quinta-feira, agosto 31, 2006

ESTÓRIAS À LENTE (3)

VII.
Em princípios da década de 60 do século que passou regia «Introdução ao Estudo do Direito», disciplina do 1.º ano da licenciatura respectiva, um fero e severo lente de Direito Civil, cuja passagem pela FD/UC e pela vida nacional ficou bem assinalada. Recordarão os que tenham frequentado a Escola nesses anos já distantes que ao tempo não havia dispensas de provas orais e que estas se realizavam em dois turnos diários – um de manhã, outro à tarde – perante júri presidido por um Juiz (nas mais das vezes um Desembargador da Relação de Coimbra) [1] e pelo Mestre da cadeira; era «da praxis» que quem prestava prova num dado turno só entrava na sala no momento de a prestar, não assistindo portanto às provas anteriores; no final de um turno o júri retirava-se – normalmente não dando palavra aos examinados [2] – e de imediato surgia um contínuo a ler a pauta com as classificações.
Nesse dia, há perto de 45 anos, fez prova oral num dos últimos dias de Julho uma aluna que, na opinião da própria e dos colegas que tinham assistido, «andou bem». E tanto assim que se ‘atreveu’ a dirigir a palavra ao Mestre, já concluída a prova:

- Será que o Sr. Doutor me poderia dizer se passei ou não ? É que tenho o meu Pai à espera para irmos para férias…

- Ai sim ? E para onde, se não é indiscrição ?

- Para a Figueira, Sr. Doutor.

- Ah, muito bem ! E vão para algum hotel ?

- Não, Sr. Doutor, alugámos casa.

- Então, minha Senhora, já lhe posso dizer que está reprovada: as casas não se alugam, arrendam-se !...

VIII.

«Exame ad hoc» é expressão que, de há cerca de 35 anos para cá, tem circulado com diversas acepções. As duas mais correntes têm a ver com circunstâncias surgidas na década de 70, ao tempo do ministro Veiga Simão:

1) O exame especial de acesso para maiores de 25 anos sem as habilitações legais;

2) menos conhecidos e de mais efémera existência, os exames avulsos de História de Portugal, Geografia de Portugal e Literatura Portuguesa prestados pelos habilitados com o Curso de Teologia dos Seminários Maiores das Dioceses; ou seja: padres, ex-padres ou ex-seminaristas; a aprovação nesses três exames dava-lhes a possibilidade de concorrer ao professorado do então recente Ciclo Preparatório.

Na FL/UC examinava em Geografia os candidatos na situação 2) um grande Mestre que depois viria a deixar-nos prematuramente. Não sendo das feras da Casa, tinha no entanto a sua cismazinha quanto àqueles candidatos, para quem era particularmente exigente: muitos não passavam da prova escrita e na oral a taxa de reprovações era elevada.
No final de um dia em que as orais tinham sido uma sucessão contínua de estenderetes, todos aguardavam no corredor que saíssem os resultados. Mas, mal se fechara a porta sobre o último examinado e mais quantos haviam assistido às provas, logo a mesma se reabre; e eis que aparece o lente em causa, interrogando em voz bem alta quantos por ali se encontravam:

- Já não há mais padres para chumbar ?...

IX.

Na FL/UC existiu em tempos – aí pelos anos 60 – uma cadeira anexa (opcional) de Etnografia, a poder ser frequentada por estudantes de várias licenciaturas. Não creio que tenha deixado estórias por demais, apesar de uma certa idiossincrasia do lente…
Uma vez queixou-se um aluno na oral de que o ponto sobre que estava a ser interrogado não tinha sido dado nas aulas.

- Está enganado, olhe que foi ! Vamos já ver nos Sumários.

E manda vir a caderneta respectiva. Folheia rapidamente, fixa-se numa dada página e diz para o aluno:

- Quer ver ? Foi aqui mesmo nesta aula.

E mostra-lhe um certo Sumário terminado por um perverso «etc.»…

X.

Entre ca. 1928 e ca. 1970 a cadeira de História Moderna e Contemporânea, das licenciaturas em Histórico-Filosóficas (até 1957) e em História (1957 ss.), foi, na FL/UC, regida por uma e a mesma pessoa. E o programa não deve ter variado muito…
Um dos capítulos que ficaram célebres foi o dedicado aos Papas do Renascimento: havia que memorizar os seus percursos de vida e as circunstâncias da morte. Sobre a morte de um Papa concreto havia três teses:

1. Teria sido envenenado;

2. teria morrido de uma indigestão de melão;

3. «a terceira tese», dizia o Mestre, «é tão horrorosa que nem a posso reproduzir, até porque estão aqui Senhoras !».

Está claro que, acabada a aula, toda a turma seguia directamente para a Biblioteca, a fim de ver, no livro-base para aquele ponto da matéria, em que consistia afinal a «horrorosa» tese; consistia apenas nisto: o dito Papa teria ingerido abundantes quantidades de melão, posto o que se teria dedicado a actividades pouco pontificais… e o organismo não aguentou…

Que horror !

XI.

Como é plenamente sabido, FRANCISCO GOMES TEIXEIRA (1851-1933) foi um insigne matemático que ensinou sucessivamente na UC, na Academia Politécnica do Porto e na Faculdade de Ciências / UP. Natural de S. Cosmado (Armamar), matriculou-se em Coimbra nas Faculdades de Philosophia [Natural] e de Matemática em 1869 e 1870, respectivamente. Bacharel (1872) formado (1874) em Philosophia, bacharel (1873), licenciado (1875) e doutor (id.) em Matemática, foi lente substituto (1876-1881) e lente (1881-1883) da segunda daquelas Faculdades; regeu, nesses anos, Cálculo Diferencial.
Em 1883 pediu a transferência para a Academia Politécnica do Porto, onde foi lente proprietário e regeu Geometria Descritiva e Cálculo Diferencial e Integral; foi também o último Director da Escola, nos anos que imediatamente precederam a criação da UP. Em 1911 transitou, como professor ordinário, para a Faculdade de Ciências da nova Universidade, de que foi também o primeiro Reitor (1911-1917). Jubilado em 1921, pôde, mediante decisão governamental, continuar a ensinar (até 1929).

O episódio que aqui se narra parece reportar-se aos anos 10, ou seja, já ao tempo da Faculdade de Ciências; mas deve retratar uma característica estrutural de Gomes Teixeira: nunca o Mestre terá gostado de reprovar alunos nas provas orais; a grande selecção fazia-a ele na escrita; a oral seria para ver até onde o aluno ia, nomeadamente para efeito de atribuição da nota; se algum examinando na oral começava a andar menos bem, Gomes Teixeira convidava-o gentilmente a desistir e a reapresentar-se na época subsequente; e, obviamente, qualquer examinando de bom senso aceitava tal convite.

Mas um dia… Gomes Teixeira fazia júri com outro ilustre matemático portuense, Luís Inácio Woodhouse (eram Bons Amigos; donde, o tratamento pelo nome próprio). E aparece um aluno teimoso: ao primeiro esboço de estenderete e ao tal convite de Gomes Teixeira, opõe recusa – queria continuar ! Nova pergunta, novo espalhanço, novo convite, nova recusa… Nova pergunta, novo estenderete… e Gomes Teixeira já não insiste no convite: volta-se para Luís Woodhouse e propõe:

- Luís, ele não desiste ! Desistimos nós ?...

- Acho muito bem ! – redarguiu Woodhouse.

E, levantando-se, saíram ambos da sala; assim terminou aquela oral…

Post-scriptum: Este episódio foi-me narrado em 1990 por um saudoso lente de Farmácia da UP, o Doutor Luís Vasco Nogueira Prista († 2004); com texto substancialmente diferente reproduzi-o já, com o título «Gomes Teixeira e as provas orais», em UPorto. Revista dos Antigos Alunos da Universidade do Porto, 5 (2002, Mar.), p. 39.

[1] Na FD/UL era frequente ser um Conselheiro do STJ.
[2] Poderia haver excepções, v.g. para cumprimentar um aluno classificado com nota alta.

Armando Luís de Carvalho HOMEM

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