sábado, julho 29, 2006


A Severa e Paradela de Oliveira Posted by Picasa
Durante longos anos inacessível aos cinéfilos devido à progressiva degradação da película, acaba de surgir nos escarapates uma versão restaurada e digitalizada em dvd do fonofilme "A Severa", numa iniciativa da revista "TV Guia". "A Severa" é o dvd nº 5 de um conjunto de 12 antigos filmes sonoros portugueses rodados nas décadas de 1930-1940.
Primeiro sonoro português realizado por Leitão de Barros, o argumento de "A Severa" foi escrito por Júlio Dantas, tendo por base as seguintes fontes:
-drama teatral de Júlio Dantas, "A Severa", editado e representado pela primeira vez em Lisboa a 25 de Janeiro de 1901;
-opereta "A Severa", que partindo do texto de 1901, foi musicada pelo maestro e compositor Filipe Duarte, com estreia no Teatro Apolo em 1909.
Em nosso opinião, mais do que um filme, a película estreada em 18 de Junho de 1931, pode ser vista como um conjunto de quadros (ou reportagens) fantasiosos e edénicos sobre a vida portuguesa de oitocentos, misturando: a) reportagens de Leitão de Barros sobre o Alentejo e o Ribatejo, numa alusão ao pitoresco rústico destituído de penares sociais; b) reconstituições da vida aristocrática da 1ª metade de oitocentos, orientadas por Júlio Dantas, bem palpáveis nas cenas do Palácio Fronteira, Palácio de Queluz e tourada à antiga portuguesa.
A actriz de teatro de revista Dina Moreira interpreta a suposta Severa-cigana, enquanto o toureiro António Luís Lopes faz de Marialva (um Vimioso disfarçado). Os actores nunca chegam a ser convincentes, passeando penosamente "bonecos" rasos e opacos, sem qualquer consistência psicológica. A cigana interpretada por Dina Moreira deixa mesmo antever certos habitus que Hermínia Silva perpetuará em palco.
Se Maria Severa nunca foi comprovadamente cigana, a guitarra de chapa de leque que exibe no filme não corresponde à guitarra de cravelhas que terá dedilhado até 1846 (e muito menos a de 2 bocas que se vê na cena da espera de toiros). Quanto às melodias que entoa (a voz de Dina Moreira é muito banal), nenhuma remonta ao tempo da Severa, apesar dos fados de época estarem recolhidos e impressos pelo menos desde finais do século XIX.
Leitão de Barros não recorreu às solfas coevas existentes no Cancioneiro de César das Neves. Recorreu ao jovem músico Frederico de Freitas (1902-1980) que satisfez a encomenda com viras, danças de inspiração popular e o "Novo Fado da Severa" (Ó Rua do Capelão). Mas a mais rica e bela melodia do filme não vai além de insípida banalidade na voz de Dina Moreira. Será preciso esperar pela versão Amália Rodrigues ou mesmo pela heterodoxa versão Dulce Pontes.
Acontece que certos trechos "fadísticos" entoados por Dina Moreira na película de 1931 lembram mais o "estilo de Coimbra" do que o "estilo de Lisboa" e ocorre também que as posições de acompanhamento e algumas notas aqui e ali do "Novo Fado da Severa" tangenciam uma composição conimbricense de Felisberto Passos conhecida pelo título de MINHO ENCANTADOR.
Simples coincidência? Talvez não...
Colaborou com Frederico de Freitas e entrou no filme como figurante e cantor o Dr. José Paradela de Oliveira, recém formado em Direito. Só vemos Paredela já no trecho final da película, em trajo popular, a cantar um vira no arraial de Santo António. Enquanto a Severa agoniza à maneira romântica de oitocentos, Paradela acaba o vira e desfila sorridente na marcha dos santos populares. Vencida a surpresa, José Paradela de Oliveira canta o vira muito bem, optando pela colocação de voz natural, de tal arte que dificilmente se encontra sintonia entre este desconhecido cantor de folclore e a voz que nos discos de Coimbra faz chorar as mais duras pedras da calçada.
Não constitui perda de tempo revisitar esta relíquia cinematográfica, justamente porque as suas imensas vulnerabilidades dela fazem um documento demasiado datado. Além do mais, lá se aninham grande parte dos ingredientes que virão a ser trabalhados com outra desenvoltura pelo cinema do estado Novo.
Fonte: "A Severa. Os Anos de Ouro do Cinema Português", DVD Nº 5, Edição TV Guia, ano de 2006, com textos de Fátima Lopes Cardoso.
AMNunes

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