sexta-feira, dezembro 30, 2005

Testemunhos de um Cantor em Coimbra (1945-1954)
Por AUGUSTO CAMACHO VIEIRA (cantor, nasceu em Miranda do Corvo a 23/11/1924. Licenciado em Medicina pela UC em 1954. Cultor da CC e compositor amador. Antigo membro da TAUC e do Orfeon de Raposo Marques. Exerce em Lisboa, tendo-se destacado nos campos da Medicina Desportiva e Ortopédica. Cf. Armando Moreno, “História da Ortopedia Portuguesa”, Lisboa, Medilivro, 2003).
Os rudimentos deste texto foram apresentados pelo autor no “II Colóquio Sobre Canção de Coimbra. Contar e Cantar o Futuro”, Coimbra, 6 de Julho de 2002 (Cf. “Canção de Coimbra. Contar o Passado”, in Actas do II Colóquio, Coimbra, Coimbra Menina e Moça/CMC, 2002, págs. 5-12), e mais proximamente no colectivo “Canção de Coimbra. Testemunhos Vivos. Antologia de textos”, Coimbra, Edição da DG da AAC, 2002, págs. 99-104. Mediante especial autorização do autor, editamos agora no Blog “guitarradecoimbra” a versão da antologia de 2002, corrigida apenas em aspectos de pormenor. Manteve-se no texto a marca da oralidade (António M. Nunes, 27/12/2005).

Na Figueira da Foz onde passei a minha juventude até ao sexto ano do ensino liceal e ainda aluno da Academia Figueirense, aos 14 anos, conheci duas personalidades: uma era um advogado e a outra um empresário. O primeiro tinha sido contemporâneo de Artur Paredes, algumas vezes seu segundo guitarra, assim como do Dr. Jorge Morais, o célebre Xabregas, e que era o Dr. Monsanto, magnífico guitarrista coimbrão.
A outra cantava o "Fado de Coimbra", às vezes e a pedido, em alturas de determinados saraus no Ginásio Clube Figueirense. Era o Carlos Cook. Dotado de uma voz timbrada de tenor, com colocação dessa voz em tonalidades que nos subjugava e que nos prendia à arte genial com que interpretava o "Fado de Coimbra". Aliás o Dr. Francisco Menano que após a conclusão do curso trabalhara na Comarca da Figueira da Foz, e com quem convivi em Lisboa, na sua residência, em encontros nocturnos, na época que decorreu de 1955 a 1966, certa noite confidenciou-me que o seu irmão António ia de propósito à Figueira para ouvir cantar o Cook. Talvez por estes factos e ainda pelas emissões radiofónicas das vozes do António Menano, do Edmundo Bettencourt, do Armando Góis, do Paradela de Oliveira e do Lucas Junot, cujos discos nessa altura ocupavam programas muito repetidos na Emissora Nacional, teria surgido a tendência para esse tipo de Canção Coimbrã, influenciando assim a minha forma interpretativa. Fui para Coimbra em 1944 para concluir o sétimo ano, no Liceu D. João III, no ano lectivo 1944-1945, tendo sido aprovado no concurso para a Universidade no ano de 1945, onde iniciei os meus estudos na Faculdade de Medicina que concluí no ano lectivo de 1953-1954.
Nesse ano de 1945 fui integrado no naipe dos primeiros tenores do Orfeon Académico, após prestação de provas conduzidas pelo Manuel Julião, tendo sido mais tarde requisitado para o Grupo de Fados desse organismo.
Tendo aprendido ainda na Figueira os primeiros conhecimentos de solfejo e a tocar bandolim, depressa fiz parte do naipe dos primeiros bandolins da Tuna Académica, que deixei em 1946, para me integrar no grupo de fados desse organismo cultural académico. Era acompanhado pelo João Bagão e pelo José Amaral, nas guitarras e, nas violas, por Tavares de Melo e Aurélio Reis, o mesmo grupo que também actuava nas variedades do Orfeon.
Caloiro de Medicina, em Março de 1946, surgi pela primeira vez no Teatro Avenida a cantar “fados” num sarau promovido pela Casa dos Estudantes do Império, em que também participaram o Orfeon, a Tuna Académica e o TEUC. No início do ano lectivo seguinte, em Dezembro de 1946, participei na primeira Serenata de Coimbra com transmissão directa da Sé Velha, pela Emissora Nacional e através do Emissor Regional de Coimbra. Pedimos ao público que não batesse palmas para que a transmissão radiofónica desse a noção real duma serenata de estudantes, pela noite dentro, e ao ar livre pelas ruas da cidade. Cantei eu e o Jorge Gouveia, tendo sido acompanhados à guitarra pelo Carvalho Homem e Gabriel de Castro e à viola pelo Tavares de Melo e pelo Aurélio Reis, sendo locutor e organizador o Dr. Guimarães Amora, então quartanista de Medicina. Esta serenata constituiu um assinalável êxito, de tal forma que a Emissora Nacional passou a incluir regularmente Serenatas de Coimbra nos seus programas, as quais eram transmitidas aos domingos, à noite, e repetidas nas sextas feiras depois do almoço, às 14 horas, antes do fecho normal da estação.
Nessa primeira serenata transmitida de Coimbra, cantei dois "fados", um deles "A água da fonte" e o outro intitulado "Fado das Águias", cuja segunda quadra é da autoria (e a meu pedido) do Fernando Quintela, poeta da minha República "Palácio da Loucura", que a fez propositadamente para eu poder cantar nessa dita serenata, sendo a primeira quadra da autoria de Camilo Castelo Branco. O autor da música desconheço quem seja. Ouvi-a pela primeira vez e só com a primeira quadra, cantada por um estudante de Lamego numa noite boémia dessa minha República, onde curiosamente veio também viver o nosso consagrado Herbert Helder. Pode dizer que foi por me ter ouvido cantar que o José Afonso aprendeu este “Fado das Águias”. No ano de 1947 o Dr. Jorge Morais, antigo estudante e guitarrista afamado de Coimbra, aparece como Reitor do Liceu de Viseu, e é recebido na minha República, donde já noite dentro partimos para a Sé Velha.
Aí, dele aprendi um "fado" da sua autoria "A vida é negra" (Fado da Noite). Passei a cantá-lo em saraus e serenatas, tendo anos depois sido gravado pelo Machado Soares. O mesmo se passou com outro "fado", "O voo das andorinhas" que me foi cedido na República do Kalifado pelo seu autor Dr. Eduardo Leitão Nobre, aluno de Direito, tocador de guitarra e compositor. Este "fado" muitos anos mais tarde foi gravado pelo Adriano, mas com o título modificado.
Nos anos 40 encontrei em Coimbra um ambiente medieval das serenatas ao longo da noite. Era o tempo da voz maravilhosa do Julião, tenor famoso, que infelizmente não deixou registos discográficos por carência de meios técnicos nessa altura. Foi solista durante anos no Orfeon, como primeiro tenor e deslumbrava a assistência com a sua voz privilegiada. Era também o tempo do Nani (Dr. Frutuoso Veiga) filho dum advogado de Coimbra e duma pianista, que recordo ser possuidor duma excelente voz muito personalizada. Fazem parte dessa época também o Napoleão Amorim e o Jorge Gouveia, que deixaram gravações décadas depois da sua vida estudantil.
Nesta geração destacou-se um compositor emérito, Vieira Araújo, com a célebre "Feiticeira", "Contos velhinhos", "Adeus Coimbra", "Santa Clara, Santa Clara", "A carta", etc., etc..
Compuseram ainda nestes anos 40 o Carlos Figueiredo que, com versos do Fernando Quintela nos deixou "Sé Velha" e, o Tavares de Melo que surge com "Quando os sinos dobram" e "Incerteza", ainda hoje cantados.
Apresentaram-me o Brojo no ano de 1944-1945 quando ele era ainda aluno do Liceu D. João III e eu caloiro em Medicina, tendo iniciado com ele o "fado serenata". Éramos requisitados e lá íamos actuando ao sabor da arte e não da convivência a não ser as ceias oferecidas no Toino Ladrão ou no Menezes, pelos apoderados, ou nem que fosse no Pirata que em pijama nos abria a porta, nessa altura com a loja nos Arcos do Jardim, para onde tinha sido desterrado, vindo da Rua Larga, na altura do Camartelo que destruiu toda aquela área onde pontificavam a Associação Académica, antigo colégio onde estavam instalados o Orfeon, a Tuna, o TEUC e as estruturas do futebol da Académica.
O Zeca Afonso também viajava connosco e convivíamos com o Mário de Castro, viola, e com o Gabriel de Castro outro exímio guitarrista vindo da Ilha de São Jorge e ainda com o futrica José Rodrigues, guitarrista e crítico de pintura que nos falava do Artur Paredes e da sua execução, revelando o seu segredo da dedilhação (que além do polegar e indicador também utilizava os outros três dedos).
Recordo dessa altura os futricas Fernando Rodrigues, tocador de viola, e seu irmão Flávio Rodrigues. Ouvia-os pela noite dentro e certa vez fomos ao Penedo e hoje ainda sinto a arte genial do Flávio, que me arrebatou a acompanhar-me no "Fado das Águias" assim como num sarau no Casino da Figueira em que me acompanhando com uma corda prima estalada no momento, talvez pela temperatura ambiente, fomos freneticamente aplaudidos. Na época dos Menanos pontificara também em Coimbra um grupo de "fados", por futricas, constituído pelos irmãos Caetanos. Um destes irmãos, o José Caetano, Bedel de Medicina, cantava acompanhando-se à viola, tendo sido convidado por nós para um sarau na nossa República. Aí cantou o "Fado Manassés" e de tal forma que por vezes é recordado em reuniões dos antigos repúblicos, pela interpretação com que entoava esse "fado" antigo.
Na minha época surgiu também um futrica, como autor de "fados" de Coimbra, João Anjo, que também abrilhantava a orquestra ligeira de Manuel Eliseu e era membro da banda militar. Dele recolhi o "fado" "Morena dos meus Abrolhos" que depois cantava em serenatas e nas digressões do Orfeon e da Tuna.
Este "fado" foi gravado nos anos 60 pelo Manuel Branquinho; cantor e guitarrista que no ano de 1951 fez parte do grupo de "fados" convidado a participar na digressão do TEUC ao Brasil. Neste grupo, em que participei com o Napoleão Amorim, fomos acompanhados à guitarra por Manuel Branquinho e à viola pelo Tavares de Melo. Tratou-se de uma digressão cultural, que percorreu várias cidades, com início no Rio de Janeiro, no Teatro Municipal, e preparada pelo seu dinamizador em São Paulo e Santos, Divaldo Gaspar de Freitas ajudado pelo núcleo académico de antigos estudantes de Coimbra radicados em Santos e que exigiram a presença com o TEUC, dum grupo de fados de Coimbra, como aconteceu, assim como a presença do Reitor da Universidade e de vários professores. Esta embaixada que viajou no barco "Serpa Pinto" alcançou um sucesso estrondoso e deu azo a que fosse celebrado o primeiro acordo literário Luso-Brasileiro.
Decorria o ano de 1946 e a comissão da Queima das Fitas convidou antigos cantores e tocadores de Coimbra famosos, como Paradela de Oliveira, Armando Goes, Roseiro Boavida, Artur Paredes e Afonso de Sousa, para actuarem na Serenata da Sé Velha e no sarau de gala no Teatro Avenida, pois comemoravam-se em simultâneo o aniversário da fundação do Orfeon.
Roseiro Boavida surpreendeu cantando à viola com a sua voz de barítono a "Senhora do Almortão", tendo vindo a saber que era oriundo da Zebreira, Concelho de Castelo Branco. Foram esses cantores acompanhados pelo Artur Paredes, pelo seu filho Carlos Paredes, por Afonso de Sousa e por uma viola de Lisboa, o Arménio Silva.
A propósito desta serenata e revendo a participação de Roseiro Boavida, que trouxe do Distrito de Castelo Branco a "Senhora do Almortão" é altura de lembrarmos que além da Beira Baixa, outras composições populares ao longo dos tempos enriqueceram o "Fado de Coimbra": das Beiras, "Canção da Beira Baixa", do Alentejo "Lá vai Serpa lá vai Moura", dos Açores a "Saudadinha", etc., etc..
Dos cantores dessa época lembro o Julião e o Nani (Dr.Frutuoso Veiga), acompanhados pelo Bagão e Zé Amaral nas guitarras e Aurélio Reis e Tavares de MeIo nas violas. "O Século Ilustrado" dessa época ocupou as páginas centrais com o acontecimento de Maio de 1945, através da notícia escrita pelo João Falcato que inclusivamente canonizou o Bagão como doutorado em guitarra de Coimbra.
Quanto a gravações dessa época existiam no Posto Emissor da RDP Centro um arsenal das serenatas radiodifundidas ao longo de vários anos, com locução do Guimarães Amora e mais tarde pelo Sansão Coelho. A atitude selvagem de meia dúzia de elementos sem categoria não soube diferenciar nem respeitar um manancial histórico que era de todos, destruindo assim num assalto, todo aquele material que agora seria um testemunho sério e valioso do que se fazia nesse tempo já distante.
No início dos anos 50 surgem as gravações de Luiz Goes acompanhado pelo também famoso grupo de António Brojo (Tertúlia do Calhabé), e ainda alguns "fados" cantados pelo Fernando Rolim e pelo Zeca Afonso em 78 rm.
Próximo da minha formatura, em 1953, sou convidado pelo Carlos Figueiredo a gravar em Lisboa, na casa "Valentim de Carvalho" e em 78 rpm, 4 "fados" da sua autoria: "Sonhando", "Mágoa", "A tua Rua", e com letra do Fernando Quintela, "Sé Velha".
Dos outros intérpretes dessa geração não se conhecem registos discográficos, talvez devido a dificuldades das empresas discográficas centradas exclusivamente em Lisboa. Contudo e como já se disse, o Jorge Gouveia e o Napoleão Amorim já nas últimas décadas do século XX gravaram "Fados de Coimbra" deixando esses registos em vinil e em cd.
Conhecendo a obra de António Nunes, e segundo a sua opinião autorizada e séria acerca do "Fado de Coimbra" ou da Canção Coimbrã, ficamos a saber que o canto serenil depois do Hilário foi redefinido pelos Menanos e estereotipado por Edmundo Bettencourt e pelo Paredes; que ainda hoje subsiste, tendo encontrado fórmulas de continuidade após a Crise Académica de 1969. Diz-nos ainda que o canto de intervenção social foi introduzido na comunidade académica por José Afonso e pelo Adriano concretamente em 1960. Após o 25 de Abril de 1974 surge um período de silêncio que é quebrado na célebre serenata de 1979, no Dia do Estudante, e em 1990 durante a Queima das Fitas numa serenata monumental na Sé Velha.
Seja-me permitido acrescentar que nos finais dos anos 40 surgiu uma voz admirável, cantor nessa geração e nos inícios dos anos 50, que cantava o "fado de Coimbra” com arte muito pessoal. Gravou já depois de formado, nos anos 60, com João Bagão, interpretando o “Fado Hilário" numa versão discutível e que ele conseguiu recolher; versão essa, diferente daquela que habitualmente se tem ouvido. A interpretação é, na minha opinião, genialmente concebida. Este cantor chama-se Alexandre Herculano e foi nessa altura uma revelação.
Reflectindo sobre os factos apontados, ficamos com a ideia de que o "Fado de Coimbra" encontrou componentes histórico-musicais de continuidade ao longo das várias épocas, que são concretamente documentadas a partir dos anos 1850, primeira metade do século XIX, com José Dória, reconfirmando-se a partir de Hilário, e impulsionado pelos Menanos, de forma a criar através de gravações, uma verdadeira escola orientada para o futuro.

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