quinta-feira, agosto 10, 2006


"Coimbra é uma Lição" Posted by Picasa
Rainha incontestada e sem rival entre todas as "Coimbra Spaghetti", "Coimbra é uma Lição" começou por não ser. Nem conimbricense, nem tema do universo da Canção de Coimbra.
Data de 1939 esta canção ligeira, destinada, não se sabe bem, se a banda sonora de filme, se a ensaio e montagem de um teatro de revista. A dupla de autores tinha-se distinguido desde os alvores da década, concretamente na ainda hoje cantada banda sonora do filme "A Canção de Lisboa" (1933). Escreveu os versos o letrista José Maria Galhardo e assinou a música Raul Ferrão (1890-1953). Versátil, Ferrão era Tenente Coronel, Engenheiro Químico e inspirado compositor.
A canção ficou a aguardar melhores dias, até que em 1946 Armando Miranda a integrou na banda sonora do filme "Capas Negras", estreado em 1947. Quem no filme interpretava "Coimbra é uma Lição" era Alberto Ribeiro, actor, fadista e cantor de operetas, com voz "estilo reis da rádio". Oriundo de Valongo (Ermesinde, 1920...), Alberto Ribeiro havia conquistado notoriedade como fadista em alguns cafés do Porto na 2ª metade da década de 1930, tendo transitado para o mundo do espectáculo em Lisboa. Como é sabido, o imenso sucesso atingido pelo filme em Portugal e no Brasil não foi secundado nos territórios da Academia de Coimbra.
Apesar de ensaiado directamente pela mão de Ângelo Vieira de Araújo, Alberto Ribeiro não convencia nos temas de Coimbra, e não conquistou qualquer adesão local com a sua interpretação do tema de Raul Ferrão.
Na opinião dos ressentidos estudantes de então, "Coimbra é uma Lição" era uma canção de teatro de revista tipicamente lisboeta e como tal permaneceria por meio século. A letra continha lugares comuns que não cativavam os estudantes mais desconfiados de estarem a ser aredidos com arremetidas de falsa identidade cultural. No refrão, a palavra "faculdade" estragava tudo. Em Coimbra "faculdade" usava-se com sentido muito rigoroso e restrito, sem o alcance generalista empregue em Lisboa e no Brasil, espaços onde "cursar faculdade" ou "estar na faculdade" queriam significar universidade/ou ensino superior. Insuportável aos ouvidos dos estudantes era também a voz afectada de Alberto Ribeiro, logo acusado de não perceber nada do estilo de Coimbra.
Caberia a Amália Rodrigues (1920-1999) lançar "Coimbra é uma Lição" nos circuitos internacionais do grande espectáculo, quando em 1950, integrada nos musicais de divulgação do Plano Marshall, cedeu a Yvette Giraud as bases para a futura "Avril au Portugal"/"April in Portugal".
No caso concreto da Academia de Coimbra, só após 1974 e num contexto de diluição e reinvenção da memória histórica foi possível abrir caminho à aceitação de "Coimbra é uma Lição". Tudo começa de alguma forma com uma projecção do filme "Capas Negras", no Teatro Académico de Gil Vicente", a 21 de Janeiro de 1980, integrado no programa da chamada Semana de Recepção ao Caloiro (18-26 de Jan. de 1980).
A entidade promotora era a Direcção Geral da AAC afecta à JSD, que acolhia de boamente o aconselhamento formulado por Joaquim Teixeira Santos, activo membro da AAEC. O filme era recuperado como "documento histórico", apto a ensinar aos estudantes as tradições perdidas. A partir daqui ficavam abertas as portas a uma atitude de relativização da memória histórica e de re-invenção de supostas tradições. Sucederam-se as gravações da Estudantina Universitária de Coimbra (LP "Canto da Noite", ano de 1992) , de Mário Gomes Pais com o grupo Aeminum (CD "Coimbra é uma Saudade", ano de 2002), dos Antigos Tunos da Universidade de Coimbra (CD "15 anos depois", Coimbra, 2000), e do Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra (CD "20 anos a cantar Coimbra", 2003).
Conhecendo a dimensão internacional do "Coimbra é uma Lição", José Miguel Júdice, ao tempo Bastonário da Ordem dos Advogados, instigou José Moças, da Tradisom, a realizar um levantamento de registos portugueses e estrangeiros desta canção. O resultado foi o CD COIMBRA. APRIL IN PORTUGAL. AVRIL AU PORTUGAL, Tradisom/Quinta das Lágrimas, TRAD 038, ano de 2004, com 24 amostragens repescadas entre 1947 e 2003, que passam por Amália Rodrigues, Yvette Giraud, Alberto Ribeiro, Antigos Orfeonistas da UC ou Caetano Veloso. Os textos de apresentação, bem articulados, são assinados por Maria de São José Côrte-Real.
Para ficar com uma ideia aproximada do volume de gravações que este tema tem merecido, solicitei à SPA uma relação de declarações de registos fonográficos. O rol é verdadeiramente impressionante, passando por largas dezenas de incursões: casas de fados, filarmónicas, corais, acordeonistas, orquestras ligeiras, tunas e artistas de música ligeira onde se situam nomes como Cândida Branca Flor, Roberto Leal ou Júlio Iglésias.
Deixando de lado o mundo dos corais e das tunas, haverá lugar à integração desta composição na Galáxia Sonora Coimbrã? A versão cantável não parece reunir condimentos para incursões no imediato e as versões instrumentais continuam a não cativar candidatos.
Mas os processos de construção da identidade não são imutáveis. O futuro (ou o pós-modernismo) nos dirá se José Manuel Beato foi a derradeira voz da utopia quando num vigoroso artigo jornalístico de 1992 se insurgiu contra uma gravação que vinha de fazer-se.
Agradecimentos: José Moças (Tradisom), Goreti Lopes (SPA)
AMNunes

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