sábado, novembro 18, 2006

PRIMEIRAS JORNADAS SOBRE AS PRAXES ACADÉMICAS
SENTIDO ACTUAL E PERSPECTIVAS
(Instituto Piaget, Viseu, 29 e 30 de Abril de 2003)

Primeira Parte
MEMÓRIA JUSTIFICATIVA
(documento base, remetido aos palestrantes convidados em ofício de 06 de Março de 2003)
Vão ter lugar, nos dias 29 e 30 do próximo mês de Abril do corrente ano de 2003, na Aula Magna do Campus Universitário de Viseu do Instituto Piaget, as “Iªs Jornadas Subordinadas ao Tema: As Praxes Académicas – Sentido Actual e Perspectivas”.
Pretende-se que este evento se venha a traduzir numa fundamentada e séria reflexão de natureza multidisciplinar: História, Antropologia, Sociologia, Política, Ética, Direito…
Com essa finalidade, convidámos professores universitários, investigadores e outros especialistas nacionais e estrangeiros, ao mesmo tempo que diligenciámos para que esteja garantida a participação activa de representantes estudantis das principais academias do país, de reitores de universidades, de dirigentes de outras instituições de ensino superior, de movimentos “pró” e “anti-praxe”, bem como de deputados representativos dos diferentes grupos parlamentares com assento na Assembleia da República…
Entendemos, assim, que o tema, nem pelo facto de ser controverso ou polémico, de modo algum deverá dispensar o estudo isento e criterioso, a reflexão serena, aberta e polifónica, por forma a obviar que se incorra em atitudes desproporcionadamente emocionais e “fundamentalistas”, seja em que (e de que) sentido for…
Afigura-se-nos que estas Jornadas, assim pluralmente concebidas e planeadas, irão constituir um contributo oportuno necessário e uma esperançosa ponte para um novo e mais humanizado e construtivo ciclo, no multidimensional enfoque e na complexa implicabilidade que a velha questão das “praxes académicas” comporta e que ultimamente, têm estado na berra na Comunicação Social, raramente de modo isento e desapaixonado e, quase sempre, unipolarmente exarcebado e bem longe do desejável sentido de objectividade…
De facto, sem uma problematização fundamentante e um questionamento indagador do sentido das coisas em sua dimensão histórica, antropológica, sociológica, cultural, política, ético-axiológica e jurídica, sem uma ponderação crítica, marcada e conduzida pela preocupação de rigor analítico e de probidade intelectual, intersubjectivamente averiguadora, contrastante, testadora e ajuizadora do que efectivamente se passa e está em jogo, parece-nos ser precipitada, superficial e eventualmente injusta aquela prática de generalização acrítica e imediatista que propende linearmente a julgar e a condenar, sob um qualquer pretexto, preconceito ou fobia, o fenómeno em questão…
Entendemos, portanto, quer será bem mais pertinente e formativo contrapor à pressão leviana e irreflectida de qualquer instância de poder ou ao ritmo oportunista da cinética mercantil e sensacionalista de telejornais e de redacções radiofónicas, jornalísticas ou similares, o prévio cuidado de saber efectivamente “o que é” e o “o que significa” o fenómeno das “praxes académicas” em seu específico e complexo enquadramento antropológico-cultural e social nos ciclos da vida humana, com seus rituais iniciáticos e de passagem, os seus trajes e insígnias, os seus programas e os seus “números”, as suas “lutas”, os seus cortejos e desfiles, as suas tunas, danças e canções, em suma, as suas práticas [“praxes”: tradições, usos e costumes] expressionais: o que delas se sabe (ou delas se julga saber…), os seus ícones e emblemas, as suas imagens e representações, a sua tradução mediática, os discursos, gestos, valores e contra-valores, juízos e valorações que as configuram, materializam, suportam e sancionam, os multilateriais riscos e incúrias que as acompanham, numa palavra, o com elas realmente vem acontecendo no exacto contexto em que acontece, a concreta dimensão e gravidade dos seus abusos ou excessos, a real cronotopia e singularidade das suas ocorrências e tentar interpretar, com o indispensável labor hermenêutico, brechtiano distanciamento e “frieza” emocional, a “polifonia” simbólica, catártico-libertária, dionisíaco-báquica, lúdico-dramática, irónica, fársico-satírica e retórico-espectacular das quase sempre contraditórias “versões” narratológicas veiculadas pelos “agonistas” (prot-agonistas e anti-agonistas…) respectivos… Tudo isso, sem rasurar a dimensão pulsional, erótico-libidinal, da afirmação de “hierarquias” e da reprodução de poderes e “estatutos”, no quadro instável da dialéctica “sapiens-demens”, conatural à condição antrópica de todo e qualquer ser humano…
Por outro lado, não terá cabimento perguntar, em consonante e aprofundante complementaridade, se não será de pôr em causa a tradicional e clausurante “lógica” do humano, reconhecidamente individualista, egocêntrica e exclusora, porque baseada no argumento do “tertium non datur”, o mesmo é dizer, no monadismo ipseídico que deflui da assunção do tautológico princípio da identidade (A é A: Eu sou Eu…) para a transcender superadoramente numa nova “lógica” desse mesmo humano, mas agora impessoal, alargada e generosamente alterocêntrica e modernamente reflexiva e inclusora (ao implicar em sua constitutiva essência um compreensivo e integrador “tertium datur”, à Lupasco, à Lévinas, à Ricoeur…) segundo a qual, ser homem é ser sempre e ao mesmo tempo o próprio e o outro sem exclusão de ninguém?...
E como pensar, hoje, a “subjectividade” à margem de uma multipolar e solidária rede de complexas correlações e interacções dialógicas entre sujeitos [intersubjectividade; interpessoalidade…]?... Em suma e uma vez mais: o que é a verdade, qual o seu sentido e onde é que ela mora?...
Mas toda essa abordagem à questão das “praxes académicas”, seja qual for o entendimento que venha a prevalecer, jamais poderá deixar de se subordinar ao princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana e ao princípio de liberdade e de corresponsabilidade, consagrador do “direito” à diferença, nomeadamente ao nível de concepções, perspectivas, visões do mundo, crenças, convicções e opções…
Assim é que, para bem dos estudantes e das instituições de ensino superior do nosso país, públicas e não públicas, importa reflectir muito especialmente sobre os abusos e exageros que, de modo arrastado e des-responsabilizante, se têm vindo a acumular ao longo do tempo e erradicar toda e qualquer prática [praxe] que ponha em causa a dignidade do se humano e o exercício de uma liberdade responsável… Importa, pois, meditar com serena e clarividente lucidez… para agir em direcção a uma sábia, porque sensata e prudente [pre-vidente e pró-vidente], regulação…

Viseu, 2003.03.06
Pel’A Comissão Organizadora
Fernando Paulo Baptista

ESQUEMA PROGRAMÁTICO
Dia 29 de Abril
Parte da manhã
09:30: Recepção e distribuição de documentação
10:00: Sessão de abertura: Intervenções oficiais
10:30: Comunicação inaugural pelo Prof. Doutor Albertino Gonçalves, do Departamento de Sociologia da Universidade do Minho: “As praxes académicas. Abordagem sociológica e global de um fenómeno”
11:30: Intervalo
12:00: Debate – moderador: Prof. Doutor José Silvestre, do Instituto Piaget, Viseu
13:00: Almoço
Parte da Tarde
14:30: Comunicação do Prof. Doutor José Carlos Pina Almeida, do Gabinete de Sociologia do Instituto Piaget, Macedo de Cavaleiros: “As praxes e a Academia. Ressocialização e Celebração do Espírito Académico”
15:30: Debate – moderador: Mestre Carlos Nolasco, do Instituto Piaget, Viseu
16:00: Intervalo
16:30: Comunicação pelo Sociólogo Michel Maffesoli, do Centre d’Études sur l’Actuel et le Quotidien – Sorbonne, Paris V: «Les bizutages – sens actuel et perspectives»
17:30: Debate – moderador: Mestre Françoise Royer Cruz, do Instituto Piaget de Viseu

Dia 30 de Abril
Parte da manhã
09:30: Comunicação pelo Mestre António Manuel Nunes: “As praxes académicas de Coimbra. Abordagem histórico-antropológica”
10:15: Comunicação pelo investigador Mestre Aníbal Frias: “O que é a praxe académica?”
11:00: Intervalo
11:30: Mesa Redonda. Moderadores: Prof. Doutor João Pedro de Barros (Presidente do Instituto Piaget de Viseu e do CC dos IP’s) e Mestre Luís Cardoso (Instituto Piaget, Macedo de Cavaleiros); intervenções de dirigentes das principais academias; duces veteranorum e presidentes dos concelhos de praxe, dos movimentos anti-praxe, reitores de universidades e outros dirigentes de instituições do ensino superior.
13:00: Almoço
Parte da Tarde
14:30: Mesa Redonda – moderador: Prof. Doutor Manuel Viegas Tavares, do Gabinete de Investigação em Antropologia do Instituto Piaget, Almada:
a) perspectiva política: intervenção de Deputados dos Grupos Parlamentares com assento na Assembleia da República
-PP: Deputado João Almeida (Coordenador da Comissão Educação, Ciência e Cultura)
-PSD: Deputado Pedro Alves
-PS: Deputada Jamila Bárbara Madeira
-BE: Dr. Alexandre Pinto
-PEV: representante a indicar
b) perspectiva ético-axiológica: intervenção do Doutor Padre. Milton da Encarnação (Professor de Ética do Instituto Piaget de Viseu)
c) perspectiva jurídica: intervenção do Mestre Manuel Martins (Professor de Direito Comunitário do Instituto Piaget de Viseu, galardoado com o Prémio Jacques Delors); intervenção do Dr. José Miguel Júdice (Bastonário da Ordem dos Advogados); intervenção do Dr. Manuel Cristino M. Gonçalves (advogado e antigo orfeonista do Orfeon Académico de Coimbra); intervenção do Dr. Pedro Alexandre do Carmo Martins Fernando (Procurador da República no Departamento de Investigação e Acção Penal de Coimbra)
17:30: Sessão solene de encerramento

SEGUNDA PARTE
I. Das praxes académicas…

O tema das praxes é bem mais complexo do que à primeira vista possa parecer e suscita paixões antagónicas que, frequentemente, se traduzem em unilaterais e intolerantes exclusões (radicalistas ou mesmo fundamentalistas...), que decorrem, ora da dominante mais racional, ora da dominante mais transracional (instintiva, pulsional, animal...) que se coloque na sua análise e interpretação... E, como disse Michel Maffesoli na sua magnífica comunicação nas já célebres Jornadas dos dias 29 e 30 de Abril de 2003, ocorridas no Campus Universitário de Viseu, do Instituto Piaget, sempre que o “logocentrismo” da racionalidade e, com ele, o teologismo angelizador (porque Deus é o Logos — o Verbo — por excelência e a sua criatura — o homem — terá de ser perspectivado à sua imagem e semelhança e, em coerência, assepticamente purificado e expurgado de toda a “demonialidade” ctónica, para poder voltar a fruir soteriologicamente da entrada no paraíso perdido depois do pecado original...), sempre que o logocentrismo da racionalidade e o teologismo angelizador, vinha eu dizendo, intentam a “depuração” purificadora das “impurezas” do homem (que lhe advêm dessa “animalidade” instintiva que é, no fundo, o suporte vital da sua condição antrópica…), a pedagogia tende, “in extremis” (através daquelas “purificações” e “catarses” inculcadas...), a perverter-se numa “pedofilia” que, como se sabe, configura, sob o ponto de vista etimológico-semântico, uma oximórica “contraditio in terminis” e, do ponto de vista da sua ocorrência real, uma abominável aberração, a merecer o enquadramento penal de crime contra a humanidade...

No horizonte final dessa perversão exorcizante e unidimensionalizante, originária de qualquer dos pólos em conflito (racional vs animal; sapiens vs demens…) já não espantará a emergência das consabidas “inquisições” e “holocaustos” de toda a ordem de que a História nos vem dando conta e de que a actualíssima invasão do Iraque não deixa de ser paradigmático exemplo, quer com a perversa causalidade que lhe está subjacente (e encarnada na sanguinária figura de Saddam, com os genocídicos extermínios por ele perpretados, então com o conivente silêncio de quem estrategicamente, por hegemónico interesse, o apoiava…), quer com a cruel desumanidade das crianças mortas e feridas no quadro dessa guerra “purificadora” (decidida, importa lembrá-lo, em nome de Deus, contra o “eixo do mal”…) quer com o simbolismo da meticulosa protecção militar ao edifício do ministério do petróleo que o manteve intacto e da vandálica pilhagem dos museus de Bagdade, paradoxalmente, completamente desprotegidos e postos a saque…

Devo dizer, por outro lado (e esta era e é a minha sincera convicção pessoal…), que o Instituto Piaget, enquanto tal, não é nem tem que ser a favor das praxes ou contra elas... Não se deve iludir, sim, a consciência de que elas existem e, por isso, importará não fechar os olhos a essa realidade... Assim é que, face ao primeiro “caso” que ocorreu numa das suas escolas (a de Macedo de Cavaleiros), com sintomas expressionais suscitadores de natural preocupação, foram accionados os mecanismos e tomadas as medidas adequadas no quadro da estrutura orgânica e normativa da própria escola. Por isso, importará reler atentamente o texto da “Tomada de posição” que institucionalmente fui incumbido de redigir.

II. Tomada de Posição
(RELATIVAMENTE AO MODO COMO TEM SIDO ABORDADA NA COMUNICAÇÃO SOCIAL
A QUESTÃO DAS “PRAXES ACADÉMICAS” NO INSTITUTO PIAGET)

1. O Instituto Piaget, ao consignar em seus Estatutos como nuclear razão da sua existência e da sua acção o desenvolvimento harmonioso, integral e ecológico da pessoa humana, partilha de uma filosofia pluralista de matriz antropológico-cultural e filantrópica, inspirada nos valores primordiais de um humanismo criativo, inclusor e inovador, valores esses que assume, por inteiro, na quotidiana concretização do seu vasto projecto de formação, investigação e intervenção/animação, nos planos ético-axiológico, científico, pedagógico, cultural e social.

2. As Universidades, Escolas e Institutos criados e instituídos pelo Instituto Piaget têm Direcções responsáveis que procuram pautar a sua actuação por aqueles mesmos princípios e valores e têm, igualmente, específicos órgãos dotados de autonomia (e.g.: o Conselho Consultivo, o Conselho Disciplinar…) e regulamentos internos para cumprir e fazer cumprir.

3. Assim é que a Direcção da Escola Superior de Saúde Jean Piaget, em Macedo de Cavaleiros, na reunião do primeiro dia de aulas (seguindo, aliás, uma prática habitual no início de cada novo ano académico), para além do apoio oferecido a quem dele eventualmente viesse a necessitar, alertou os estudantes e respectivas organizações para a necessidade de se promover um saudável ambiente de integração dos novos alunos e o respeito pelos direitos individuais de cada um e que, no que mais especificamente às praxes dizia respeito, aos alunos que assim o entendessem assistia o direito de recusa a qualquer praxe que considerassem abusiva ou menos própria. Cabe referir, neste contexto, que a aluna que viria a queixar-se esteve presente nessa reunião [tal como consta da folha de presenças por si própria assinada…], não se recusou [tendo podido fazê-lo…] a realizar qualquer dos mandatos praxísticos que, posteriormente, lhe vieram a ser formulados nem tão-pouco procurou, junto da Direcção do Curso ou da Escola, o apoio que, em tal reunião, a todos os alunos havia sido disponibilizado…

4. Não deixa, todavia, de ter cabimento sublinhar, a este propósito, ser suposto que os estudantes do Ensino Superior já são, em princípio, pessoas adultas, capazes não só de decidirem das suas opções pessoais e de se organizarem autonomamente nas iniciativas que lhes são próprias (como é o caso das praxes académicas e respectivos “códigos”) e que, portanto, dispensam qualquer tipo de “paternalismo” (no Ensino Superior não há lugar, como se sabe, a Associações de Pais e Encarregados de Educação…), sendo, a essa luz, de esperar que se comportem de forma responsável e digna.

5. Por outro lado e que se saiba, para além da referida oferta de apoio e daquelas consciencializadoras e alertantes recomendações inaugurais, em nenhuma instituição de Ensino Superior, pública ou não-pública, os órgãos de direcção respectivos têm condições para qualquer tipo de “policiamento” ou “controlo” ad hoc nem capacidade revogatória de usos, costumes e tradições, nem tão-pouco dispõem de qualquer mecanismo de imunização a priori (vacina ou similar…) a que profilacticamente se possa recorrer para prevenir a eventualidade da emergência (sempre imprevisível…) de condutas excessivas ou desviantes, tanto nos “actos de praxe” como em qualquer outra situação do quotidiano académico…

6. Ou será descabido invocar, por exemplo, a «era do vazio» e «o crepúsculo do dever» (G. Lipovetsky) para tentar compreender tantos dos verdadeiramente preocupantes aspectos da “fenomenologia do social” que marcam este nosso tempo “pós-cultural” (G. Steiner), com clara incidência, repercussão, projecção e, mesmo, promoção nos grandes media?… Poderá tudo isso dissociar-se da relevância telemediática e internética de programações e de sites cuja singularidade reside fulcralmente no baixo nível axiológico (ético-moral, poético-estético…), na afronta sistemática à dignidade da pessoa humana (barbarização, violência, escândalo, impudor, devassa e espectaculização da intimidade (e.g.: os reality shows), objectificação mercatória da figura da mulher, mercantilização do sexo, pornografia…), na banalização do trágico, da morte e do sagrado, na “rasquização” das dimensões simbólica e comunicacional através do recurso indiscriminado a estilos e registos expressionais e sémio-linguísticos degradados e degradantes (pós-linguagem, sub-linguagem, “linguagem de caserna”, baixo calão, calão do calão…), etc., etc.?… Não era nesse sentido que deveria direccionar-se, centradamente, o grande “combate” interpretativo, reflexivo e formativo, ou seja, a acção educativa fundamental, desde a família, à escola e à comunicação social, com especial destaque para o papel da TV e da Internet?…

7. A nossa aluna apresentou queixa contra praxantes anónimos, cuja identidade, portanto, não mencionou na carta por si dirigida à Direcção da Escola, circunstância esta que veio dificultar, com o seu consequente arrastamento no tempo, as diligências indagativas cometidas à Comissão de Inquérito… Além disso, essa queixa só foi feita passado um mês por sobre os factos que alegadamente a afectaram… Por isso mesmo se pergunta: não será estranha uma tal demora, para quem na carta alega ter sido tão violentada e tão humilhada? Por que é que tal participação não foi feita logo nesse mesmo dia e, pelo contrário, se esperou um longo mês para o fazer?…

8. Não obstante tudo isso, os responsáveis pela Direcção da Escola tomaram as medidas que estavam ao seu alcance e accionaram, de imediato, os mecanismos regulamentarmente previstos: audição da aluna; disponibilização de toda a segurança e apoio possível; nomeação de uma “Comissão de Inquérito” (que integrou uma enfermeira, uma psicóloga e uma jurista); suspensão de todas as actividades relacionadas com as praxes; reunião do Conselho Consultivo e do Conselho Disciplinar da Escola… Será isto agir de modo irresponsável?…

9. Mas a verdade é que a Comissão de Inquérito, fundamentando-se no conjunto dos depoimentos e demais documentos que integram o processo por si instruído, concluiu que a aluna não só estava devidamente informada de que podia recusar-se a fazer qualquer praxe, designadamente se a considerasse abusiva ou menos própria, mas também (e estes eram os aspectos inquestionavelmente mais relevantes e gravosos que importava apurar…) que ela, segundo o depoimento por si própria subscrito nos autos do processo, não considera que os actos praxísticos praticados [predominantemente por raparigas, colegas suas de curso, mais antigas…] fossem feitos com malícia, nem com uma carga sexual, mas sim, com a intenção de brincar com a situação [tratando-se, muito embora, de brincadeiras de mau gosto...] e que não se sentiu violentada nem física nem sexualmente.

10. Ou seja: face ao depoimento da aluna, face ao conjunto dos depoimentos e demais dados constantes do processo (conduzido com serenidade, com critério, isenção e rigor analítico pela Comissão de Inquérito…), a queixa que ela apresentara em carta (estranhamente e como ficou referido, só depois de decorrido um mês após a consumação dos acontecimentos…) não só não se revestia da gravidade que ela aí lhe atribuía, como, à luz dos factos apurados, configurava uma versão com eles contraditória, além de exacerbada por claras marcas de subjectivismo e de inconsistência, não tendo, pois, qualquer cabimento a hipótese de se tratar de uma situação em que efectivamente se possa falar da existência quer de “vítimas” quer de “algozes”… Por isso mesmo, ocorre perguntar: como pensar, hoje, as categorias do “sujeito” e da “subjectividade” à margem de uma multipolar e solidária rede de complexas correlações e interacções dialógicas entre sujeitos: intersubjectividade, interpessoalidade? Os próprios “objectos”, para serem “objectivos”, poderão dispensar a (inter)subjectividade que os constitui e configura?... Ou será que os “objectos” têm a asseídica capacidade de se autoconstituírem como “objectos”?… Afinal o que é a verdade, qual o seu sentido e onde é que ela mora?...

11. Para a Direcção da Escola, os alunos, todos os alunos indistintamente, são a essência da Escola e, por isso mesmo, também, a razão primeira e última da sua própria honra e dignidade.

12. Que não reste, portanto, a menor dúvida a esse respeito: se se tivessem verificado e confirmado práticas tão graves como as referidas pela aluna na carta em que fez a sua (tardia) queixa, os autores de tais práticas, fossem eles quem fossem, teriam sido sancionados pura e simplesmente com a pena de expulsão!…

13. E se, de entre os alegadamente exorbitantes praxistas, algum «culpado» haveria que fosse merecedor de pena mais pesada, foi a própria aluna queixosa que, com o seu livre e clarificador depoimento nos autos do processo (cf. supra, ponto n.º 9), acabou por o ilibar…

14. Em todo o caso e tendo em conta o apuramento factual que foi possível conseguir, o «registo» repreensivo feito por escrito e por escrito exarado no processo individual de todo e qualquer aluno assim sancionado, do ponto de vista disciplinar, não é um gesto punitivo despiciendo ou bizarro nem, muito menos, configura uma qualquer “bizantinice” burocrática e arbitrária: é que, numa situação de reincidência, aquele «registo» passa a constituir automaticamente a base memorial e jurídica de referência [scripta manent…] e de agravamento para a possível aplicação, por exemplo, duma pena expulsatória…

15. A Direcção da Escola, ouvido o Conselho Consultivo, fundamentando-se na apreciação cuidadosa da pluralidade dos depoimentos carreados no processo (designadamente, os testemunhos de outras alunas praxadas nos mesmos moldes da aluna queixosa…), na leitura atenta do relatório, na ponderação relativizadora das conclusões produzidas pela Comissão de Inquérito e tendo em conta a proposta do Conselho Disciplinar, aplicou as sanções que, no uso das suas prerrogativas institucionais e em consonância com as normas constantes do Regulamento Disciplinar da Escola, entendeu dever aplicar.

16. E fê-lo, consciente de que (à semelhança, aliás, do que se passa até mesmo com os mais perfeitos dos tribunais humanos, o mesmo é dizer, com os mais sábios dos juízes…) o enquadramento normativo dos factos e a decisão jurídica que os sanciona estão longe (como sempre estiveram…) de concitar a concordância sobretudo de quem, sem fundamento bastante e de modo superficial e leviano (se não mesmo com outras intenções, motivações ou interesses…), se dedica a formular judicações valorativas e acusatórias a posteriori…

17. Em suma: a Direcção da Escola, ao proceder como procedeu, ao accionar os órgãos instituicionais próprios e ao aplicar os normativos regulamentarmente previstos, além de não ter cometido qualquer irregularidade, esteve também à altura das circunstâncias, tal como se pode concluir da leitura do relatório final da Inspecção Geral da Educação com que a Tutela encerrou a questão…

18. E porque cultivamos o entendimento e assumimos a postura de que importa persistir no desafiante, ainda que exigente e doloroso, caminho e exercício do aperfeiçoamento permanente, a emergência deste caso, simultaneamente singular e complexo, suscitou, a partir do interior do Instituto Piaget, o desencadear de uma reflexão que seguramente bem mais se justificaria a partir de fora, tantos e tais são os sinais que, ano após ano, se vêm acumulando, sem qualquer resposta da parte das instâncias que têm o poder e o dever de a dar…

19. Mais ainda: a partir de tal emergência, mesmo casuística e localizadamente circunscrita, decidimos tomar em mãos e promover, de forma patente, aberta e plural, o questionamento sério e especializado de um consabido e generalizado estado-de-coisas que vem afectando todo o Ensino Superior, mas que se tem arrastado latentemente, se é que não mesmo silenciadoramente…

20. Foi assim que, em complemento das recomendações e das advertências feitas e das sanções aplicadas, ficou decidido pela Direcção do Instituto Piaget levar a cabo as “i.as jornadas sobre as praxes académicas — sentido actual e perspectivas”, a terem lugar nos dias 29 e 30 de Abril na Aula Magna do seu Campus Universitário de Viseu, tendo como nucleares objectivos proporcionar uma reflexão de natureza multidisciplinar [História, Antropologia, Sociologia, Política, Ética, Direito…] sobre o tema e contribuir para uma visão plural, aberta e integradora, que possa fundamentar as medidas que se entendam indispensáveis a uma adequada regulação jurídica, eticamente dignificante, das tradições académicas na polimorfa diversidade da sua expressão concreta.

21. Tal não obviará, por certo, a que, mesmo assim, possam ocorrer, por um lado, actos praxísticos desviantes ou anómalos, nem garantirá que não continuem a verificar-se, pelo outro, as mais simplistas e mais “fundamentalistas” das posições contra as praxes académicas… Essa é, afinal e paradoxalmente, a “grandeza” e a “miséria” da antrópica condição “sapiens-demens” (Edgar Morin), “anjo e besta” (Pascal), do ser humano…

22. Mas o que já não parece tolerável é que, a partir daquela estranhamente tardia queixa epistolográfica (posteriormente contraditada, como se viu, em seus aspectos mais relevantes e mais graves pela sua própria autora…), se estabeleçam identificações da acção global de uma instituição e seus dirigentes, tão abusivas e tão ofensivas como as seguintes: «O assunto é vergonhoso e […] o Instituto Piaget aceitou misturar-se nessa vergonha…»; «é vergonhoso que o Instituto Piaget […] tenha — subtil mas deliberadamente — culpado a aluna pela «má fama» da escola, associando-se a uma prática burlesca, bárbara e alarve»; «o Instituto Piaget […] associa-se ao estatuto das «praxes», um conjunto de regras ignóbeis e fascistas, autorizando que a «academia» […] continue a praticar impunemente as suas selvajarias». E chega-se mesmo ao cúmulo de recomendar ao Ministro (com uma intencionalidade que visa claramente prejudicar a instituição…) o urgente encerramento de uma Escola Superior, com comprovado historial ao serviço da região (nordeste transmontano) em que está implantada!… Recomendação feita, alegadamente, «para defender o bom nome de Jean Piaget»!!!…

23. Considere-se, ainda e a propósito, o nível do vocabulário jornalístico usado e dos epítetos aplicados, bem como das ironias, ideologemas, símiles, associações e conotações judicantes e valorativas: boçalidade bruta... cenas imbecis... circo das feras... energúmenos... engrossar o urro... grupo de imbecis... massacres hediondos... o rebanho... passado pidesco… prática burlesca, bárbara e alarve... praxantes brutais... regras ignóbeis e fascistas... refocilamentos na lama… repreensão aos imbecis... repreensão dos meliantes... tradição imbecil... vício das trevas…

24. Por isso mesmo se pergunta: o que é que, no essencial, diferencia e distingue uma “praxe jornalística” deste teor e estilo… das “praxes académicas” que ela, “praxe jornalística”, em sua radicalidade e fundamentalismo judicativo e valorativo, simplismo analítico-interpretativo e reducionismo antropológico-cultural, pretende exautorar e ver abolidas?…

25. A verdade é que é a tudo isto que o Instituto Piaget vem sendo identificacionalmente associado em alguns dos escritos surgidos na Comunicação Social, escritos esses que praticamente nada mais tiveram em consideração, a não ser a referida tardia carta da nossa aluna, e num tom acusatório tal… como se à Direcção da Escola possa ser imputada qualquer responsabilidade quanto ao que alegadamente terá acontecido!…

26. Tais escritos, quando se pronunciam sobre as penas aplicadas (sem cuidarem previamente das concretas circunstâncias e condições em que o foram…), além de reflectirem uma postura profissional emocionalmente desequilibrada, apaixonada e reactiva, deontologicamente desproporcionada e falha de isenção e espírito crítico, configuram, também, uma preconceituosa e, por isso mesmo, pouco rigorosa visão das coisas, do mundo, da vida e da história…

27. Foi, pois, dessa maneira que, objectivamente, se atentou contra o bom nome e a dignidade de toda uma instituição e, assim, contra o bom nome e a dignidade de quem a dirige e de quem nela estuda e nela trabalha; de uma instituição, em suma, que, mesmo com as suas naturais imperfeições (aponte-se uma só que as não tenha!...), tem dedicado o melhor de si própria ao desenvolvimento das pessoas, das regiões e do país…

28. Por isso se questiona, uma vez mais: será assim, de um modo tão inusitadamente insultuoso e ofensivo, que se podem estabelecer “referências” crítico-construtivas para o que quer que seja? Será assim, por essa via, que se afirma a dimensão sapiencial de uma matura idade, suposta no estatuto intelectual de quem assume a escrita jornalística ou literária para moldar uma opinião pública eticamente estruturada e esclarecida?…

29. Ora, os escritores e os jornalistas, pelo seu estatuto intelectual e pela dimensão ética postulada em seus específicos desempenhos, não são pessoas quaisquer…

30. Do mesmo modo, os órgãos da comunicação social (diários, semanários, magazines ou revistas…) que, pelo prestígio social e cultural justamente conquistado, se vêm distinguindo e afirmando como paradigmáticos “marcos de referência” não deverão, em nosso entender (e até por força do respectivo estatuto editorial e código deontológico…), correr o risco de virem a ser confundidos ou identificados com aquele outro tipo de media mais vocacionados para acolher, no arquivo das suas manifestações textuais, práticas de escrita que pouco ou nada têm que ver com o saudável exercício de uma crítica que se deseja livre, mas igualmente responsável, porque correcta e polifonicamente fundamentada e, desse modo, consagradora do multiperspectivismo interpretativo e narrativo…

31. Assim sendo e no pressuposto de que o reconhecimento e a assunção do erro, esteja ele onde estiver, pode e deve constituir o primeiro e decisivo passo no rasgar de um novo horizonte na vida das academias, convidamos os jornalistas que assim o queiram, mesmo aqueles que nos atacam, a virem até junto de nós para participarem nas “i.as jornadas sobre as praxes académicas — sentido actual e perspectivas” e aí defenderem, com a elevação e a profundidade de que são capazes e a que o seu “estatuto” intelectual obriga, as suas posições ou pontos de vista, dando, desse modo, o seu prestimoso contributo para a superação do actual estado-de-coisas.

32. Podem, pois, ficar sossegados todos quantos com a maledicência fácil se comprazem, que o Instituto Piaget, como até aqui sempre tem acontecido, confiante nos valores que também tem e cultiva, possui coragem bastante para continuar a honrar e a dignificar, com o seu projecto e com a sua acção, o nome imorredouro do seu Patrono, Jean Piaget!

Viseu, 2003.03.31
Pel’ A Comissão Organizadora
das “I.as Jornadas sobre as praxes académicas — sentido actual e perspectivas”
Fernando Paulo Baptista

Quando, pois, foi decidida a realização das “Jornadas sobre as Praxes Académicas” não foi por qualquer exotismo ou capricho programático nem muito menos por uma questão de nos envolvermos opcionalmente na sua defesa. Foi com a consciência de que este fenómeno vem alastrando em todo o Ensino Superior com os riscos e excessos conhecidos, sem que as instâncias do poder tenham feito o que quer que seja para o enquadrar dentro de parâmetros de “razoabilidade” [ou seja, numa espécie de síntese entre o “cogito” e o “cœur” ou entre a “ratio” e a “animalitas”...] que não é o mesmo que “racionalidade”: sempre rejeitei os modelos hermenêuticos, epistemológicos, culturais ou outros, assentes numa qualquer unidimensionalidade lógica e monofónica...

Mas parece que foi preciso ter acontecido este caso numa escola do Instituto Piaget para ganhar foros de verdadeiro escândalo nacional e de uma relevância nunca vista!… Mais que isso: de uma hostilidade, na comunicação social, sem precedentes relativamente a qualquer outra instituição de Ensino Superior, pública ou não-pública, sabendo-se, como se sabe, que todos os anos se verificam, um pouco por toda a parte, casos tão ou mais graves... Tal a hipocrisia com que se fala em código deontológico: “A era do vazio”, “O crepúsculo do dever” (cf. o ponto n.º 6 da “Tomada de Posição”).

Até parece que o Instituto Piaget foi o grande responsável e culpado do que aconteceu em Macedo de Cavaleiros e, mais do que isso, de quanto tem acontecido em todo o país universitário e politécnico!… Encontrou-se, assim, tão facilmente como se viu, o “bode” que, como na tragédia grega, importava imolar, expiatória e sacrificialmente, no altar purificador da opinião pública, para apaziguar os deuses... E tudo feito, sumariamente, apenas porque, alegadamente, havia uma “vítima” inocente e pura que clamava por justiça...

Mas não será difícil partilhar, com Pessoa, a sua tão frequentemente evocada constatação gratulatória: «Graças a Deus que a imperfeição existe no mundo!...».
Creio ser a partir desse principial reconhecimento e da reflexão por ele induzida em torno das nossas humanas imperfeições e limites que chegaremos à conclusão de que o que nos torna verdadeiramente grandes é o quotidiano esforço que alimenta a tentativa de nos irmos tornando cada vez melhores (autopoiese contínua…) tanto ao nível da nossa dimensão ipseídica (singular e pessoal) e como ao nível da nossa dimensão alterídica (colegial e social).

Quanto às praxes, respeito por igual, tanto as posições a favor como as posições contra... E estou tão à vontade nessa minha abertura à diferença que, na condição de antigo aluno da Faculdade de Letras da tradicionalíssima Universidade de Coimbra (fins dos anos cinquenta, começos dos anos sessenta: início da guerra colonial que me mobilizou…), devo confessar que havendo eu sido praxado, nunca praxei ninguém… Mas, face ao que já sabia, e sobretudo, face ao que me foi dado aprender das excelentes comunicações produzidas nas Jornadas de que ele foi tema e objecto específico, o fenómeno das praxes é bem mais complexo do que às vezes imaginamos para podermos fundamentar uma opção definitiva, seja ela a favor, seja ela contra… Encontramo-nos perante os subtis domínios do simbólico e do imaginário e da dialéctica e dialógica entre os regimes “diurno” e “nocturno” dos ciclos da vida e respectiva ritualização…

Um simples exemplo, muito telegráfico: o gesto de me colocarem, como se diz na gíria da praxe, «a quatro patas» (portanto, na posição do «animal-homem» que sou (e permito-me evocar Édipo e o famoso enigma da Esfinge…) é “humilhante” em todos os sentidos: em sentido literal, rebaixa-me ao nível da lama, do barro, da terra, do húmus (lembrar-se-á, decerto, quem estudou latim: os lexemas humilis, humiliare, humanitas, humus, homo, etc., têm a mesma matriz etimológica e semântica, remetendo todos eles, em última instância, para Deméter [De/Ge/Gaia + mater: Terra-Mãe] e para o Génesis [onde Adão nos é dado como sendo feito de barro…]; simbolicamente, sugere-me a postura primigénia da assunção da fundamental virtude da humildade intelectual e antrópica, tal como a praticou, por exemplo, um Francisco de Assis, em sua comovedora simplicidade e despojamento: eu te saúdo, com todo o respeito, irmã Terra, mãe de toda a manifestação vital e da minha própria vida, neste exacto momento em que, despido do que tenho sido até aqui, “vou morrer” como estudante do ensino básico e secundário para dar início ao meu “nascimento-reencarnação” no ventre da “alma mater” [simbólica] que é a Universidade…

Sabemos bem que os actuais “praxistas”, em geral, estão longe de ter a preparação cultural [semântica] que lhes permita conferir às práticas [praxes] e aos rituais que defendem um tal sentido antropológico e simbólico, para além do estritamente literal: o que hoje se faz não vai muito além de uma mimética que se situa ao nível da mera “sintaxe” actancial…

Mas tal não significa, a meu ver, que se deva “decretar” a proibição das praxes… Uma vez mais, a lição da História: as proibições, sejam de que natureza forem, têm conduzido, por via de regra, a muito dificilmente controláveis movimentos de recrudescimento “regenerador”: veja-se o que aconteceu na antiga URSS com proibição da liberdade e a subsequente “liberalização” intentada por Mikhail Gorbatchov, nos USA com a proibição do consumo do álcool (Lei Seca) e, entre nós, com a prostituição e com as próprias praxes académicas em fins da década de sessenta, e assim por diante…

Aí está, agora, desde meados dos anos oitenta, a “regeneradora” e generalizada “ressurreição”, descontrolada e acrítica, a que se vem assistindo, pese embora a “proibição” (há quem, sem grande rigor crítico, prefira falar em “abolição”…) de finais da década de sessenta (grande crise académica de Coimbra e não só…) que não as conseguir “exterminar”: apenas as reconduziu a um temporário estado límbico, de hibernação ou letargia…

Foi a consciência possível de todo este tipo de implicações que conduziu à elaboração de uma “Carta de Princípios” que, de certo modo, constituiu a grande conclusão prática das Jornadas e, certamente também, um ponto de referência para as restantes Academias do País. Passo, pois, a transcrever essa espécie de “Decálogo” de minha autoria que tem merecido geral aceitação.

Um “Decálogo” para as Praxes…
1.º – As praxes, entendidas como um singular conjunto de tradições, usos, costumes e rituais, têm o seu real significado, enquanto factores de inclusão e integração dos novos estudantes na vida das Academias.

2.º – Nesse sentido, os códigos de praxe devem consagrar explicitamente, em seu clausulado, o inderrogável princípio do respeito pela dignidade universal da pessoa humana em todas as suas dimensões e em seus direitos fundamentais e pelo pluralismo dos valores e dos fins que caracterizam as sociedades abertas e democráticas.

3.º – Devem consagrar, igualmente, o princípio do direito à diferença e, com ele, o da livre opção de cada estudante relativamente ao exercício da praxe.

4.º – Todo o estudante que, em princípio, tenha aderido à praxe pode, em qualquer momento, rejeitar aqueles mandatos praxísticos que considere ofensivos da sua dignidade.

5.º – No que mais especificamente diz respeito às realizações de natureza científica, pedagógica e cultural promovidas pela Instituição ou pelas Academias, nenhum estudante pode ser discriminado em consequência do seu posicionamento pessoal relativamente à praxe.

6.º – Os actos praxísticos de afirmação simbólica do poder e da “hierarquia da antiguidade” (“doutores” vs “caloiros”…) deverão pautar-se por uma saudável e solidária relação de companheirismo, traduzível em actos de acolhimento orientador e de interajuda e no culto da cordialidade, da partilha e da pertença comunitárias.

7.º – Na assunção da dimensão mais “irreverente”, instintiva e pulsional das praxes deverão os organismos estudantis responsáveis pela sua dinâmica direccionar a sua autonomia organizacional num sentido crítico, original e criativo, por forma a que sejam, ritual e estilisticamente, privilegiados modos expressionais como os do humor, do cómico, do simbólico, do alegórico, da paródia, da farsa, da ironia ou da sátira…

8.º – A praxe terá sempre em conta as concretas condições de tempo e de espaço de cada campus académico, não sendo permitido o seu exercício no interior das instalações, salvo situações especiais a conjugar com as Direcções da Instituição.

9.º – Os códigos de praxe devem respeitar não só as leis gerais do País mas também os regulamentos em vigor na Instituição.

10.º – Os códigos de praxe, actuais e futuros, deverão ser elaborados com base nesta “Carta de Princípios”.

Viseu, 2003.05.08
Fernando Paulo Baptista
[todo o material contido neste artigo é da autoria do antigo estudante de Coimbra e docente do Instituto Piaget de Viseu à data da realização das "jornadas" Dr. Fernando Paulo Baptista. Questionado sobre o paradeiro desses documentos, o Dr. Fernando Paulo prontamente os enviou para edição no blog "guitarradecoimbra", em e-mail de 18/11/2006, esclarecendo que cessou funções como docente no IPV no dia 01/10/2006.
Aqui fica exarado o nosso agradecimento e um abraço muito fraterno ao Dr. Fernando Paulo em grata lembrança pelo inconfundível "Espírito de Coimbra" com que nos recebeu em 2003.
Visto que Aníbal Frias não chegou a estar presente nas jornadas, remete-se para um artigo de sua autoria, "Patrimonialização da Alta e da Praxe Académica de Coimbra" (1998), editado no site http://www.asp.pt/ivcong-actas/Acta091.PDF
AMNunes]

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