quinta-feira, abril 06, 2006

Canção de Coimbra / Reflexões ( V )


Legenda da composição fotográfica:

Memória / Momentos :“Canção de Coimbra - Anos 80” (1989). Para além de Antigos Estudantes (ver último artigo ), participaram nesta série televisiva quatro “Grupos de Fado”, cujos elementos eram estudantes na década de 80 do sec. XX e tiveram papel de relevo no “renascimento do fado de Coimbra”, após esse acontecimento decisivo que foi a serenata na Sé Velha, em Maio de 1978…Instantâneos das Gravações dos Programas com esses Grupos de Fados : (A) “Grupo de Fados e guitarras de Coimbra”, c/João Moura e José M. Santos (inst.) e Tó Nogueira, Vítor Silva e L. Catario (cantores) (em estúdio); (B) “Grupo Académico de Fados e Canções”, c/ ”Tó Zé” Moreira, H. Ferrão, Luís M. Martins, José C. Ribeiro e Manuel A. P. Fernandes (inst.) e Jorge Cravo (cantor) (Coimbra/Choupal); (C) “Grupo Praxis Nova” c/ Paulo Soares (“JoJó”), José Rabaça, Luís C. Santos e Carlos A. S. Costa (inst.) e Luís Alcoforado (cantor) ( Coimbra /Santa Clara ); (D) “Grupo Toada Coimbrã” c/António J. Vicente, João P. P. Sousa, João C. Oliveira e Jorge M. M. Marques (inst.) e Rui P. Lucas (cantor) (Coimbra/Páteo das Escolas,U.C.). Posted by Picasa

José Mesquita*

Referíamo-nos, no último artigo, à variedade de expressão e temática que tem assumido o canto coimbrão e a alguns dos maiores responsáveis por essa riqueza …
A propósito deste tema e dos seus protagonistas, nomeadamente José Afonso e Luiz Goes, comentávamos no Semanário “O Jornal ”(1983) , o seguinte ( 3) : «Há qualquer coisa de comum em toda esta música ( trovas, baladas, canções…) : são frutos diferentes nascidos de enxertos na mesma cepa – «a raiz coimbrã» – difícil de caracterizar mas por isso mesmo, inigualável. É que cantar autenticamente Coimbra é, antes do mais, um certo modo de estar na canção traduzido por uma elevada sensibilidade e uma maneira de entoar e dizer, únicas no panorama da música popular portuguesa. Daí a expressão “sabor Coimbrão”… Sente-se que assim é, não porque essas composições obedeçam a regras precisas de construção musical e como tal reconhecidas, mas antes por um todo indefinível, intuitivo que corporiza aquele tal modo de estar na canção» ( Entrevista de apresentação do Lp “Coimbra dos Poetas”, nosso primeiro contributo para o reportório da Canção de Coimbra…).
Neste contexto, pensamos ser pertinente referir aqui também as opiniões, nesta matéria, de dois cultores bem conhecidos do canto e da guitarra de Coimbra, respectivamente Jorge Cravo2 e Jorge Gomes3 que, anos mais tarde (quase duas décadas depois…) as publicitaram do seguinte modo e, passamos a citar (excertos) : “Penso que é imperativo recriar esta canção… no sentido de se formularem novas pistas de musicalidade, acompanhamentos e mensagens para a divulgarmos … ao lado de produtos musicais agressivos, sem que ela perca a sua autenticidade regional e local, o que implica que daí resultem sempre sonoridades matricialmente identificáveis” ( Jorge Cravo ) (8) ou “A Canção de Coimbra é mais uma maneira própria de cantar, regional, do que um modelo musical”. E mais adiante, o mesmo articulista referindo-se à adaptação de canções populares por E. Bettencourt:…”o que está subjacente no fado de Coimbra é mais a maneira de cantar, de interpretar de dizer as coisas, do que propriamente a musicalidade e a letra da própria peça” (Jorge Gomes) (9).
Neste momento e antes do mais, gostaríamos de reafirmar que apoiamos entusiasticamente, em teoria e na prática, o “movimento de renovação” do repertório do “Fado de Coimbra”, nele incluindo recriação, inovação, pesquisa de «novas pistas de musicalidade» (8) etc, etc.
Contudo, estamos convictos de que estas iniciativas, a todos os títulos louváveis, não beneficiam muito a “Canção de Coimbra “, bem pelo contrário, quando são objecto de excessiva ”eruditização”, seja na expressão vocal, seja na composição… É óbvio que o saber nunca fez mal a ninguém e isso é verdade para toda e qualquer área do conhecimento, ciências musicais incluídas. As técnicas de canto e/ou execução instrumental aprendem-se e aí reside a importância e o papel das Escolas. Só por mera ignorância ou mesmo estupidez se pode negar tal evidência…
Contudo, a “Canção de Coimbra” é um canto com fortes raízes tradicionais e/ou populares, singelo por natureza e, muitas vezes, expressão de um “romantismo” muito peculiar e intemporal. Assim sendo, em nossa opinião, um tipo de canção com estas características não beneficia com a aplicação rígida das normas exigidas no canto lírico ou mesmo no canto coral e não «casa», de todo, com dissonâncias musicais inesperadas, ou composições e harmonias complexas, tão caras, procuradas e, por vezes apreciadas, na música erudita!... Que nos perdoem os músicos, por cuja profissão e saber temos o maior respeito, mas é esta a nossa convicção… depois de tudo o que nos foi dado ver e ouvir ao longo de “50 anos de fado”...
Saliente-se que nada disto é contraditório do eventual recurso ao fado/canção/guitarra de Coimbra como fonte de inspiração para arranjos ou composições, corais ou instrumentais, de música erudita, como vem acontecendo ultimamente, com assinalável êxito. Consideramos esta prática perfeitamente legítima, “arejada” e muito meritória, na senda, aliás, dos grandes Compositores que, como se pode constatar na História da Música, escreveram obras relevantes e de impacto mundial inspirando-se em temas tradicionais.
Pensamos, porém, que, quando tal acontece, a música tradicional, e no caso vertente a Canção de Coimbra (por vezes “irreconhecível” ! …), passa a outra categoria musical (erudita) que, não sendo melhor nem pior, é necessariamente diferente… e, como tal, deve ser apreciada. Com este “tratamento”, a música, sem dúvida, ganha em erudição, mas a Canção de Coimbra «sensu strictus» , enquanto tal, perde certamente emoção e identidade… Tudo estará bem se, como diz o Povo, estiver “cada coisa no seu lugar”… Por outras palavras : quando o objectivo fôr ouvir e apreciar “fado/Canção de Coimbra”, no seu “sabor genuíno”, pensamos que, em momento ou circunstância alguma, a “versão erudita” poderá ou deverá substituir a “versão natural”, na sua singeleza e autenticidade… Em jeito de “testemunhos “não formais que, em nossa opinião, abonam esta tese, transcrevemos, com a devida vénia, excertos de alguns textos vindos a público recentemente nesta matéria. Passamos a citar :…”O fado de Coimbra é uma forma de canto de características populares, de uma população citadina, seja ela académica ou não. Daí que os chamados técnicos de música coral, ao darem formação clássica a um cantor de música popular, saem aquelas asneiras que nós vemos. Deixa de ser um canto popular para ser um canto a puxar para o clássico e fica ridículo e desenquadrado da realidade”… ( Jorge Gomes ) ( 9 ) .…”A composição musical ( do fado de Coimbra ), tem quase sempre a doce simplicidade decorrente dos seus Autores-tantas vezes ignotos- não saberem música . Os talentos musicais, sem muletas, figuram, não raro, entre os mais criativos e originais “… ( Almeida Santos ) ( 10 ) .…”Faço música como quem faz um par de sapatos, isto é, tento alinhar sons e torná-los coerentes entre si, como quem faz um utensílio”… ( José Afonso ) ( 11 ) .
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Estamos chegados ao ponto fulcral de todas estas reflexões :
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Independentemente da “velha e massacrada” polémica das origens do “Fado/Canção de Coimbra”!....Independentemente de caracterizações técnicas, mais ou menos complicadas !..., perguntará o cidadão comum ( autóctone ou estrangeiro) ?!
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Como caracterizar e/ou identificar este género musical que é a Canção de Coimbra?!
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Tal como há vinte anos atrás ( 3 ), estamos cada vez mais convictos de que “cantar Coimbra” é tão somente um “modo de estar na canção”, um “modo de cantar e dizer”, único e inconfundível, que constitui a matriz, a “raiz coimbrã”… A “História do Fado de Coimbra” (e estamos a falar da ”História completa”, sem omissões, sejam elas involuntárias ou intencionais…) mostra, à saciedade, que nesta raiz pode ser enxertada uma diversidade de formas, tanto na vertente musical (fados tradicionais, trovas, baladas, canções…), como na vertente poético-literária (quadras, quintilhas, sextilhas, sonetos, etc.).
A dificuldade está na identificação desta raiz, desta matriz. Muito se fala dela mas ninguém a definiu ou caracterizou objectivamente … e ainda bem!!... E dizemos ainda bem, pois, como acima referimos, essa matriz constitui um todo indefinível, com muito de intuitivo, no qual as várias vertentes de uma canção (sejam elas, a vertente melódica, poética ou interpretativa), se conjugam para dar um produto final que, podendo ser muito diferente, acabará por exibir, invariavelmente, o tal “sabor coimbrão” …E continuando nesta linguagem metafórica de cariz “gastronómico”, a “Canção de Coimbra” é, por assim dizer, um manjar tipicamente coimbrão, mas sem uma receita rígida ou predefinida…
A arte, o segredo do “cozinheiro” (neste caso, do cantor ou compositor) está em saber “temperar”, isto é, misturar sabiamente os “ingredientes” de modo a não adulterar o “sabor” genuíno , autêntico ! Mas, um pouco ao invés dos livros de culinária, nesta matéria não nos parece útil ou sequer saudável, bem pelo contrário, aplaudir ou incentivar o eventual aparecimento de “códigos de conduta” (passe a expressão),”manuais de instruções” ou quaisquer outros normativos tendentes a cercear, orientar ou modelar a criatividade… A ortodoxia, como se sabe, é o maior inimigo de toda e qualquer criação artística…
Isto, obviamente, não significa que nos abstenhamos de referir alguns dos “ingredientes” que, em nossa opinião, enformam o que consideramos ser a “matriz coimbrã “…
Mas disso nos ocuparemos no próximo e último texto…
* Cultor da Canção de Coimbra ( cantor e compositor ).
[2] Cantor/compositor fortemente personalizado (pesem embora as notórias influências de Luiz Goes…) e de citação obrigatória quando se fala de renovação de repertório na “ Canção de Coimbra” ( Anos 80 ).
[3] Companheiro de “lides fadísticas” na década de 70 e hoje figura incontornável na pedagogia da guitarra de Coimbra.

Bibliografia

(1) «In”História do Fado de Coimbra” ( DVD ) estem LOSANGO 2004.
(2) « Diário de Coimbra, 7/6/1999
(3) « Semanário “O Jornal “ ( Supl. Educação ), 12/1983
(4) « Semanário “O Jornal”,8/3/1985(5) « Expresso ( Única ),nº 1703, 18/6/2005
(6) « Separ./Comissão Municipal de Turismo ( 1981)
(7) «”Diário As Beiras”( 21/9/05 )
(8) «”Diário As Beiras” ( 17/04/2001 )
(9) «”Jornal de Coimbra” ( 21/05/1997
(10) «”O Fado do Público,nº7,Fados e Baladas de Coimbra”, Edições de Arte, S.A.
(11) «”Cadernos de Reportagem nº 2, Edições Relógio d’Água

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