sexta-feira, outubro 20, 2006


"Fado Maria" Posted by Picasa
Rosto do disco de 78 rpm contendo a matriz sonora primitiva do FADO MARIA (Maria tu és na terra), vulgarmente conhecido pelo título de "Fado Manassés" (Trago comigo um pecado).
A gravação, acompanhada ao piano, foi protagonizada pelo próprio autor, o tenor Manassés de Lacerda, na cidade do Porto. O "estúdio" afigura-se-nos desconhecido, mas tudo indica que a empresa discográfica arrendou um espaço adequado ao largo espectro de artistas que contratou para efeito de gravações sonoras. A gravação foi concretizada sem microfone, lacuna técnica que obrigava o cantor a posicionar a boca junto do bocal da campânula. "Fado Maria, cantado pelo Senhor Manassés de Lacerda", tenor, na matriz Zonophone X-52063, foi gravado pelo ano de 1905.
Manassés foi a mais glorificada das vozes conimbricenses da primeira década do século XX, tendo criado um estilo dramático que lhe sobreviveu e se prestou a aproveitamento em termos publicitários ("cantado no estilo Manassés). A raridade dos discos gravados por Manassés gerou ao longo de décadas enorme espectativa em torno do estilo do cantor, da sua originalidade e do invocado pioneirismo artístico que lhe estaria subjacente.
Confirmará a audição desta matriz a reputação do divo?
Desde logo importa ouvir o disco como se António Menano, Edmundo Bettencourt e outros grandes tenores conimbricenses fossem desconhecidos à outiva dos cultores e admiradores da CC. Nem 1º Modernismo à Bettencourt, nem Ultra-Romantismo à António Menano, para começar. Manassés posiciona-se num contexto Belle-Époque, dominado nos salões burgueses e aristocráticos pelo piano, e na rua pela guitarra em afinação natural, guitarra essa que nas monodias estróficas conimbricenses enxertava discricionariamente acompanhamentos de tipo fado corrido. Simples, fácil de executar, adequado a contextos improvisatórios, o acompanhamento do fado corrido podia ser facilmente engastado em qualquer melodia estrófica. No caso de Coimbra, este recurso foi mesmo entendido erradamente como um elemento constitutivo-definitório, quando muitas vezes não passava de um expediente do tipo "toca-tudo".
Mas nada de conclusões precipitadas, pois em décadas anteriores tinham predominado em Coimbra os acompanhamentos do lundum, quando o lundum fez moda. Manassés espraia-se nos compassos quaternários, interpretando ao piano e à guitarra um reportório vasto, e muito eclético, que vai dos fados tipicamente lisboetas em moda no Porto, Lisboa e Coimbra, a cançonetas operáticas de salão e teatro, passando pelos temas admitidos no universo da Galáxia Sonora Coimbrã. Muitos dos temas compostos/e ou gravados por Manassés, sendo estróficos, também são monodias relativamente incaracterísticas (sem qualquer ornamentação melódica, ao contrário de algumas composições oitocentistas), vocalizadas num estilo dramático contido, entrecruzado nas transições de dísticos pela incorporação de elementos ariosos ad libitum (prolongamento de Ais neumáticos, sustentação de sílabas tónicas de grande efeito em certas frases).
Nos alvores do século XX, Manassés foi seguramente o primeiro produtor da CC como arte e mercadoria consumível, emprestando a sua voz e reportório a serenatas, digressões de agremiações estudantis, espectáculos, gravações fonográficas de alcance internacional e profusas edições de partituras impressas: casa de Artur Barbedo, no Porto (1907), casa Moreira de Sá, também no Porto (1914) , e álbum de Vinhos Constantino (Porto e Brasil, 1916).
Tentando esquecer momentaneamente as grandes vozes da década de 1920, o "estilo Manassés" soa um pouco estranho à outiva. Está mais próximo de registos efectuados pelo guitarrista e cantor Reynaldo Varella (não se confundindo embora com ele), dos desempenhos do cantor popular conimbricense Francisco Caetano e, vale a pena sublinhá-lo, de registos realizados no Brasil em 1905 por um cantor chamado Geraldo Magalhães (ouçam-se os registos "Fado" e "Fado dos Olhos Negros" divulgados pelos arquivos radiofónicos da TSF-"Fado Maior", em 30/10/2005).
O que é interessante redescobrir nesta gravação de Manassés de Lacerda é o tratamento musical da composição e a abordagem da melodia original (tal qual consta da partitura, em compasso 4/4 e tom de Lá Maior): em vez de cantar a 1ª quadra, seguindo-se o separador e a 2ª copla, Manassés canta as duas estrofes seguidas (fazendo embora as devidas repetições de dísticos), como se cada bloco de duas estrofes constituísse um todo literário coerente. A versão vulgar desta composição, recebida através dos discos de António Menano é já outra coisa: título modificado, letra diversa da original, esquema 1ª quadra/separador/2ª quadra, e adulteração palpável da melodia sobretudo nos segundos dísticos.
Texto e imagem: José Anjos de Carvalho e António Manuel Nunes

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