sarau realizado em Coimbra ou num qualquer outro palco regional, o público vinha para a rua assobiar as melodias mais aplaudidas de António Menano. O cantor poderia ter seguido carreira nos grandes palcos ocidentais da música clássica, à semelhança de Tomás Alcaide.
Paulo de Sá afirmou-se um grande apreciador do estilo António Menano e sofreu um enorme desgosto pelo facto de não ter gravado discos com o cantor no final da década de 1920. Já Francisco Menano, fiel ao “estilo Manassés”, na década de 1960 continuava a arreliar-se com o irmão, dizendo-lhe “Não é assim António!” A António Menano se deve a instauração de uma nova “escola de canto” em Coimbra, a Escola Ultra-Romântica, depois seguida por cantores como José Paradela de Oliveira, Lucas Rodrigues Junot e até Armando Goes.
António Menano viu despontar a sua estrela em Fevereiro de 1915, numa homenagem promovida a António Nobre pela revista “A Galera”. Francisco Menano compôs especificamente para esse acto o “Fado d’Anto”, tendo ido a Coimbra acompanhar o tema à guitarra na voz de seu irmão António Menano. Outro momento alto de “revelação” teve lugar em Março de 1915, caloiro ainda, quando cantou reportório de serenata em Aveiro, acompanhado à guitarra por seu irmão Horácio, então quintanista de Medicina, num sarau organizado pela AAC, com a participação da TAUC e do Orfeon. Foi nesse ano lectivo que se procedeu à reorganização do Orfeon Académico, agora sob a regência do Padre Dr. Elias Luís de Aguiar e onde António Menano se tornou solista e ensaiador do naipe dos primeiros tenores, passando também a cantor “titular” de fados e canções nos saraus e noutros espectáculos e actividades que se realizavam.
No final do referido ano lectivo, em 10 de Junho de 1915, na festa de homenagem a Luís de Camões promovida pelos alunos do Liceu José Falcão, de Coimbra, António Menano foi convidado a participar e, em vez dos habituais fados, apareceu a cantar um trecho de “Os Lusíadas”, que fora musicado pelo Dr. Elias de Aguiar.
É também em 1915 que surgem, numa primeira edição musical publicada pela Livraria Neves, à Rua Larga, duas composições da autoria de António Menano. Essa publicação, intitulada “Os Três Mais Lindos Fados de Coimbra”, compreendia D’um Olhar (As meninas dos meus olhos), de Alexandre de Rezende, dedicado “Ao António Menano”, com três quadras populares, sendo os outros dois fados do próprio António Menano: o Fado das Morenas (Todos gostam das morenas), dedicado “Ao Estevão Neto”, com uma quadra de Ribeiro de Carvalho e três outras de Fernando Correia, e o Fado da Noite (Há quem diga que quem chora), dedicado “Ao J. Gambôa”, com cinco quadras de Alfredo Fernandes Martins, o Fernandes Martins que frequentava Direito e que em 25 de Novembro de 1920 foi um dos protagonistas da “Tomada da Bastilha”.
No ano lectivo seguinte, 1915-1916, em Fevereiro, na excursão do Orfeon Académico ao Porto, Braga e Vila do Conde, António Menano consagra-se definitivamente como estrela de primeira grandeza do meio artístico coimbrão, acompanhado à guitarra por Paulo e Sá e Alberto Menano.
Os anos de 1917, 1918 e 1919 constituem um período relativamente morno em termos de Fados e Guitarradas, contribuindo em parte para isso a entrada de Portugal na Grande Guerra – a Alemanha declara guerra a Portugal em 16 de Março de 1916, inicia-se a mobilização militar e a constituição do Corpo Expedicionário Português (CEP) e, no princípio de 1917, começam os primeiros embarques de tropas portuguesas para a Flandres.
O reportório interpretado por Menano reflecte a comoção nacional provocada pelo conflito e os efeitos da propaganda governamental em curso. Surge o “Fado Patriótico”, com letra de pendor guerreiro e pró-nacionalista assinada por Alfredo Fernandes Martins. Porém, não tendo a produção coimbrã um filão narrativo apto a “noticiar” os acontecimentos da Grande Guerra, António Menano optou por cantar e mais tarde gravar fados de Lisboa que abordavam especificamente a Batalha de La Lys (09/04/1918), os mutilados e conceitos como a bravura e o heroísmo.
Outro motivo que originou um arrefecimento temporário no interior da Galáxia Sonora Coimbrã foi o artigo de Manuel da Silva Gaio (1860-1934), ao tempo Secretário da UC, publicado na «Illustração Portugueza» de 29/04/1918, pedindo aos estudantes para não cantarem o «venenoso cogumelo do fado, produto originário da viela urbana» e, em vez disso, entoarem as cantigas populares do Orfeon. Silva Gaio não era visto como um alivitrista coerente, pois na década de 1890 assinara letras para melodias serenateiras, como a “Canção do Mondego” , de Alexandre Rey Colaço (Vendo correr-te o pranto) que entre 1894 e os inícios do século XX atingiu pelo menos a 16ª edição e foi distribuída em Portugal e no Brasil.
Os ruidosos protestos traduziam ecos de um mal-estar que se arrastava. Era a polémica Pró-Fado/Anti-Fado que vinha a mobilizar as elites letradas portuguesas, cujos arautos mais esforçados sobrepunham argumentos ideológicos ao debate meramente musicológico. Contextualizando a questão em termos simples, os letrados que produziam a cultura escrita do tempo e alimentavam as discussões mais actualizadas, não distinguiam entre Fado e Canção de Coimbra. No entanto, o pomo da discórdia residia na representação do Fado como uma espécie de tumor social citadino que importaria remover rapidamente para que não contaminasse a sociedade. As elites aconselhavam o uso do folclore rural como matriz inspiradora e redentora das energias da "nação", mas não o Fado. O debate arrastar-se-ia até 1974 sem entendimento possível, obrigando os que gostavam do Fado a fazerem públicas profissões de fé contra a “menoridade fadística”, como aconteceu com Fernando Lopes Graça, um secreto admirador de Hermínia Silva. E a mudança de regime político não alterou a visão redutora do problema, dado que as linhas de força do conflito são comuns a figuras activas na Monarquia Constitucional, 1ª República, Ditadura Militar e Estado Novo.
Vivia-se então no meio académico e nos círculos intelectuais conimbricenses um ambiente hostil ao Fado, cujas formulações críticas não distinguiam entre a produção fadística lisboeta (a mais veementemente condenada) e a produção estética coimbrã. Para este ambiente havia contribuído o Eng. António Arroyo, irmão do fundador do Orfeon, que em 01 de Maio de 1909 fora proferir a Coimbra uma demolidora palestra sobre o Fado (Cf. “O canto coral e a sua função social. Conferência proferida no dia 1 de Maio de 1909”, Coimbra, França Amado Editor, 1909; idem, “Duas Palavras”, prefácio à obra de Pedro Fernandes Tomás, “Cantares do Povo”, Coimbra, França Amado Editor, 1919). De acordo com Fernando da Silva Correia, “Vida Errada. O romance de Coimbra, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, pág. 288, o grande crítico académico do Fado nesses anos foi o estudante de Medicina José Maciel Ribeiro Fortes, mais tarde autor da publicação “O Fado: ensaios sobre um problema etnográfico-folclórico”, Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1926.
Adoptando o discurso eugénico e moralista da época, e propondo a superioridade da cultura campestre sobre o mundo citadino, António Arroyo condenava explicitamente o Fado e rotulava-o como produto cultural inferior. Exortava os orfeonistas de António Joyce a trazerem canções populares das suas terras de origem para o maestro harmonizar a quatro vozes, como já havia sucedido em 1880 com os cantores regidos por João Arroyo.
O estudante de Direito e regente do Orfeon António Avelino Joyce, integrava a corrente nacionalista apostada no chamado “reaportuguesamento”, que conheceu formulações em Raul Lino (casas à portuguesa), Alexandre Rey Colaço (canções populares), Antero da Veiga (rapsódias populares), José Viana da Mota, Ruy Coelho, Afonso Lopes Vieira e outros. Joyce corroborava inteiramente os pontos de vista de António Arroyo. Enquanto regente do Orfeon, Joyce não compôs um único tema de serenata, nem nada que se pudesse assemelhar a "fados", tendo deixado apenas rapsódias populares que chegaram a ser gravadas em disco pelo Orfeon e uma balada de despedida de curso (1912).
Os sócios do Orfeon descobriam dotes de folcloristas, aprofundando o sentimento regionalista e dando continuidade às “viagens” românticas propostas por Garrett. Nascia a lenda de uma CC concebida como resultado do conjunto de cantigas que os estudantes trariam das suas terras de origem. Partilhando as marcas discursivas típicas dos relatos criacionistas, esta teoria formulada pelas elites letradas na transição da Monarquia Constitucional para a 1ª República configura-se essencialmente como um discurso de distanciamento em relação ao Fado.
Francisco Menano, que além de guitarrista era serenateiro e gostava de tocar fados ao estilo de Lisboa, tentou contornar as hostilidades com canções para as Fogueiras de São João e adaptações de danças como o Abracinho (Adeus ó Vila de Fornos). Nos anos da regência de Elias de Aguiar, a aversão ao Fado não diminuiu. Artigos virulentos colheram grande aceitação junto do público. Manuel da Silva Gaio arremetia contra o Fado e os fadistas, temendo a “decadência da raça”. Vendo bem as coisas, a questão de fundo que se procurava discutir não era propriamente artística nem musicológica, mas sim racial e eugénica. Acreditava-se ser possível uma operação de despoluição da cultura portuguesa, com a consequente erradicação do Fado. Poucos estudantes estavam inteiramente de acordo com as campanhas antifadísticas. O estudante de Medicina e orfeonista Jorge Seabra anotou o ambiente de inquietação vivido em Coimbra e escreveu páginas em defesa da sua dama (Cf, Jorge Seabra, “A Coimbra do meu tempo (1913-1918”, Porto, Livraria Tavares Martins, 1948, págs. 150-153).
Envolto no turbilhão dos discursos avessos ao Fado, e sem se comprometer abertamente com nenhuma das facções, António Menano tentou contornar habilmente a polémica:

-diminuiu fortemente a sua presença nos números de “Fados e Guitarradas” promovidos pelos organismos culturais estudantis;
-nos actos de variedades dos saraus académicos optou por cantar a solo reportório mais neutro como danças populares regionais que tinham começado a fazer parte do programa do Orfeon, rapsódias extraídas de temas populares e cançonetas ligeiras do agrado dos círculos burgueses;
-a partir de 1918 intensificou a produção dos chamados “fados de Coimbra”, intitulando-os habilmente de “Granja”, “Alentejo”, “Choupal”, “Bussaco”, etc.. Na prática tratava-se de mascarar produções conimbricenses, forjadas no âmbito e contexto do chamado “Fado de Coimbra”, com a toilette pouco convincente do “folclore” regional. Nos círculos burgueses estava na moda o consumo dos produtos “nacionais”ou “regionais”, pelo que António Menano optou por adequar o seu reportório versátil e novas composições aos gostos do público.
O certo é que os alvitristas do tempo nunca chegaram a caracterizar o que fosse o chamado "Fado de Coimbra". A receita indicada - títulos de invocação regional, celebração de monumentos e de belezas campestres, quadras de autores nacionalistas glosando o pitoresco local - era precisamente a mesma indicada pelos polemistas que debatiam a questão da existência de uma arte nacionalista em Portugal. Para o que nos importa, o debate estético centrou-se única e exclusivamente em elementos subjectivos e adjacentes. Ao diabolizar o moderno e o elemento universal, caíu no enredo da "feição coimbrã", aparentemente facultada por elementos estéticos externos. A tentativa de instauração de paradigmas a imitar, tendo proposto os Painéis de São Vicente de Fora aos pintores e escultores, não deixou de normativizar a ária estrófica como cânone ou "essência" da CC.

São os falsos regionais. Com eles, António Menano fingia interpretar canções de origem provincial, quando na realidade os temas propostos não tinham a menor relação com os sítios referidos nos títulos. Exemplificando, o “Fado da Granja” não tinha rigorosamente nada a ver com a Praia da Granja em termos de letra, de melodia ou de vocalização. Quando muito, António Menano poderia contra-argumentar, dizendo que fizera a composição inspirado num qualquer momento aprazível que passara nos areais da Granja em companhia de Paulo de Sá e José Carlos Moreira. O mesmo se dirá do "Fado de Aveiro", de Paulo de Sá, que não se relacionando literária nem musicalmente com Aveiro, pretende ser uma homenagem ao cantor Agostinho Fontes que era natural de Aveiro. Para tornar o invólucro ainda mais convincente, António Menano recorreu a quadras de poetas considerados nacionalistas ou de veia “popular" como António Correia de Oliveira, José Marques da Cruz, António Nobre, António de Sousa, Afonso Lopes Vieira e Augusto Gil. Nas edições impressas, uma capa a cores glosando motivos regionais ajudava a tornar o produto mais convincente.
Este período coincide de certo modo com o facto de António Menano ter passado a interpretar canções acompanhadas ao piano, em vez dos tradicionais fados que haveriam de ser profusamente divulgados e conhecidos através de discos de 78 rpm, de edições musicais impressas e de rolos para autopianos, consagrando definitivamente para a posteridade o seu nome.
No ano de 1918 António Menano passa a integrar a Direcção do Orfeon Académico e nas Fogueiras de São João desse ano novamente canta canções populares, com muito agrado e satisfação dos presentes.
Em Dezembro de 1919, a AAC promoveu um sarau musical no Teatro Avenida, organizado pelo próprio António Menano, no qual o cantor participava e cujo programa não continha qualquer fado ou guitarrada. Em Maio de 1920, no Teatro Sousa Bastos, no sarau de apresentação da TAUC e do Orfeon nas vésperas da sua digressão pelo Porto, Braga e Viana, também não haveria fados nem guitarradas.
No final de 1919 surge a primeira proibição oficial de se fazerem serenatas espontâneas. A imprensa local insurge-se e reage contra esta medida policial e, a proibição, em vez de acabar com os Fados e as Guitarradas, provoca aparentemente o seu ressurgimento.
Entretanto, pela casa editora de música P. Santos & Cª., Salão Mozart, Rua Ivens, 52-54, Lisboa, tinha vindo a lume uma colecção de edições musicais do Repertório do Orfeon da Universidade, com fados de António Menano (Fado Patriótico, Fado da Granja, Fado das Romarias, Fado do Choupal, Fado dos Passarinhos, todos com música de sua autoria, e Morena), que alcançaram enorme sucesso. Quase todas as composições atingiram a 4ª edição antes de 1923 – o Fado dos Passarinhos, por exemplo, viria mais tarde a atingir a 12ª edição, pelo menos – tendo todos eles sido também gravados em rolos para autopiano.
António Menano, na recta final do curso e após cerca de um ano de namoro oficial, casou catolicamente com Maria Henriqueta da Câmara Viterbo, em Lisboa, no mês de Novembro de 1922 (testemunhos do Eng. Nuno Menano, em 11/09/2003 e 27/01/2004). O casal não seguiu logo para Fornos de Algodres. Menano e a esposa radicaram-se provisoriamente em Coimbra, num prédio sito ao Penedo da Saudade, onde o estudante e cantor era assiduamente visitado por músicos, pianistas, guitarristas e figuras da aristocracia. Aliás a aproximação de António Menano aos círculos aristocráticos palacianos intensificava-se, dado que a esposa era sobrinha do cavaleiro tauromáquico D. Ruy da Câmara.
Nesses anos de 1920 a 1924, António Menano era requisitado por guitarristas como Francisco Menano, Paulo de Sá, Francisco da Silveira Morais, Alexandre Rezende e Artur Paredes. Convivia com cantores novos e da velha guarda como Agostinho Fontes, Alexandre Rezende, Edmundo Bettencourt, Lucas Rodrigues Junot, José Roseiro Boavida, e os tenores Fausto de Almeida Frazão e Fortunato Roma da Fonseca. A Condessa de Proença-a-Velha e a Condessa de Ficalho deslocavam-se propositadamente a Coimbra para ver e ouvir António Menano. O cantor apadrinhava novos talentos como sucedeu com o jovem estreante Armando do Carmo Goes (Cf. José Carlos de Vasconcelos, “Itinerário do Fado de Coimbra-5”, in Diário de Lisboa, de 03-05-1966).
Na passagem de 1922 para 1923 Menano integrou um Coral organizado pelo estudante Raul Fernandes Martins. A formação tinha quatro naipes masculinos, num total de oito elementos: António Menano e Edmundo Bettencourt (1ºs tenores), Eduardo de Mascarenhas e Mexia Leitão (2ºs tenores), Manuel Valério e João Guardiola (barítonos), Condorcet Pais Mamede e Raul Fernandes Martins (baixos). O reportório era constituído por canções “populares” e trechos clássicos (Cf. Raul Fernandes Martins, “Coimbra. Recordações de um estudante”, Lisboa, 1984, págs. 13-14).
Em Abril de 1923, António Menano, já casado mas ainda não formado, participou na digressão do Orfeon e da TAUC a Espanha, actuando em Salamanca, Madrid e Valladolid. Do Grupo de Fados faziam parte Artur Paredes (g) e António Aires de Abreu (violão), e como cantores, António Menano e Edmundo Bettencourt (Cf. António M. Nunes, “No rasto de Edmundo de Bettencourt”, Funchal, DRAC, 1999, pp. 35-36). As actuações deste Grupo de Fados constituíram um grandioso sucesso, tendo os números feito o encanto dos espanhóis. Em Madrid, no Teatro Cervantes, depois da actuação do Orfeon dirigido por D. José Pais de Almeida e Silva, a sessão de Fados e Guitarradas foi delirante e o teatro em peso rompia em aplausos a cada actuação. António Menano cantou nessa sessão a seguinte quadra, na circunstância muito apreciada:

Estudantes de Coimbra
Lembrai-vos algumas vezes
Das espanholas que são
Como irmãs dos portugueses!

No baile do Casino de Valladolid, além de fados, António Menano cantou também algumas canções populares portuguesas e obteve grande sucesso.
Concluído nesse mesmo ano de 1923 o Curso de Medicina, o Dr. António Paulo Menano passa a exercer clínica em Fornos de Algodres, terra natal da Família Menano e onde seus pais, António da Costa Menano e Januária Paulo Menano, residiam. Embora já formado, continuou muito ligado à vida cultural da Academia de Coimbra, a actuações artísticas um pouco por todo o país, à composição e comercialização do seu repertório impresso em Portugal e no Brasil, visitando todos os verões a dupla Paulo de Sá/José Carlos Moreira na Assembleia da Praia da Granja.
No primeiro semestre de 1924 a direcção do Orfeon preparou longamente uma digressão artística a Paris, tendo convidado para regente o antigo maestro António Avelino Joyce. No dia 5 de Maio de 1924 realizou-se no Teatro Avenida, de Coimbra, um sarau promocional da digressão, onde actuaram António Menano, Agostinho Fontes, Edmundo Bettencourt, António Aires de Abreu (v), Alberto Tavares, Fernando Matos e Paulo de Sá. Seguiram-se três saraus de gala no Coliseu dos Recreios, Lisboa, sendo o Orfeon regido por António Joyce. Nestes saraus actuaram as seguintes formações:

-3 de Junho de 1924: Artur Paredes, Fausto Frazão, José Roseiro Boavida e António Menano. Menano interpretou, entre outras, as peças “Ó Rouxinol do Mondego”, e ao piano a “Carta de Longe”. Terá sido nesta récita que o cantor conheceu o pianista Lourenço Soares Varela Cid (1898-1987), também presente no palco, o qual lhe dedicou a composição “Um Fado”.
-4 de Junho de 1924: Artur Paredes, Fausto Frazão, José Roseiro Boavida e António Menano. Colaborou neste sarau a cantora Cassilda Ortigão que arrancou uma revoada de aplausos e foi obrigada a bisar o “Fado Hilário”. Esteve novamente em palco o pianista Varela Cid. Outra cantora muito saudada foi Fernanda Brito.
-5 de Junho de 1924: Artur Paredes, Fausto Frazão, José Roseiro Boavida e António Menano. Fernanda Brito agradou sobejamente em peças de Alberto Sarti e no tema brasileiro “Casinha Pequenina” (Tu não te lembras da casinha pequenina).

Em 14 de Junho de 1924, o Orfeon Académico seguiu para Paris, onde actuou no Trocadero, realizando depois saraus em Toulouse, Bordéus e Bayona. António Menano tomou parte na digressão, cantando ao lado de Agostinho Fontes Pereira de Melo (outro grande divo de Coimbra), Fausto de Almeida Frazão e José Roseiro Boavida. Os cantores presentes na gala do Trocadero foram acompanhados por Artur Paredes e António Aires de Abreu (Cf. Manuel Aires Falcão, “Comemoração das Bodas de Diamante do Orfeon Académico de Coimbra”, Coimbra, 1956, pág. 77). A grande gala parisiense ocorreu no dia 18 de Junho de 1924, coincidindo a actuação do Orfeon com a estreia da película muda “A Fonte dos Amores”, filmada em Coimbra no Verão de 1923 (Cf. Francisco Pimentel, “A Fonte dos Amores”, in RUA LARGA, Nº 20, 08-12-1958, pp. 612-615).
Oficialmente domiciliado em Fornos de Algodres no período atinente aos anos de 1924-1933, António Menano efectuou uma viagem profissional a África na 2ª metade da década de 1920 e passou a exercer clínica a bordo do navio da carreira africana Quanza. Em 1926 António Menano assinou o contrato de gravação com a empresa fonográfica Odeon e no mês de Maio de 1927 fez a primeira sessão de registos em Paris, acompanhado pela dupla Flávio Rodrigues/Augusto Louro. Em Novembro de 1927, quase meio ano após a 1ª sessão de gravações fonográficas na Odeon de Paris, nasceu-lhe o filho António Nuno Menano, a quem dedicou no final desse mesmo ano o embalo de Alexandre de Rezende “Meu Menino”. Seguiram-se as gravações de Lisboa (1928) e Berlim (1928), com tiragens à escala internacional. O casal Menano teve outros dois filhos, Maria da Graça Menano e Francisco Paulo Menano.
Entre 1923 e 1933 Menano frequentou os meios fadísticos lisboetas, sendo conhecidos contactos e performances junto de figuras como Alfredo Marceneiro, Adelina Fernandes, Emília Ferreira, Ercília Costa, Armandinho, Júlio Proença e Madalena de Melo (Cf. Victor Machado, “Ídolos do Fado”, Lisboa, Tipografia Gonçalves, 1937).
António Menano tornar-se-ia definitivamente o cantor de Coimbra mais conhecido e de maior fama em todo o país com as gravações que realizou entre os anos de 1927, 1928 e 1930, em Paris, Lisboa, Berlim e Madrid, para a companhia de discos Odeon, na sequência do contrato firmado em 17 de Novembro de 1926. De todos os cantores da chamada Década de Oiro da Academia de Coimbra, António Menano foi aquele que mais discos gravou e maior e mais estrondoso sucesso alcançou. Essas séries de discos têm etiquetas de cores diferentes, lilás, azul-escuro e dourada (alguns discos – três apenas - têm etiqueta vermelha), tendo sido produzidas muitas dezenas de milhares de discos que ainda se vendiam anos depois de terminada a II Guerra Mundial (1939-1945).
No Brasil, pela Transoceanic Trading Company para a Casa Edison, do Rio de Janeiro, foi feita a reprodução da maior parte das referidas gravações, discos esses a que foi aposta a etiqueta Odeon de cor azul forte e que tiveram também muito boa venda. Algumas das gravações de António Menano foram também comercializadas nos EUA, em 78 rpm de etiqueta verde.
Pena é que, através dos seus discos, a excelência da voz de António Menano e o seu talento de cantor tenham ficado bastante prejudicados por os acompanhamentos de guitarra e viola serem francamente modestos. Tamanha modéstia deve muito ao peso desempenhado por uma cultura de rua alicerçada em serenatas espontâneas onde o destaque era conferido à linha melódica traçada pelas vozes dos grandes tenores, bem como à preocupação de tornar o texto perceptível. A serenata, enquanto prática cultural de rua, era uma arte minimalista, de percepção imediata. Ao trabalho rudimentar de guitarra em afinação natural, devem somar-se as más condições técnicas de captação sonora. Comparando a qualidade sonora de captação e prensagem de editoras como a Odeon, a Columbia e a Polydor, fica-se com a impressão de que à Odeon interessaria em primeira mão inundar o mercado com tiragens em série, numa conjuntura de crescimento económico que ainda não deixava antever o grande colapso financeiro de 1929-1933.
Em 1929, por ocasião da Exposição Ibero-Americana de Sevilha, o Dr. António Menano foi o cantor escolhido para integrar a Embaixada Artística enviada pela Academia de Coimbra para actuar no festival oferecido aos Reis de Espanha aquando da inauguração do Pavilhão de Portugal, representação que era constituída por mais três elementos: Artur Paredes, solista e acompanhador, Afonso de Sousa, 2ª guitarra e Guilherme Barbosa, violão.
Entre 1930-1933, António Menano repartiu-se entre os afazeres profissionais e os espectáculos ocasionais, não faltando na sua anual visita à Praia da Granja, na época de veraneio, onde viveu os derradeiros convívios com Paulo de Sá, José Carlos Martins Moreira e o jovem estreante José Archer de Carvalho.
Antes da partida para África, uma das derradeiras galas do artista teve lugar no Teatro Nacional de São João, Porto, num Sábado, dia 28 de Junho de 1930. Na 1ª parte, o cantor vocalizou canções folclóricas e motivos tradicionalizados, acompanhado ao piano por Afonso Correia Leite. Na 2ª parte, cantou peças de António Joyce, Aarão de Lacerda, Alexandre Rey Colaço e Condessa de Proença-a-Velha. O sarau rematou com “fados” acompanhado em guitarra por Paulo de Sá.
Anos depois, em 1933, mercê dos contactos encetados através do navio Quanza, abandonando voluntariamente a sua meteórica e impressionante carreira artística, que fora a mais prometedora da Década de Oiro (1920-1930), António Menano partiu para Moçambique, onde exerceu clínica durante quase de 30 anos, fixando-se na vila de Inhaminga e depois na cidade da Beira. De África regressaria definitivamente a Portugal em 1961.
Das actuações de António Menano depois da sua ida para Moçambique, em 1933, destaca-se a de Outubro de 1956, em Lisboa, no Instituto Superior de Agronomia, na Tapada da Ajuda, no célebre recital que deu, já sexagenário, e que constituiu um êxito fabuloso. O espectáculo estava marcado para a meia-noite, começou às duas horas da manhã e só viria a terminar muito de madrugada, sem que ninguém tivesse arredado pé. Do “Diário de Notícias” de 23 de Outubro de 1956, respigamos o seguinte: «Até madrugada alta, com um céu em que a lua e as estrelas paradas pareciam acercar-se da terra, no sortilégio das canções de Menano ressurgiu Coimbra de há quatro décadas» e conclui dizendo: «Sem luz eléctrica nem microfones, a voz de Menano, casada com a das violas e guitarras, brindou Lisboa com uma noite inesquecível, única. Espectáculo imprevisto e verdadeiramente sensacional...».
De tempos a tempos, António Menano aparecia em Coimbra e acabava sempre por cantar, fazendo-o em qualquer sítio, desde que isso se proporcionasse. Uma noite acabou por cantar nos degraus da secular Igreja de Santa Cruz, perante o entusiasmo e admiração da multidão que logo ali se juntou e que, inclusivamente, obrigou a parar o trânsito.
Em 1967, dois anos antes da sua morte, teve ainda duas brilhantes actuações que foram bastante noticiadas e ficaram na lembrança. A primeira em Coimbra, na madrugada de 24 de Junho, do alto das escadarias da Sé Velha, na Serenata Monumental que ali teve lugar por ocasião da reunião do Curso Jurídico de 1907-1912, a que pertencia o seu irmão Francisco Menano, e que teve a participação de mais três cantores das novas gerações, José Manuel dos Santos, António Bernardino e Luiz Goes. António Menano, septuagenário, cantou quatro fados, provocando a maior admiração entre os presentes no evento.
A sua segunda e última actuação pública de 1967, teve lugar a 16 de Dezembro, por ocasião da inauguração, em Lisboa, da Galeria Rodin, do pintor Mário Silva, que reuniu muitos antigos estudantes de Coimbra, entre os quais Luiz Goes, Jorge Tuna, João Bagão, Aurélio Reis, o artista Tossan e Vitorino Nemésio. António Menano cantou dois dos fados mais emblemáticos do seu reportório, o Fado dos Passarinhos (Passarinho da ribeira) e o Fado da Ansiedade (O mundo dá tanta volta), o primeiro com música de sua autoria e, o segundo, com música do seu irmão Francisco Menano.
A sua última residência foi na Rua José Falcão, nº 57, 5º Esquerdo, em Lisboa, onde, em 11 de Setembro de 1969, viria a falecer.




Coro dos Antigos Orfeonistas reinicia as suas actividades, com uma sardinhada. Diário as Beiras de hoje. Fotos de Carlos Jorge Monteiro.
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quinta-feira, setembro 14, 2006


Balada de 1912 Posted by Picasa
Rosto da brochura musical impressa da composição de António Joyce, assiduamente interpretada por António Menano, mas nunca gravada em disco pelo cantor.
"Cantigas do Mar Coalhado. Balada da Despedida do 5º Ano Jurídico de 1911-1912" (Certa manhã de sol um galeão), com música de António Avelino Joyce (1888-1964) e letra de João Maria da Silva Lebre e Lima (1889-1959) é uma balada representativa da cultura estudantil de palco, com quatro estrofes e refrão, ilustrada por J. Cruz Jorge, totalmente caída no esquecimento.
AMNunes


Recital de António Menano (2) Posted by Picasa
Rosto do programa do recital de canções populares, música ligeira em voga nos círculos burgueses e temas da Canção de Coimbra, dado por António Menano no Teatro Nacional de São João, Porto, na noite de Sábado, 28 de Junho de 1930.
António Menano era ao tempo o artista com mais largo palmarés no universo da CC, pelo que o recital mereceu as atenções da comunicação social. No "Diário de Coimbra", de 28 de Junho de 1930, escreveu-se: "Dr. António Menano - Porto- Realiza-se amanhã, no Teatro S. João, o anunciado recital do distinto cantor de fados Sr. Dr. António Menano. Pelo interesse que este sarau está despertando, é de esperar uma casa cheia, que aplaudirá com entusiasmo o inspirado compositor e mavioso «Rouxinol do Mondego»."
Fonte: colecção de José Anjos de Carvalho
AMNunes


Recital de António Menano (1) Posted by Picasa
Programa do recital apresentado por António Menano no Teatro Nacional de S. João, em 28 de Junho de 1930. Na 1ª parte, o cantor interpretou essencialmente canções populares e popularizadas (Canção das Velas), com arranjos do pianista Afonso Correia Leite. Grande parte deste reportório era bem conhecido de António Menano, pois fora divulgado no Orfeon Académico regido por António Joyce e Elias de Aguiar. Na 2ª parte, Menano canta peças de António Joyce (Balada da Despedida do 5º Ano Jurídico de 1912), Aarão de Lacerda, Alexandre Rey Colaço e Condessa de Proença-a-Velha.
A 1ª e a 2ª partes correspondem aos parâmetros estéticos propostos pela cultura de palco entre finais do século XIX e o 1º terço do século XX. É um reportório de gosto e envolvência tipicamente burguês e aristocrático, que se revê no folclore, nas melodias pró-folclóricas e em canções de teatro e salão. A 3ª parte, animada por António Menano e Paulo de Sá, aponta para a cultura de rua vincadamente coimbrã. São os "fados e guitarradas" que, apreciados, viviam um complexo e por vezes ambíguo processo de desqualificação artística nos periódicos dominados pelas elites.
De realçar a diversidade de compositores, letristas e instrumentistas, percorridos por António Menano, ao alinhar a cultura de palco, de salão e de rua. Não temos notícia de que outros artísticas ligados à CC tenham protagonizado recitais de espectro tão amplo (embora haja notícias de intercâmbio canto/guitarra/piano na Tertúlia do Fado de Coimbra, Paulo Soares e João Moura).
Fonte: colecção de José Anjos de Carvalho
AMNunes

quarta-feira, setembro 13, 2006

Blog de Carlos Carranca


Está já nos links deste Blog um novo Blog do académico Carlos Carranca, nosso colaborador, já de longa data. Chama-se "Carlos Carranca - neste lugar sem portas".
Poeta, ensaista, cantor, é um artista com créditos há muito formados. Vamos ficar fãs dos seus escritos. O endereço é:

terça-feira, setembro 12, 2006

A OUTRA FACE DO ESPELHO

ERA LONGE. PERDEMO-NOS
José Henrique Dias*
Quase me apetece dizer que aprendi a ler em O Despertar. Meu pai aparecia com o jornal debaixo do braço, sentava-se a ler e fazia alguns comentários cujo significado me escapava. Eu às
vezes abeirava-me, entre o seu colo e a mancha de letras, meu pai apontava algumas e dizia-lhes o nome. Assim as fui reconhecendo, recolhidas das colunas de informações sobre a guerra e de acontecimentos da vida coimbrã. Lembro-me de um dia meu pai entrar em casa e dizer Nápoles capitulou. Eu não sabia o que era Nápoles e de capitular recolhi algum tempo depois que os aliados iam ganhar a guerra. Quando fui para a Escola da Boavista, a Don’Ana, que era a professora, vestia de preto e usava chapéu. Do alto do estrado, estava protegida pelos retratos de Salazar e de Carmona. Mais do que pelo Cristo que eles escoltavam, na parede por cima do quadro preto. Sobre a secretária havia uma régua ameaçadora, de que tivera notícias uns anos antes de a conhecer. Os mitos do medo reproduziam-se. Quando fores prá escola… Não havia traquinice ou demora nas brincadeiras nas escadas da Sé Nova que não prenunciassem a escola disciplinadora que parecia ter sido construída e instruída para nos meter na ordem. Se soubesses o que custa mandar, mais gostarias de obedecer. Coisas do ditador. Torcia-se o futuro de pequenino, como o pepino. Torcia-se o destino. Morava na Rua Rego d’Água. Era uma rua estreita e curta, entre o Largo da Feira e o Largo de S. João. No Largo da Feira havia a escola das meninas, que nos intervalos vinham para fora fazer rodas e cantares pelas mãos da senhora Rute, que era a contínua. Usava uma saia rodada que lhe cobria os pés. A senhora Rute era diferente das professoras. Ninguém lhe chamava dona, vestia uma blusa de chita e não usava chapéu. A senhora Rute era diferente da senhora Palmira, a contínua da minha escola. A senhora Palmira era igualzinha às mulheres do campo, que vinham em revoadas visitar os museus uma vez por ano. Na minha escola também havia meninas. Mas nada de misturas. No Livro da Primeira, as letras d’O Despertar viravam maiores e mais redondas e tinham por perto uns desenhos. O A era de águia, o E de égua, o I de igreja, o O de ovos e o U de uvas. Já sabes o A.E.I.O.U?. Era a primeira grande porta do conhecimento. Eu já sabia do colo do meu pai e do jornal, até mesmo os ais e uis do rapazinho que caía sobre piteiras. Antecipava o D de dedo e de dói-dói. Mas o que me fascinava era o jardineiro de chapéu de palha a regar as flores. Ainda hoje, sempre que lanço um jota, que então era “jê”, me lembro do jardineiro. O que eu queria era ser jardineiro. Ter um chapéu de palha e regar as flores. Nem por ter a esquadra ao pé da porta alguma vez quis ser polícia. Prendiam as pessoas que não paravam e os homens que não tiravam o chapéu quando ao Domingo a bandeira subia pela manhã e descia ao fim da tarde, no mastro por cima da porta. A polícia estava no casarão que ia do largo de Feira até à Rua Larga e onde também funcionava o Governo Civil. No alto da frontaria, um santarrão dominava o largo e confrontava-se com o galo da cúpula da Sé Nova. Está desde há muito no Bairro de Celas, acompanhou os salatinas migrantes. Um dia o galo caiu, era de ferro e enorme. Por sorte não apanhou nenhum de nós a jogar à malha ou ao gavião. O casarão, velho convento ou colégio, foi condenado a labaredas “administrativas”, para se poder construir a Faculdade de Medicina. Demorou menos a demolir que o Arco do Castelo. Eram tempos de fome e de medos. Bichas para o pão, senhas de racionamento. Nas janelas colavam-se tiras de papel por causa do ataque aéreo, que nunca veio, mas as casas ruíram e as ruas sumiram-se debaixo de entulhos. Uma após outra, num avanço de camartelo para a glorificação do regime em torno do que chamavam Alma Mater. Em O Despertar, emoldurada num canto, a sentença da asfixia, “Visado pela Comissão de Censura”. A Don’Ana, depois a D. Ilda, misturavam padres-nossos com a maldita tabuada dos noves e as reguadas. Na quarta, o senhor Carmálio ensinava que Manuel, O Caganeta, é um aposto ou continuado. No livro de História falava- -se de barafunda republicana e perguntava-se quem salvou Portugal do inferno. Cedo aprendi quem lá o meteu, quase até eu ser avô. O Caganeta acho que se chamava Ricardo e tinha a farda da Casa dos Pobres. Manuel Ricardo? Os estudantes desfrutavam a sua falsa ira a troco de um cigarro. A Alta morreu e os meus colegas de escola, tantos deles, foram para o Bairro de Celas. Era longe. Perdemo-nos. Eu subia ao longo da Sereia para o liceu, alguns desciam à mesma hora, a caminho das suas lojas ou das suas oficinas. Aprendizes de marçano ou das mais variadas artes. Gente nobre. Pessoas notáveis. Mas a Coimbra de então fortificava distâncias entre os que estudavam e os que trabalhavam. Éramos uns tontos. Quem me dera encontrá-los para lhes pedir perdão pela estúpida sobranceria da capa e batina.
* Professor Universitário
Artigo retirado do jornal semanário O Despertar de 8 de Setembro de 2006.



José Henrique Dias no jornal O Despertar de 1-9-2006. José Dias ficou conhecido em Coimbra como o "Bicho Cantor", devido ao facto de ter começado a cantar a canção de Coimbra ainda antes de entrar na Universidade.

segunda-feira, setembro 11, 2006

António Menano





















Faz hoje 37 anos que morreu António Menano (5 de Maio de 1895 - 11 de Setembro de 1969).

ESTÓRIAS À LENTE (5)

XIII.

Na UC, entre 1948 [1] e 1967, foi a cadeira de Psiquiatria da licenciatura em Medicina regida por um lente ainda hoje recordado, entre antigos estudantes e nos meios médicos, pela alcunha que o celebrizou; não a vou aqui reproduzir, mas deixo expresso que ela quereria significar que, psiquiatricamente, o dito lente deveria ser o objecto e não o sujeito… E por boas razões. Tenho utilizado às vezes, nestas estórias, a expressão «sábio distraído». E o Doutor J… também seria um pouco o caso; só que com alguma afectação pelo meio; e o episódio que vou narrar bem o ilustra…

O Doutor J… almoçava frequentemente na Central, clássica pastelaria da Baixa coimbrã, em pleno «Canal»; à hora do almoço a Casa servia também refeições; e era chefe-de-sala outra celebridade dos anos 40-50: o Sr. Petrónio (ainda o lá conheci, na segunda das décadas mencionadas). Ao chegar à Central, o Doutor J… procurava mesa, sentava-se e punha-se «a olhar para ontem»; até chegar o Sr. Petrónio; aí ‘voltava à Terra’ e dirigia-se ao chef:

- Ó Petrónio, eu já almocei ?
- Ainda não, Sr. Doutor.
- Então traga-me a ementa.

Seguia-se o repasto; raramente o Doutor J… terá tido companhia. Após o café punha-se de novo «a olhar para ontem»; até voltar o Sr. Petrónio; e aí tínhamos nova pergunta e sequência:

- Ó Petrónio, eu já almocei ?
- Já sim, Sr. Doutor.
- Então traga-me a conta.

XIV.

- Isto foi aula de quê ?

Que um lente possa perguntar tal coisa no termo de uma aula parecer-nos-á certamente coisa surrealista ! Mas o facto é que já aconteceu…
Foi anteriormente referido neste blog que pelas décadas centrais do século que passou os lentes de História da FL/UC eram escassos; foi bem verdade; consequência inevitável: uma acentuada sobrecarga de serviço docente para todos eles. É claro que durante bastante tempo isso acabou por os beneficiar, já que qualquer regência seria remunerada com uma «gratificação»; mas num dado momento da década de 50 as gratificações passaram a limitar-se a duas regências; as remanescentes – uma só, em princípio – seriam dadas gratuitamente… É claro que a partir de então a Escola passou a recrutar assistentes com mais regularidade e a incentivar os doutoramentos…
Mas não nos antecipemos.
Antes da mutação referida, o Doutor B… foi certamente um dos Mestres mais sacrificados, forçado a reger matérias que podiam ir da História de Roma à História Medieval (portuguesa ou europeia), da Paleografia à Epigrafia, da Numismática à História dos Descobrimentos… Acresce que se tratava de um dos mais prolíficos historiadores da Escola de Coimbra de então, que entre 1945 e 1954 andou assoberbado com a reedição anotada de um clássico da nossa Historiografia, que produziu – com intuitos didácticos – o primeiro álbum de Paleografia que entre nós se publicou, que procurou – e conseguiu – dotar o então «Instituto de Estudos Históricos Dr. António de Vasconcelos» [2] com um notável conjunto de reproduções de documentos medievais (em fotografia ou microfilme) [3] e que frequentava assiduamente reuniões científicas, no País ou fora dele; era, aliás, o mais internacional dos sacerdotes de Clio exercendo então em Coimbra.
A juntar a todo isto, o Doutor B… tinha o hábito de trabalhar de noite, dormindo escassas horas e não raro fazendo directas. Mas não era isso que o impedia de estar bem cedo na Faculdade, a fim de passar pelo dito Instituto – à cata de novidades bibliográficas – antes da primeira aula. E não raro era qualquer texto rapimente percorrido, num livro ou revista recém-chegado(a), a motivar a sua exposição, que, assim sendo, só por acaso algo poderia ter a ver com a temática da cadeira e com o ponto do programa a ser supostamente abordado. Só que o Doutor B… era distraído, sim, mas até certo ponto; e se no final da aula procedia à interrogação reproduzida a abrir a presente narrativa, a resposta imediatamente lhe permitia situar-se; e depois era só ir à Secretaria preencher a caderneta de Sumários da cadeira certa, com a indicação da matéria prevista para aquela data concreta…
Independentemente destas peculiaridades, o Doutor B…, jubilado há mais de 30 anos e desaparecido há 18, foi indiscutivelmente um grande Mestre e como tal é ainda lembrado pelos seus antigos alunos e assistentes; e daí a digna evocação de que foi alvo, ao passar, há poucos anos, o centenário do seu nascimento.

XV.

O Doutor D… foi um dos assistentes de História recrutados pela FL/UC nos alvores da década de 50. Contando já 30 e muitos anos, doutorar-se-ia nos finais da década e atingiria a cátedra uma dúzia de anos mais tarde; jubilado em meados da década de 80, morreria dez anos depois; já jubilado, foi, em Dezembro de 1985, arguente do trabalho complementar nas minhas provas de doutoramento.
Enquanto assistente, o Doutor D… trabalhou mais regularmente na dependência do Doutor P…, uma celebridade da Casa e da Historiografia portuguesa, expositor brilhante, senhor de obra vasta e diversificada, mas longe de constituir um Mestre assíduo e interessado no quotidiano da Escola, sempre disperso que andava por outras actividades em Lisboa e no Porto; donde, a intensidade com que viajava e a alcunha que se lhe colou num dado momento: não a vou reproduzir, mas direi que tinha a ver com a sua assídua relação com o caminho-de-ferro [4]
No dia da posse como assistente, o Doutor D… deslocou-se, no termo da mesma, da Reitoria para a sua Faculdade (o actual edifício fora recentemente inaugurado), como que a «apresentar-se ao serviço». E logo encontrou o Mestre de quem iria directamente depender, dando-lhe conta da posse e de que ali estava…

- Calha bem – diz o Doutor P…– porque mais logo tenho aí três alunos militares[5] a fazer exame de Numismática e não posso efectuar a vigilância. Você é que lá podia ir e assim se estreava no serviço…
- Muito bem – redarguiu o Doutor D… –, só preciso que o Sr. Doutor me dê o enunciado da prova.
- Não é preciso ! – tornou o Doutor P… – Você vai à caderneta de Sumários e elabora um enunciado, ao seu critério.
- Se o Sr. Doutor assim acha…

E lá foi o Doutor D… Obtida a caderneta, elaborou um enunciado – procurando cobrir diversificados pontos do programa – e à hora prevista estava na sala, perante os três examinandos. Ditou as perguntas e notou logo uma expressão estupefacta nos circunstantes. Um deles, pedindo licença, disse o seguinte:

- Ó Sr. Dr., mas nós não demos nada disso !
- Não deram nada disto ?! Mas está tudo nos Sumários !...
- Está bem, Sr. Dr., mas nós só demos o asse romano [6]
- O asse romano ?!
- Sim, Sr. Dr. – tornou o aluno, corroborado agora pelos dois restantes –, é só isso que sabemos, é isso que costuma sair e é a isso que vamos responder.
- Façam lá o que os Srs. quiserem !

À mente do Doutor D… chegou a acudir que poderia estar a ser objecto de alguma partida, qual «tourada ao lente» avant-le-temps… Mas não era: quando, decorridas as duas horas, recolheu os pontos logo se deu conta de que todos afinavam pelo mesmo diapasão – o dito asse romano.
Pouco satisfeito, foi em busca do Doutor P… Este estava a conversar com o bedel; vendo o seu novo Colega, logo o interpelou:

- Então como é que se saiu com a vigilância ?
- Ó Sr. Doutor, nem queira saber o que me aconteceu !
- Então o que foi ?

E o Doutor D… lá contou quanto se passara. Quando acabou de falar, o Doutor P… voltou-se para o bedel e comentou, algo maliciosamente:

- Este ainda tem que aprender…

E depois, falando para o Doutor D…:

- Ó Senhor, dê-se nessa cadeira o que se der, pergunte-se o que se perguntar, eles vêm sempre com isso ! E nunca levam menos de 13 !!!...

XVI.

Aqui há uns 50/60 anos houve na UL um lente de Filologia Germânica muito singular; ficou nomeadamente célebre o seu hábito de, nas orais de Língua Alemã, pedir às alunas – e só a elas… – a tradução para Alemão das peças do vestuário interior feminino ! Mas um dia foi mais longe…
Havia uma aluna voluntária [7] residente no Porto. Apesar da distância, Lisboa era-lhe mais vantajosa que Coimbra, por existência de apoios familiares. Foi admitida à oral de Língua Alemã com nota fraca. E o Doutor J… começou por lhe fazer a análise da prova escrita e das suas deficiências. A aluna reconheceu que a escrita lhe tinha corrido mal, que só podia alegar o facto de viver no Porto e de viajar até Lisboa quando podia, para assistir a algumas aulas e apresentar-se a frequências e exames; mas era duro: em certas fases do ano sentia que passava o tempo nos comboios e que estava sempre com um-pé-lá-outro-cá

- Quem me dera estar no Entroncamento ! – disse logo o Doutor J…

XVII.

Um dia teria de contar alguma passada comigo…
A cena ocorre em 1983, era eu ainda assistente. De longa data (1957 ss.) existia na licenciatura em História uma disciplina anual de Pré-História; mas na variante em Arqueologia (1981 ss.) a disciplina equivalente intitulava-se Origens do Homem e da Civilização.
Aí por Fevereiro / Março de 1983 estava eu um dia a dar aula de História Institucional e Política (séculos III-XIV), cadeira que regi de 1978 a 1988 quase sem soluções de continuidade; nesse dia, já não sei por que razão, houve uma troca de salas, passando eu com os meus alunos para uma sala normalmente ocupada por turmas de Arqueologia. Passados cerca de 15 minutos sobre o início da aula abre-se a porta e entra, esbaforida, uma aluna que, claramente, não era dali. Surpreendida com a diferente paisagem humana, vira-se para mim e interroga:

- Desculpe, aqui não é as Origens do Homem ?

Resposta minha:

- Não, não, Minha Senhora, eu já estou na casa dos 30 !...

XVIII.

E aqui vai outra da minha lavra… Esta passa-se em Junho de 1986, na vigilância de um teste da cadeira mencionada na estória anterior. Estava eu doutorado há meses e acompanhava-me na dita vigilância o meu Colega Doutor José Augusto Sottomayor Pizarro, ao tempo assistente. Como a maioria dos leitores por certo terá ideia, as provas escritas realizavam-se – e realizam-se – em folhas pautadas e timbradas duplas, isto é, com um total de 4 páginas. O teste tinha a duração de duas horas. Estar-se-ia sensivelmente a meio quando uma aluna, tendo terminado o tema de desenvolvimento – ou seja, estando também mais ou menos a meio do teste – e tendo utilizado até então a quase totalidade da folha dupla que lhe fora distribuída, aproveita para se levantar e deslocar-se até à secretária, onde eu me encontrava com o referido Colega; dirigindo-se a mim, pede, com toda a explicitude:

- O Sr. Dr. dá-me licença de ir ao quarto de banho ?
- Com certeza, Minha Senhora ! – respondi.

Passados alguns minutos a aluna regressa, dirige-se novamente à secretária e assim se exprime:
- Sr. Dr., pode-me arranjar mais papel ?...

XIX.

Como não há duas sem três…
In illo tempore, quando eu ingressei na licenciatura em História da FL/UP (1968), duas figuras pontificavam no pessoal técnico, administrativo e auxiliar da Casa: o Sr. Pinto e o Sr. Ferreira. Formando uma dupla eficaz, não podiam ser mais diferentes:

§ O Sr. Pinto, sempre sério e compenetrado no trabalho; só tendia a descontrair um pouco nos almoços de confraternização de professores e estudantes, para que o dito pessoal técnico era normalmente convidado;

§ o Sr. Ferreira, ainda que às vezes com a sua pontazinha de mau-génio [8], tinha outro sentido de humor e gostava de contar – ou de ouvir contar – uma boa anedota; e, sobretudo, estava sempre pronto a deixar-se convidar para uma bebida – cerveja, normalmente, mas não só, como veremos.

A cena passa-se numa cálida tarde de Julho de 1973. No anfiteatro do piso 3 [9], Luís Adão da Fonseca [10], ao tempo assistente, efectuava provas orais de História da Idade Média; com ele formava júri Aurélio de Oliveira [11], também assistente; no extremo da vasta mesa, eu próprio, monitor há poucos meses, ia ajudando Aurélio de Oliveira no preenchimento de pautas e termos da ultra-populosa turma de Germânicas da disciplina anual de História de Portugal.
A dado momento entra o Sr. Ferreira (julgo que ia tirar medidas a um estore que necessitava de substituição). E logo Adão da Fonseca se lhe dirige:

- Sr. Ferreira, estou cheio de sede; arranje-me um refresco…
- Um Sumolzinho, Sr. Dr. ?
- Está bem, traga lá – diz Adão da Fonseca, puxando pelo porta-moedas.
- Mas então têm que ser dois…
- Dois ?! Porquê ?
- Porque eu também estou com sede !...

XX.

Tem andado amiúde na Ordem do Dia a questão do papel das Ciências da Educação na formação graduada – actual licenciatura – dos profissionais da História (e/ou de outras Ciências Sociais e Humanas com saída para o Ensino). O problema não é de hoje, pese embora um certo enragement de lobbies nos últimos 10 anos. Mas na década de 80 a questão já se punha, e foi em boa parte o problema da criação do Ramo Educacional a determinar os desastrados rumos das reformas curriculares da licenciatura em História ocorridas no final da dita década. Com um pormenor: a excelente reforma Sottomayor Cardia das Faculdades de Letras (1977), então enjeitada, vigorara cerca de 10 anos; os produtos da «contra-revolução curricular» dos anos 80 vigoraram entre 12 e 15 (havendo ainda um caso de manutenção até ao presente, que só BOLONHA fará sair de cena…) !

Sempre estimulei os alunos a intervir nas aulas, durante (ou após) as exposições teóricas ou então apresentando pequenos trabalhos (relatórios de leitura, comentários de fontes, etc.) nas aulas práticas. E quando alguns me contrapunham – hoje já será menos frequente – a falta de experiência quanto a falar em público, eu sempre trepliquei com a ideia de que se algo correr menos bem é perante Colegas, e que haverá que ir ganhando traquejo se for efectivamente o Ensino a estar no horizonte…
Em 1984/85 tive duas excelentes turmas de História Institucional e Política (séculos XIII-XIV), que plenamente corresponderam aos meus mencionados incentivos [12]. Mas houve numa dessas turmas alguém que me pretendeu dar água pela barba: era uma já algo veterana professora da Instrução Primária [13], frequentemente apregoante aos quatro ventos dos seus mais de 20 anos de experiência docente... Para além de por vezes criticar intervenções de Colegas de forma bem pouco elegante, um dia resolveu ir mais longe, ‘teorizando’ que deveria haver uma cadeira de Pedagogia em cada ano da licenciatura, pois de outro modo saíam da Faculdade licenciados «com um amontoado de conhecimentos científicos» e com nulos conhecimentos pedagógicos e que um licenciado sem conhecimentos pedagógicos era «como um manequim despido» !

- Um manequim despido ? – redargui eu – E a Senhora acha isso uma coisa assim tão horrorosa ?!

A turma riu. E a experiente pedagoga não voltou a intervir sobre tais matérias…

XXI.

É curioso que, sendo eu natural de Coimbra (freguesia de Santa Cruz), filho de dois diplomados pela UC, tendo tido praticamente desde sempre familiares na Cidade e nela tendo passado, na infância e na adolescência, inúmeros períodos de férias, quase nunca lá residi em permanência. O «quase» tem a ver com o ano isolado em que frequentei a FD/UC.
Foi em 1967/68. Se desde os anos centrais do Curso Liceal a História se revelara a opção, deixara-me depois convencer pelos argumentos de Familiares, Mestres, Colegas e Amigos: a bem das já então faladas saídas profissionais… É claro que ao fim de poucos meses eu já decidira corrigir a rota, e em 1968/69 estava de regresso ao Porto – onde fizera todo o Liceu – para frequentar a FL/UP.
Mas não considero esse ano em Coimbra tempo perdido. Por muitas razões: uma das quais a possibilidade de também ter presenciado episódios transformáveis em estórias; como esta que passo a narrar…

Entre o Carnaval e a Páscoa – julgo que no mês de Março – iniciou funções um novo assistente numa das quatro cadeiras que então compunham o 1.º ano de Direito. Dizia o Mestre, o Doutor C…, ao apresentá-lo que doravante, nas aulas práticas, haveria duas pessoas; de modo que:

- … umas vezes virá o Sr. Dr. A…, outras vezes virei eu, outras viremos os dois… e outras não virá nenhum…, porque lá por sermos agora dois os Srs. não perdem o direito a ter, de quando em quando, o seu «feriado»…

O novo assistente era um jovem recém-licenciado, rosto escanhoado – contrariamente a tempos ulteriores –, ar de rapazinho bom comportado (donde, a ocasional alcunha de «copinho-de-leite»…) e com uma indisfarçável falta de à-vontade nas primeiras aulas. Veio a ser figura de renome nas áreas a que se consagrou; e é hoje lente de uma outra Universidade que não a de Coimbra.
Não havia nesse tempo fichas timbradas individuais que os lentes entregassem aos escolares para preencher, colar fotografia e devolver. Na Secretaria haveria por certo a ficha individual do aluno, onde seriam lançadas as matrículas e as classificações. Mas essas, normalmente, só vinham à mão do lente aquando das provas orais. De modo que, pouco depois da posse do assistente, o Mestre da cadeira pediu numa aula teórica que toda a gente pegasse numa folha «de caderno de argolas», como então se dizia – folha de formato-verbete, pautada e duplamente furada –, e nela colasse uma fotografia e escrevesse os dados fundamentais da identificação, idade, naturalidade, profissão dos progenitores, local e Instituição onde se tivesse frequentado o Ensino Liceal, etc. E depois era só entregar ao Sr. Dr. A… numa das aulas práticas.
Numa das suas aulas seguintes o Dr. A… falou do assunto:

- Eu sei que o Sr. Doutor C… lhes solicitou uma folha com estes- elementos-assim-assim; de modo que quem tiver isso pronto pode já entregar-mo no fim desta aula ou numa das próximas.

Chega o termo da aula. Seria lógico que o novel assistente se tivesse deixado ficar na secretária e aí aguardasse quantos tivessem o papel para entregar. Mas como, porventura, terá visto muitas cabeças a acenar afirmativamente quando falou do assunto, achou que, face a uma possível multidão de entregantes [14], seria melhor outra solução: e assim, ao dar a aula por terminada, dirigiu-se para a porta, que abriu, aí ficando para receber as ditas folhas. A dado momento a subsequente cena tornou-se perfeitamente ridícula: era como se um grupo de fiéis fosse saindo de uma missa e alguns dessem esmola ao pobrezinho colocado logo à saída… Disso se deu conta o veterano-mor da turma, um Colega já com a tropa feita e incontáveis matrículas (penso aliás que não andaria longe dos 30 anos); e resolveu agir em conformidade: ao aproximar-se da porta puxou do porta-moedas, olhou para o interior do mesmo e fez uma expressão desolada, logo dizendo ao Dr. A…:

- Não pode ser, santinho…

XXII.

- O Programa deste Governo tem coisas novas e coisas boas; só que as novas não são boas e as boas não são novas !

Estas palavras foram proferidas em Setembro de 1978. Local: a Assembleia da República; orador: o lente de Direito Doutor Diogo Pinto Freitas do Amaral, ao tempo líder do CDS; circunstância: o debate de investidura do III Governo Constitucional (GC), um Governo de iniciativa presidencial (general Ramalho Eanes) que teve como primeiro-ministro o Eng. Alfredo Jorge Nobre da Costa (1923-?); isto face a um quadro parlamentar difícil de gerar maiorias sólidas; a dissolução do Parlamento, na sua primeira legislatura na vigência da Constituição de 1976, seria para dar azo a eleições intercalares e não antecipadas, já que, constitucionalmente, a dita legislatura só terminaria em 1980. Falhada a experiência de Governo PS a solo (I GC, 1976-1978), falhada a coligação PS / CDS (II GC, 1978), o então PR ensaiou esta fórmula. Como muitos, por certo, recordarão, este Executivo não passou no Parlamento e esteve efemeramente em gestão até Novembro seguinte, altura em que tomou posse outro Governo da mesma iniciativa (IV GC, primeiro-ministro Doutor Carlos Alberto da Mota Pinto [1937-1985]), que estaria em funções até Agosto do ano seguinte. Depois viria mesmo a dissolução parlamentar, o Governo de Maria de Lurdes Pintasilgo [?-2004] (V GC), as eleições intercalares (Dez.79) e os Governos AD (VI-VII-VIII GGCC, 1980-1983).

Mas voltemos a 1978. Quando o Doutor Freitas do Amaral proferiu tais palavras no hemiciclo, logo surgiu um comentário na Comunicação Social escrita (creio que na secção «Gente» do Expresso), afirmando tratar-se de uma paráfrase do Doutor Marcello Caetano (1906-1980), Mestre do orador agora em causa, quando, nos anos 50, argumentara uma tese de doutoramento na sua Escola, a FD/UL; Marcello Caetano teria dito o seguinte, logo a iniciar a argumentação:

- O seu trabalho tem coisas novas e coisas boas; só que as novas não são boas e as boas não são novas !

A ‘intertextualidade’ era óbvia. Pude depois dar-me conta de que a estória, retransportada à colação pela paráfrase de Freitas do Amaral, era relativamente conhecida nalguns meios universitários de Lisboa.

Imagine-se agora a minha surpresa quando, em 1994, num livro colectivo sobre a evolução da tese de «doctorat» francesa [15], e mais concretamente num texto sobre a «thèse de lettres» nos sécs. XIX-XX, deparei com a mesmíssima frase em versão francesa, atribuída a um eminente diplomatista e lente da École Nationale des Chartes [16], Georges Tessier. Tive depois oportunidade de falar do assunto com universitários franceses, mormente com aquele que considero o meu Mestre no seio do medievismo de além-Pirenéus, Bernard Guenée [17], antigo aluno de Tessier. E os testemunhos são unânimes:

- Le très digne monsieur Tessier serait tout à fait incapable de dire ça pendant une soutenance de thèse !

Aqui fica pois um pequeno mistério: onde nasceu afinal a «boutade» ? e pela boca de quem ?
Qualquer informe vindo dos colaboradores do blog será, obviamente, muito bem-vindo !

XXIII.

O Doutor Raul Jorge Rodrigues Ventura (1917-1999) foi um insigne lente de Direito Romano da FD/UL. De uma exigência ética acima do comum, e por isso mesmo suscitadora da admiração de quantos o conheceram, estava no entanto longe de ser pessoa austera e carrancuda. Pelo contrário, o seu fino humor – aliado ao muito saber – fazia do Doutor Ventura alguém não necessariamente temido, mas muito, muito respeitado. Ao que parece, nenhum aluno da post-graduação (o então 6.º ano jurídico) tomava a decisão sobre o tema da tese a coroar tal grau sem lhe ouvir o parecer; outros lentes, até mais antigos (v.g. o eminente civilista Doutor Manuel Duarte Gomes da Silva [1915-1995]), não deixavam de se assegurar de que os post-graduandos já tinham ouvido a opinião daquele muito especial Mestre.

Vamos então a uma primeira amostra do «modus agendi» do Doutor Raul Ventura. Nos anos 60 havia ainda nas Faculdades de Direito o hábito das chamadas nas aulas práticas. A estória passa-se ao ser chamado alguém que depois ficou bem conhecido pela sua intervenção cívica na fase inicial do governo do Doutor Marcello Caetano. Não era aluno assíduo às aulas nem particularmente estudioso ao longo da totalidade do ano. Chamado um dia em aula prática de Direito Romano, saiu-se com um estenderete de todo o tamanho. E o Doutor Ventura, como que prenunciando-lhe uma reprovação, comentou no fim:

- Senhor Fulano, não sei como hei de passar para o ano sem o senhor...
- Senhor Prof. Raúl Ventura, não sei como hei de passar este ano com o Senhor !... – retorquiu prontamente o aluno.

XXIV.

Noutra ocasião, foi o Doutor Raul Ventura abordado por um aluno que, por qualquer razão, terá querido ensaiar alguma especial aproximação àquele Mestre. E de que modo ? Dizendo-lhe que estava em situação de apuro, já que precisava de comprar uma botas de montar a cavalo e não dispunha da quantia necessária, cinco mil escudos (só e mais nada !!!), e se por acaso ele, Doutor Ventura, poderia emprestar-lhe a dita quantia… Longe de se enfurecer, o Doutor Ventura foi calmamente dizendo «não ser de habitual nas relações entre professor e aluno tal tipo de solicitação. Fosse como fosse não tinha consigo essa importância, dispondo apenas no momento de mil escudos…»:

- Pois também me servem, Senhor Professor. Também me servem… – disse logo o aluno.

«Servindo-lhe ou não, o facto é que se não eximiu a um remoque cronicamente vitorioso por parte de Raul Ventura».

Obs.: A fonte desta estória e da anterior é o texto de Ruy de ALBUQUERQUE, «Evocação de Raul Ventura», Revista da Faculdade de Direito [UL], XLI / 1 (2000), pp. 345-363, de onde se transcrevem (p. 361) as passagens entre aspas e os discursos directos.

XXV.

Houve na FL/UP, dos anos 60 do século findo aos anos zero do novo século, um lente de História Moderna que não tinha problema algum em se afirmar como conservador. Atribuíam-se-lhe, proferidas em aulas, frases como esta:

- O historiador Fulano, que é marxista mas é inteligente…

A sua estória mais patusca tem a ver com um cão sem dono que ‘frequentava’ a Faculdade. Estava-se no final da década de 70. A FL/UP instalara-se em 1977 num precário edifício nas traseiras do Palacete Burmester, à Rua do Campo Alegre, situação ‘provisória’ [18] que se prolongou até 1995… E aí por -79 apareceu lá um cão abandonado; era bonito (chamavam-lhe «Branquinho», em função da cor) e dado às pessoas; tornou-se popular, tanto que no bar lá o iam alimentando; mesmo sem dono, o cão adquiriu casa e por ali andou um bom par de anos. Nos dias de sol gostava o «Branquinho» de ir para o anfiteatro pequeno e deitar-se a ferrar a sua soneca; dormindo ou apenas cochilando, esteve em muitas aulas de muitas cadeiras.
Num dia soalheiro o dito lente preparava-se para, às 11 h. da manhã, principiar uma aula. Começou assim:

- Hoje vamos iniciar um novo tema, vamos começar a tratar de revoltas e levantamentos populares na Europa do século XVII.

Abre-se então a porta, deixando entrar um pequeno grupo de alunos que se atrasara… e com eles o «Branquinho», buscando o lugar favorito para a soneca da manhã… Comentário do lente:

- Pois é, fala-se de revoltas e aparece logo um camarada !...

XXVI.

Na Faculdade de Ciências / UP, grupo de Geologia, houve um lente (ainda vivo, mas jubilado há pouco mais de 15 anos) que também deixou memória de estórias interessantes [19]. Era pessoa temperamental, muito sapiente e muito exigente, particularmente num Curso semestral de Mineralogia e Geologia, ministrado logo no 1.º ano / 1.º semestre de Engenharia Química. Portista ferrenho, derrota do F. C. Porto era o suficiente para desencadear tempestade no dia seguinte. Mas não era das feras-mais-feras da FC/UP, e quando bem disposto era capaz de derivar nas aulas para memórias pessoais.
Ficou célebre a estória que passo a contar. Dizia ele:

- Quando eu tinha a vossa idade fui pedir namoro à Colega de Curso mais gira; recebi um não. Despeitado, fui pedir namoro à Colega mais feia; recebi um sim; é hoje a minha Mulher…

XXVII.

Referido na estória XXIII., o Doutor Manuel Duarte Gomes da Silva [1915-1995]) é tido como um dos cérebros mais poderosos e brilhantes da FD/UL ao longo do século que passou, maugrado as suas limitações: desde muito jovem com problemas de visão, acabou por cegar completamente pouco depois de atingir a cátedra (meados da década de 40). Mas uma invulgar força interior e o apoio constante de familiares permitiram-lhe ensinar longamente, deixar Lições para praticamente todas as cadeiras que regeu (essencialmente no domínio do Direito Civil) e deixar ainda uma abundante produção no domínio da parecerística jurídica. Se a sua capacidade de comunicação era limitada perante um anfiteatro repleto, já nas cadeiras da post-graduação (o anteriormente referido 6.º ano jurídico, segundo a designação do tempo) e nas provas orais o diálogo com os alunos podia ser extremamente interessante e estimulante. E havia uma pergunta célebre que às vezes gostava de colocar nas ditas provas:

- Pode a Caixa Geral de Depósitos casar com o Banco de Portugal ?

Um non-sense, dir-se-á. Mas o diálogo a partir de tão insólita pergunta podia ser longo e funcionar propedeuticamente, no sentido do desenvolvimento da capacidade de argumentação dos alunos. «A cada justificação da impossibilidade da Caixa casar com o Banco, lá ia o Prof. Gomes da Silva objectando, apresentando argumentos invalidantes das justificações, socorrendo-se de analogias, comparações, enunciando premissas e consequências endoxais suficientes para arredar os motivos apresentados pelo examinando para se opor ao casamento da Caixa com o Banco. Por fim – lá casaram os dois, pois que remédio !».
Por tudo isto, quantos conheceram o Doutor Gomes da Silva lembram com saudade a Pessoa e os ensinamentos, decorridos que vão cerca de 11 anos sobre a sua morte.

Obs.: A fonte desta estória é o texto de Ruy de ALBUQUERQUE, «Prof. (O) Manuel Duarte Gomes da Silva: o Mestre e o Homem por detrás da obra», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Duarte Gomes da Silva, Lisboa / Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa / Coimbra Editora, 2001, pp. 5-252, de onde se transcrevem (p. 227) as passagens entre aspas e em discurso directo.

Armando Luís de Carvalho HOMEM

NOTAS:

[1] Ou seja, na sequência da jubilação do Doutor Elísio de Moura (1877-1977).
[2] Actual Instituto de História Económica e Social da FL/UC.
[3] Daí que muitos tenham podido elaborar as suas teses de licenciatura sem necessidade de deslocações sistemáticas, por exemplo, à Torre do Tombo.
[4] Testemunhos vários asseguram que o Doutor P… sabia de cor o horário dos comboios da Linha do Norte ! Mais: identificava-os pelo número de circulação ! Donde, o atribuirem-se-lhe frases como esta: – Meu Querido Amigo, gostaria imenso de continuar a conversar consigo mas não posso: vou agora viajar para o Porto no semidirecto n.º tal…
[5] Não sei de quando data o regime de épocas especiais para estudantes a prestar serviço militar ou tendo-o prestado até há pouco. Sei que, por razões óbvias, tal regime se intensificou nos anos 60 e que, sobrevivendo ao 25 de Abril e à descolonização, se prolongou pelo menos até aos alvores da década de 80.
[6] Moeda romana, de cobre.
[7] Designação antepassada de «trabalhador(a)-estudante».
[8] Se havia algo que o punha a ferver era qualquer atraso na devolução de livros da Biblioteca requisitados para leitura domiciliária…
[9] Tudo isto se passava no antigo (até 1959) edifício de Medicina (ao Largo da Escola Médica, actual Largo Prof. Abel Salazar), sede da FL/UP de 1962 a 1977 e depois, e até hoje, sede do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS).
[10] Lente de História Medieval recentemente aposentado.
[11] Lente de História Moderna em vias de aposentação.
[12] Tive nesse ano uma aluna hoje bem conhecida, Judite Fernanda de Jesus Rocha e Sousa, essa mesma, a Judite de Sousa, ao tempo a dar os primeiros passos nos programas matinais da RTP/Porto; licenciou-se ca. 1987. Também Fátima Campos Ferreira passou pelas minhas aulas (em 1978/79); licenciou-se em 1981.
[13] Não lhe chamo «professora primária» por razões óbvias…
[14] As aulas desta cadeira tinham lugar num dos anfiteatros maiores dos Gerais, concretamente o que tem janela para o pátio da Universidade.
[15] Éléments pour une histoire de la thèse, Paris, Diff. Klincksieck, 1993.
[16] Estabelecimento do Ensino Superior francês, sediado em Paris, que prepara os bibliotecários, arquivistas e documentalistas da Pátria do General Charles de Gaulle (1890-1970).
[17] N. 1927, membro do Institut de France (Académie des Inscriptions & Belles-Lettres), lente emérito da U. Paris I-Panthéon-Sorbonne, «maître de recherches honoraire» da École Pratique des Hautes Études (IVe section).
[18] O edifício destinava-se à Fac. Ciências, que nas imediações tinha já o Departamento de Botânica e o respectivo Jardim, bem como um Centro de Microscopia Electrónica. Mas em 1995 o edifício recebeu transitoriamente a jovem Fac. Direito e logo depois a Fac. Psicologia e de Ciências da Educação (saída às pressas da sua anterior sede – também provisória –, que ameaçava ruína). Direito passou para as novas instalações aí por 2002-2003; Psicologia há cerca de um ano; 30 anos depois de começar a ser utilizado, o edifício está em obras para finalmente ser entregue ao seu primitivo destinatário.
[19] Este lente fez parte da sua carreira na UC (anos 50), incluindo o doutoramento e o concurso para professor extraordinário.

Das Flores aos Frutos (Genealogia e Delineamentos de um Dizer)

Nota prévia: Este texto integra o CD Convívios Musicais, de Francisco Filipe Martins, e está já aí abaixo no blog, reproduzido do original. O corpo de letra, no entanto, é pequeno; daí que aqui o recoloque. Um prevenção: trabalhei sobre uma versão draft do CD, onde o alinhamento das peças não era ainda o definitivo. E uma última observação: há 10 anos que sou solicitado a escrever textos histórico-críticos a integrar CD's. Cumpre-me agradecer aqui a quantos, ao solicitarem-me tais textos, tanto me enriqueceram: Francisco Filipe Martins (duas vezes), Jorge Cravo / Manuel Borralho / José Ferraz de Oliveira / Manuel Gouveia Ferreira (também duas vezes), José Mesquita e a Comissão Organizadora da Homenagem a Nuno Guimarães <1942-1973> (Perosinho - Vila Nova de Gaia, Jan.97; reuniu-se em CD a obra gravada de NG em EP's 45 RPM).
Quem se encontre a par da longa – embora quantitativamente limitada – discografia de FRANCISCO FILIPE MARTINS (1964 ss.) algo depressa terá notado: há ali uma sonoridade diferente, que, não deixando de ser coimbrã, soa no entanto de forma outra. É isso visível logo em «introduções» de temas vocalizados por António Bernardino, quer no EP de 1964 (com António Portugal [g.] / Jorge Moutinho [v.]; maxime a «introdução» e o acompanhamento para «Fado Resende» [Ao morrer os olhos dizem / pára morte espera aí]), quer no LP Flores para Coimbra (1969; com António Portugal [g.] / Luís Filipe [v.]; v.g. os arranjos [e autorias musicais, nos terceiro e quarto casos mencionados] para «Flores para Coimbra», «Guitarras do meu País», «Trova da Planície» ou «E alegre se fez triste»).
Em 1986 o LP Canção da Primavera veio reforçar tal ideia: a sequência do tal som outro, peças de notável criação melódica – pontuadas de sugerências barrocas, rockies ou countries, como então escrevi [1]) –, a novidade da presença do violoncelo – da responsabilidade do entretanto desaparecido CELSO DE CARVALHO [Filho] –, o majestosamente inconfundível estilo da viola de RUI PATO… Um disco que escutei incontáveis vezes no meu gabinete de trabalho, por vezes incessantemente voltando as faces e tornando ao início… É claro que este álbum não foi propriamente pacífico. Não sei se alguém verbalizou críticas à introdução do violoncelo (mas a presença deste instrumento era discreta). Já a criação melódica e as sequências tonais deram algo que falar, e não faltaram discordâncias de cunho (ultra)-tradicionalista...
Dez anos mais tarde, Primavera 2. Música para Guitarra de Coimbra constituiria a confirmação / continuação de uma Obra: até nos títulos, com «Canção da Primavera», «Passo de dança» e «Momento Breve» a conhecerem peças sequenciais numeradas [2]. Recuperando quase todos os temas do álbum anterior, uma nova heterodoxia se patenteava: a introdução (agora) do violino, inclusivamente em «Despedida» (sobre a gravação de 1986). E, de novo, a incansabilidade da audição, permitindo concluir que continuávamos a ter ali material de primeira água e que a música de FRANCISCO FILIPE MARTINS se não parecia com a de nenhum outro executante de Guitarra, coimbrão ou de alhures. Poderia haver aqui e além apontamentos a fazer lembrar X ou Y. Mas nada disso era significativo.

Ao fim de exactamente 10 anos [3], FRANCISCO FILIPE MARTINS reaparece, com o CD Convívios Musicais. De novo o violino (MANUEL ROCHA, tal como há 10 anos) e agora também o piano (executado por seu Filho JOSÉ FILIPE MARTINS) se lhe associam, bem como a viola de ANÍBAL MOREIRA.
E a minha primeira observação diz respeito ao reafirmar dessa profunda originalidade de FFM: não se parece com ninguém em Coimbra… e não só. Se ocasionalmente, como já disse a propósito de anteriores gravações, aqui ou além pode fazer lembrar peças daquele ou daqueloutro, isso é ocasional e pouco ou nada pesa. E os ainda assim mais inequívocos vestígios de parentesco nos processos de composição reportam-se a PEDRO CALDEIRA CABRALEt pour cause !... Por alguma razão um ou outro coimbrinha mais impenitente lhe aponta traços lisboetas… E no presente CD poderíamos até exemplificar com passagens de peças como «Momento Breve n.º 4» [secções finais], «Diálogo de Gerações» ou «Antiga – anos 60». Mas nada disto – e é tão pouco... – se me afigura ruptura de paradigma ou algo que o equivalha. FFM é – e será sempre – profundamente coimbrão, queiram-no ou não os eternos “críticos da profissão que não exercem” (Jorge de SENA) do Universo do Canto e da Guitarra.

Procurando avançar: as peças deste novo CD ostentam estrutura que as permita qualificar como «variações» ? Vejamos: nos discos anteriores há uma peça original assumida como «variações», em Fá Maior, mais concretamente [4]; e pelo menos uma outra poderia, com toda a naturalidade, ostentar tal designação: trata-se de «Apontamento», bem intitulável como «Variações em mi menor» (ainda que não se trate de peça particularmente longa e ostente uma estrutura de repetição não muito típica das «variações» tradicionais) [5]; em menor grau, ainda «Improviso» poderia considerar-se no âmbito de uma expressão musical de «variações», mesmo que a peça comporte desenvolvimentos, sucessivamente, em Ré Maior e em lá menor e uma finalização em Sol Maior [6].

E no presente álbum ? Estrutura variacional verdadeiramente não a encontro em tema algum: as faixas do presente CD serão preferentemente qualificáveis como «canções», «danças», «estudos», pontualmente «love themes» constando da banda sonora, por hipótese, de alguma comédia romântica: é o caso, nomeadamente, de «Convívios Musicais – anos 80», tema onde o Piano é fundamental e que bem poderia ouvir-se no genérico inicial ou final de um filme; ou então ser escutado num piano-bar ao pôr-do-sol ou à noite…
O que não quer dizer que no meio de algumas peças não possam ocorrer frases de reminiscência variacional; ocorrem-me 4 casos:

I. O início de «Momento Breve n.º 4», sugerindo o arranque de umas variações em mi menor de compasso ternário, com texto musical na base de grupos (predominantemente) de 6 notas.
II. O segundo motivo de «Momento Breve n.º 5», igualmente uma frase em mi menor construída na base de grupos de 5-6 notas, mas agora em compasso quaternário.
III. A segunda frase de «Diálogo de Gerações», um quaternário em Mi Maior de algum modo simétrico neste modo da frase mencionada em II.
IV. E, finalmente, o segundo motivo de «Viagem Incerta», em Lá M, com desenvolvimentos que levam a 2.ª e 1.ª de fá # m, a 2.ª de Mi e a 2.ª de Lá.

Que musicalidade a das restantes peças ? Não se pense que este superar do ‘paradigma variacional’ em favor do melodismo – um melodismo, uma vez mais, de notáveis potencialidades em termos de fruição estética – faz de Convívios Musicais uma obra light. Não ! A excepcional capacidade de construção melódica, de que FFM continua a dar mostras, alia-se novamente com acordes virilmente afirmativos:

I. Veja-se desde logo, com especial vigor, «Momento Breve n.º 4», secções finais.
II. Pense-se na sucessão de acordes em ré menor do final de «Momento Breve n.º 5», criando um clima, também ele, com algo de tropical, embora não nos moldes das mornas que o Autor assume para o tema anterior, antes num universo sonoro a fazer lembrar temas de outros criadores, remontantes às décadas de 60 e de 70.
III. Tenha-se ainda em conta a série de acordes finais, numa sequência em Sol Maior, de «Antiga – anos 60», peça de 1964, surpreendente não tanto pela idade que o Autor contaria ao tempo como pela cronologia em si própria.
IV. Atente-se ainda nos acordes que pontuam os fortes desenvolvimentos em Lá Maior de «Diversão e Nostalgia» e «Viagem Incerta» ou em Sol Maior em «Solos de Bordões».

Recuando um pouco, que melodismo afinal o de FFM ? Dos anos 60 ficaram-nos os emblemáticos grupos de 3 notas na construção da melodia, característica que decididamente ajudou a marcar as novidades da década [7]. E esta novidade prolongou-se bem para além dos sixties, não apenas em casos em que executantes desse tempo se mantiveram activos, mas também quando outros mais jovens ulteriormente assimilaram tal proceder [8]; proceder que, aliás, não está de todo ausente em Convívios Musicais:

§ Em «Momento Breve n.º 4», em «Diálogo de Gerações», em «Enamorados» e em «Ilusões», por exemplo, esses trilos reaparecem (mais nitidamente no primeiro caso que nos restantes, embora).

Mas os predomínios vão naturalmente para grupos de notas em número superior. Em trabalhos que tenho em preparação [9] vou-me dando conta da importância, na construção melódica, de grupos de 5, 7 e 12 notas (ou seja, «mutatis mutandis», redondilhas menores, redondilhas maiores e alexandrinos [10]). Que dizer de FFM sob este ponto de vista ? É o que, de seguida, vou tentar patentear ao leitor, laboração que passará inclusivamente pela identificação de algumas relações ‘intertextuais’ com anteriores gravações:

i. «Momento Breve n.º 4», peça com desenvolvimento integral em mi menor, ostenta, como já se disse, um primeiro motivo na base de grupos (predominantemente) de 6 notas, ainda que os trilos façam a sua emergência à medida que se caminha para o fim, para as assumidas sugerências cabo-verdianas. O arranque é fora do comum, com o executante a pisar os bordões de Ré e de Lá e a(s) corda(s) fina(s) de Lá no segundo ponto, posto o que os primeiros grupos de 6 notas.
ii. «Momento Breve n.º 5» é o tema mais longo (4 minutos e 35 segundos) e um dos mais entusiasmantes numa análise como a que aqui proponho. Abre com um grupo de 16 notas, em clara intertextualidade com a abertura de «Momento Breve» n.º 2» [11]:

ii.a. – Arranque em Dó M, passando-se sucessivamente por lá m, 2.ª de lá (2 compassos), dó # m [12], 2.ª de si, 2.ª de mi (2 compassos), mi m, 2.ª de lá, lá m, lá m de 6.ª, mi m, 2.ª de mi, mi m;
ii.b. – Sequência passando por 2.ª de Dó, 2.ª de Fá, 2.ª de mi, 2.ª de Dó [pausa, seguinda da repetição total de ii.a.].
ii.c. – Frase variacional em mi m, compasso quaternário, passando-se sucessivamente por mi m, 2.ª de mi, mi m [bis]; Dó M, si m, lá m, lá m de 6.ª, mi m, 2.ª de mi, mi m; [segue-se repetição – com variantes – da 1.ª parte de ii.c.];
ii.d. – Frase tipo dança em ternário, desenvolvimento inicial em 1.ª e 2.ª de mi m, evoluindo para 1.ª e 2.ª de ré m.
ii.e. e ii.f. – Frases em ré, nos bordões de Lá e de Si, passagens essencialmente por 1.ª e 2.ª, com uma vinda a Fá M; na fase final uma sequência de diminutas, que antecede a repetição integral de ii.f.
ii.g. – Sequência de acordes, começando em si m e terminando em 2.ª de ré, com passagens intermédias por Ré M, lá m, 2.ª de mi, diminuta no 2.º ponto (= lá # / mi / sol / dó # / mi).
ii.h. – Alternâncias finais entre acordes de ré m (com mi) e de dó m (com ré); finalização em ré m.

iii. «Diálogo de Gerações»: De algum modo esta peça em Mi Maior de compasso quaternário, com intervenção de Violino, constitui a suite de «Passo de Dança n.º 2», do CD Primavera 2 [13]. Constando, no essencial, de dois temas, desenvolve-se segundo o esquema A / B / B’ / A’. O tema A apresenta sugerências barrocas (vivaldianas ?).
iv. «Enamorados»: Peça em lá m com associação Guitarra / Violino, ostenta sonoridades românticas, porventura evocantes de um choro brasileiro, segundo testemunho do Autor. Constando de dois temas ( A e B), desenvolve-se segundo o esquema A / B / A / B / A’.
v. «Solos de bordões»: peça em Sol Maior, ostenta também uma especial força; e é também a mais breve: 1 minuto e 36 segundos; desenvolvendo-se em compasso quaternário, compreende um total de dois motivos, que se sucedem segundo o esquema A / B / B’.
vi. «Rapsódia Anglo-Saxónica» é um tema gravado pela primeira vez em 1986, no LP Canção da Primavera. Peça fora de vulgar, apresentava um vigor muito especial, plena de sugerências rockies (porventura assumidas na adjectivação do título), com óptimas «1.ª» e «2.ª guitarras» por FFM e brilhante performance de RUI PATO em Viola. Não transitado em 98 para o CD Primavera 2 [14], o tema ressurge agora, numa versão austera e despojada, onde a(s) Guitarra(s) apenas se vêem complementadas pela Viola (do próprio FFM) na última secção. A ambiência geral que se pretende recriar é a de um tema palaciano de finais do século XV / princípios do século XVI. E a aposta foi ganha...
vii. «Conversas rolando»: Tema cuja origem (a execução do motivo incial num teclado ROLAND) é aqui devidamente explicada pelo Autor, desenvolve-se em Lá M, com um estreito relacionamento entre tónica e dominante (Lá M / fá # m), segundo o esquema A / A’ / B / A / A’ / B / Epílogo. Há um leve aroma country na finalização.
viii. «Viagem incerta»: Outro poderoso tema em Lá Maior, começa com um motivo em quaternário, na sequência Lá M, Lá M aumentado ( = fá / lá / dó # / fá), si m, 2.ª de Lá, Lá M; a segunda frase leva-nos – num dizer variacional, como já se salientou – a 2.ª e 1.ª de fá # m e, sequentemente, a 2.ª de Mi e a 2.ª de Lá; repete-se então, com uma ligeira variante, o motivo inicial [15]; a partir daqui alternam frases no modo menor e no modo maior de Lá (com algumas repetições variantes); o final apresenta sugerências clássicas «stricto sensu», entre o haydniano e o mozartiano.
ix. «Diversão e nostalgia»: Outra peça das mais breves do CD (1 minuto e 47 segundos), apresenta um possante arranque em Lá Maior (que consubstancia a «diversão»), seguido de 4 outros temas (mais evocadores da «nostalgia»), um dos quais de fecho: A / B [16] / A’ / C [17] / D [18] / Epílogo [19].
x. «Antiga – anos 60:» Primeira composição de FFM (1964, ou seja, aos 18 anos!...), inicia-se num tom nada vulgar – Si M –, mas logo evolui para desenvolvimentos (predominantemente) em Sol M, segundo o esquema A / B / A / B / C / C’ / D / C’ / D.
xi. «Ilusões»: Trata-se de uma das peças mais recentes (2005) do Autor. O desenvolvimento é em Mi Maior, compreendendo 5 secções: A [20] / B [21] / C [22] / D [23] / E [24].
xii. «Convívios Musicais – anos 80»: Já algo se disse sobre esta peça onde a articulação Guitarra / Piano é fundamental e cuja ambiência musical se revela «sui generis». Acrescentarei apenas que, nas suas 7 secções (segundo a estruturação A [25] / B [26] / B’ [27] / A [28] / B [29] / B’ [30] / A’ [31]), este é um dos temas onde se superlativiza o charme de todo o álbum, o qual leva a escutar o tema incontáveis vezes e, no final, a trauteá-lo com inegável gosto...

Algumas breves notas de encerramento:

a) Antes de mais, FFM continua excelentemente acompanhado neste seu novo trabalho discográfico: ANÍBAL MOREIRA patenteia-se como um dos grandes violas actuais, senhor de peculiaridades nas escolhas que faz [32] que decididamente o tornam um GRANDE SENHOR entre os executantes em actividade; o violino de MANUEL ROCHA é de nova a presença brilhante, sólida e eficaz que como tal há 10 anos se nos anunciou; e JOSÉ FILIPE MARTINS, nesta participação / acto de amor, demonstra-nos a compatibilidade, quase não experimentada [33], entre a Guitarra de Coimbra e o Piano. E não se esqueça que, qual alter ego de si próprio, FFM grava por vezes uma «2.ª guitarra» em pista sobreposta [34].
b) Tal como a discografia precedente, Convívios Musicais ouve-se sem parar, sem saturação, sinal da insaciabilidade de ouvintes perante sons que andam próximos da perfeição possível em Guitarra de Coimbra.
c) Por último, um pedido a FFM, feito por um admirador antigo e sincero da sua ARTE e da sua muito especial FORMA DE ESTAR na prática musical coimbrã: não nos faça esperar por 2016 para lançar o seu próximo CD !...


Porto, 19 de Maio de 2006


Armando Luís de Carvalho HOMEM *

Notas:

[1] Em carta a Rui Pato (1986.Mai.). Veja-se o meu ulterior texto «(Dez) Primaveras de uma Guitarra», incluído no desdobrável do CD Primavera 2: Música para Guitarra de Coimbra, de Francisco Filipe Martins, [Lisboa], Philips / Polygram, 1998, 8 cols. (disponível em http://guitarradecoimbra.blogspot. com [post de 2005/04/02]).
[2] N.os 2 nos dois primeiros casos, n.os 2 e 3 no restante; cf., no CD em causa, as faixas 1, 2, 3 e 6.
[3] Primavera 2 surgiu no Verão de 98, por alturas da EXPO; mas os temas estavam já gravados em Fevereiro de 96.
[4] Veja-se o CD referido supra, início da n. 1, faixa 7.
[5] As excepções mais evidentes contam-se pelos dedos de uma só mão; a peça «Apontamento» consta do CD referido supra, início da n. 1, faixa 4.
[6] Veja-se o CD referido supra, início da n. 1, faixa 12.
[7] Cf. o meu trabalho cit. supra n. 1, col. 4.
[8] Veja-se o que escrevi em «Herança [A] (possível) d’ “os Melos” na Guitarra de Coimbra: três temas de Álvaro Aroso (anos 70 / anos 80). Nótulas sobre práticas de uma certa Arte de navegar» [disponível em http://guitarradecoimbra.blogspot.com/ (post de 2005/03/08)].
[9] Sobre Artur Paredes (1899-1980), sobre Armando de Carvalho Homem (1923-1991) e sobre António Portugal (1931-1994), entre outros.
[10] A detecção da sílabas tónicas constitui a subsequente tarefa, nada leve, por sinal...
[11] Cf. o CD cit. supra n. 1, faixa 1.
[12] Com uma particularidade na execução deste acorde por Aníbal Moreira: deixar solta a corda grave de Mi e dar aí o bordão que enforma o acorde em causa.
[13] Faixa 2 do CD cit. supra, n. 1.
[14] O mesmo sucedeu com a interpretação das «Variações em Sol Maior» de Artur Paredes também patente no álbum Canção da Primavera.
[15] Ou seja, o esquema sequencial destas primeiras frases será A , B, A’.
[16] Em Mi M.
[17] Arranque em Dó M, sequência em lá m.
[18] Em lá m.
[19] Id.
[20] Em Mi M.
[21] Id.
[22] Id.
[23] Id.
[24] Id., com um toque de sugerência barroca a encerrar.
[25] G + P.
[26] Id.
[27] P.
[28] Id.
[29] G + P.
[30] Id.
[31] Id.
[32] Veja-se a observação produzida supra, n. 12.
[33] Salvo em contextos de «Música Antiga», mas aí não necessariamente o Piano, antes o Cravo e eventualmente o Pianoforte ou o Piano de Martelos. Modernamente (finais da década de 1960), houve um disco de baladas do cantor Carlos Portugal (onde andará ?...) cujo acompanhamento associava a Guitarra (a cargo de José Bárrio, outro ilustre desaparecido...) ao Órgão.
[34] V.g. em «Solos de Bordões», em «Rapsódia Anglo-Saxónica» e em «Viagem Incerta».
* Executante de viola de acompanhamento.

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