domingo, agosto 27, 2006

ESTÓRIAS À LENTE (2)

V.

Pelos anos 50 passou pela Faculdade de Ciências da UP um padre que se licenciou em Matemática com elevadíssimas classificações. Contratado de imediato como assistente, também de pronto avançou para o doutoramento. Como assistente e depois como lente, o Padre G… foi uma das jóias da Coroa do Grupo de Matemática da FC/UP. No final dos anos 60 a sua carreira internacionalizou-se: veio a ensinar, sucessivamente, em Heidelberg e em Genebra, onde se jubilou. Julgo que ainda vive.
Protótipo do sábio distraído, o Padre G… deixou na FC/UP um anedotário extenso, que alguns ainda recordam. E não é caso para menos: não raro, nas imediações da Faculdade, era visto a ir pela rua fora, andando e fazendo simultaneamente os gestos de quem escreve num quadro… só que de vez em quando fazia também o gesto de apagar, para depois rectificar…
Outras vezes ia rua adiante, completamente absorto, cabeça inclinada para o lado e boca aberta… Foi nesta pose que um dia, ao fim da tarde, o viu a descer a Rua dos Clérigos uma idosa e modesta Senhora que o conhecia de vista da Igreja dos Congregados, onde ele diariamente celebrava às 8.00 h. Não se conteve e foi ter com ele, assim se lhe dirigindo:

- O senhor Abade leva a boca aberta !...

O Padre G… estaca, de pronto se recontextualiza e responde:

- Eu sei, minha Senhora, fui eu que a abri…

VI.


Há no In illo tempore uma narrativa intitulada «Leão Rei dos Animais». Trindade Coelho tem em conta um lente de Química (Faculdade de Philosophia [Natural]) que pelos vistos não seria grande luminar da Ciência. Seu nome: Leão; donde, a alcunha: «Rei dos Animais».
A sua carreira académica tinha como ponto forte, no texto de Trindade Coelho, as circunstâncias (surrealistas…) de um concurso para lente. Leão ter-se-ia formado (grau de bacharel) sem qualquer classificação acima da média. Depois «lembrou-se de tomar capelo e deram-lho…»: mas com a secreta condição de jamais se apresentar a concurso para lente; se o fizesse… reprovação rotunda… Isto sem que houvesse qualquer problema de relacionamento pessoal: os seus antigos Mestres e os Condiscípulos em vias de seguir carreira tinham com ele cordiais relações. Mas, amigos, amigos…
Um dia Leão resolveu mesmo candidatar-se a uma vaga. Estupefacção geral: houve logo quem julgasse que era «partida», que Leão se não apresentaria a prestar provas, etc. Mas o putativo candidato quase logo fez saber que era a sério e não desistiria !

- Pois que venha ! – terão logo dito alguns dos lentes que o haveriam de julgar, esfregando as mãos.

E, estando-se nisto, o tempo foi correndo. Dias antes do início das provas um dos lentes do júri, recebe, já tarde e encapotadamente, a visita de Leão, cheio de cuidados para que ninguém o pudesse ver e/ou reconhecer. Perante o dito lente, Leão reconheceu que tinha feito grossa asneira em se meter num concurso no qual que não tinha hipóteses, que agora parecia mal desistir, declarou que até nem levava a mal que o reprovassem – a culpa fora de si próprio – e pedia ao interlocutor, a ele e só a ele, «que era seu amigo» – que com os outros não queria nada –, um favor, a ficar rigorosamente entre os dois: que ao menos ele lhe deitasse «fava branca» [1], já que era duro apanhar com uma unanimidade de «favas pretas», etc., etc.
O interlocutor acabou por se deixar convencer, dando Leão a sua palavra de honra de que tudo ficaria entre os dois. Posto o que, trocaram um abraço e o visitante retirou-se.
O Leitor estará já mesmo a adivinhar que Leão fez a ronda dos membros do júri em discretas visitas a desoras, e que de todos obteve a promessa de que «ao menos ele» deitaria «fava branca»; e que no dia do termo das provas, em vez de reprovação unânime saiu aprovação exclusivamente com «favas brancas», coisa, ao tempo, rara…
O resto da narrativa não tem especial graça, limitando-se Trindade Coelho a enumerar um ou outro episódio relativo ao ensino de um Mestre provido em tais circunstâncias…

Que veracidade a de tudo isto ?
Percorrendo, no volume Memoria Professorvm Vniversitatis Conimbrigensis: 1772-1937 (dir. Manuel Augusto RODRIGUES) [2], as páginas referentes à antiga Faculdade de Philosophia [3], aí se nos depara de facto um lente de apelido LEÃO, mais concretamente MIGUEL LEITE FERREIRA LEÃO [4]. Na aparência, os dados arquivísticos sobre este lente são parcimoniosos:

1) Ficamos a saber que era natural de Riba de Ave (Vila Nova de Famalicão), aí tendo sido baptizado em 1815/05/02; dos progenitores apenas o nome do pai: António José Ferreira Leão;

2) na UC matriculou-se nas Faculdades de Matemática e de Philosophia em Outubro de 1834 e na de Medicina 3 anos mais tarde; mas não há na Obra registo de obtenção de graus (bacharel, formatura, doutor);

3) como lente substituto extraordinário (1848-1855), lente substituto (1855-1858) e lente (1858-1877) regeu as disciplinas de Física, Química Orgânica, Química Inorgânica, Botânica e Química Física;

4) cargos na sua Faculdade, desempenhou os de Fiscal (1855-1857) e de Director do Laboratório Químico (1865-1877);

5) não há referência a cargos atinentes à Universidade no seu conjunto ou a Instituições a ela exteriores;

6) e quanto a publicações, apenas a referência a um estudo sobre As águas minerais de Moledo, sua composição química, acção fisiológica e efeitos terapêuticos (Coimbra, 1871), da co-autoria dos lentes de Medicina Francisco António Alves (1832-1873) e Lourenço de Almeida Azevedo (1833-1891) [5].

7) deixando de ensinar em 1877, virá a morrer em 1880/01/13.

A pobreza da informação académica e científica permite no entanto saber que o Doutor Miguel Ferreira Leão teve na UC uma carreira de praticamente 30 anos, cerca de 20 dos quais como lente. Carreira apagada, circunstância a traduzir-se na pobreza dos dados conservados e na breve notícia que dele cria memória no volume citado ? Talvez; mas não nos esqueçamos que a Obra em causa não é – nem pretendeu ser – exaustiva; e que Trindade Coelho foi memorialista e não historiador. Um desafio aos estudiosos do passado oitocentista da Química na UC ? Porque não ?...


[1] Referência ao sistema de votação secreta por esferas pretas e brancas. Vigorou – pasme-se – até 1983 ! Nessa data – VIII Governo Constitucional, primeiro-ministro F. Pinto Balsemão, ministro da Educação J. Fraústo da Silva, secretário de Estado do Ensino Superior Alberto Romão Dias – foi substituído pela «votação nominal justificada» em mestrados, doutoramentos e concursos documentais para professor; sobreviveu – até hoje… – nas provas de agregação.
[2] Coimbra, Arquivo da Universidade, 1992.
[3] Pp. 267-292.
[4] P. 282.
[5] Sobre estes, cf. Op. cit. nas nn. anteriores, pp. 193 e 195, respectivamente.
Armando Luís de Carvalho HOMEM

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