quinta-feira, julho 27, 2006

A Minha História de José Afonso

Havia um poema e um enigma disfarçado de canção, nessa voz atormentada e vagamente trémula que me dizia: “A toda a parte chegam os vampiros... “. Eu escutava­-o, baixinho e às escondidas, algo ensimesmado pelo acto do meu próprio entendimento, esforçando-me por decorá-lo mas não o compreendia. Pala­vra!, não o entendia porque não aprendera ainda o segre­do das suas palavras, nem isso a que hoje chamam o sentido figurado ou conotativo da linguagem que então se escondia por trás da sua música. Como compreender que o disco tivesse sido proi­bido (e creio preso ou dester­rado o seu cantor, como na altura se dizia), só por dizer que eles os vampiros, pousa­vam nas tulhas, traziam no ventre despojos antigos e nada os prendia às vidas acabadas? Ou seria simples­mente por aquilo de eles comerem tudo, tudo, tudo...
e não deixarem nada?
Assim começa a minha história pessoal acerca do Zeca. Não é verdade que todos temos uma história pessoal acerca de um homem paradigmático e superior como o Zeca? Podem ser histórias de amor ou de ódio, ou mesmo constataçães da mais plana e turva indiferença, mas nunca de um desconheci­mento diferente e distinto da pura e frívola ignorância. Por mim, que comecei por amá-lo antes mesmo de o entender, a história de José Afonso situa-se entre dois extremos opostos, os quais se tocam,de um lado, a minha inocência política, e do outro, a noção do tempo, da idade e da cul­tura. No extremo da inocên­cia, começa a memória de “Os Vampiros” e da sua proibição; no outro, colhe-me a surpresa de ter sabido ler o oculto, a alegoria dessa “Grândola, Vila Morena “, que afinal era a pro­fecia de um país, a sua espe­rança ou mesmo a sua identi­ficação. Não tinha idade para decifrar a mensagem, vinda na denúncia encoberta do tal poema que dizia: “Enchem as tulhas, bebem vinho novo/ Dançam a ronda no pinhal do rei”. Muitos anos mais tarde, soube desde o primeiro mo­mento que Grândola, na voz e na ideia do Zeca, não era apenas uma vila morena, muito plana, situada ao sul da cidade com um rio - mas a própria cidade branca e altiva da alma e da honra que muitos de nós conhecíamos...
Houve um tempo em que tínhamos apenas os nosso cantores. Hoje, temos a eter­nidade deles, que é feita à nossa medida. José Afonso continua fora do tempo e das geraçães porque nunca foi credo nem um mito, menos ainda uma lenda não compor­tada pelos sentidos da músi­ca. Ergueu em torno de si, sem nunca ter tido esse propósito, uma escola para a educação e para o sentimento do mundo. Da sua vida, é injusto dizer que pas­sou. Seria aliás ofensivo recor­dá-la apenas como um caso de fé. A única coisa que dela sei é que pode hoje estar aqui e amanhã ter-se ido ao vento, porquanto nunca teve um destino. Por andar ao vento, lhe chamaram andarilho. Por ainda agora ela, a sua música, se fazer ouvir, trovador.
João de MeIo, Lisboa, 1 de Junho de 1992
Do site da AJA.

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