quarta-feira, dezembro 28, 2005

Resposta ao comentário de A. Nunes a "Valsas e Rondó"

Caro A. Nunes:
Agradeço as suas felicitações, e tenho todo o gosto em prestar, a si e aos frequentadores deste "blog", os esclarecimentos que me pede.
Inicialmente, pensei utilizar a expressão "para guitarra" como subtítulo para as três peças. Substituí-a por "para guitarra clássica" por se tratar de um "blog" dedicado à guitarra de Coimbra, onde essa primeira expressão se podia prestar a equívocos. Mas fi-lo na plena convicção da propriedade da segunda opção. É que elas são mesmo para o instrumento hoje conhecido em Portugal como guitarra clássica, ou simplesmente guitarra (como prefiro, no que de resto sigo a opinião predominante entre os nossos compositores, instrumentistas e professores). Passo a explicar:
Por guitarra barroca, entende-se hoje um instrumento que "differed significantly from the modern classical guitar. It was lighter in construction with a smaller, shallower body, lacked fan strutting, and had a shorter scale length with tied on adjustable frets. The instrument had five courses or pairs of gut strings, instead of the six single strings of todays instrument, and was tuned (from low to high) ADGBE . The first string could either remain single or be doubled, and together with the second and third courses were normally tuned in unisons, but the fourth and fifth strings (D and A) could be paired with high or low unisons or with octaves" (in: http://www.baroqueguitar.net; consultado em 27/12/2005). A literatura sobre este tipo de guitarra é já vasta, o mesmo acontecendo como as gravações em instrumentos da época ou réplicas. Sobre a sua técnica de execução, consulte-se, por todos, o site do guitarrista francês Gerard Rebours (http://g.rebours.free.fr/Gerard_Rebours.html).
Não foi, pois, para guitarra barroca que estas peças foram escritas, mas para aquilo que entre nós se designava por "viola francesa". No século XIX, mas também no XX: "Até aos anos sessenta do século XX, o instrumento continuava a ser designado como viola francesa no manual da disciplina de Acústica usado no Conservatório de Lisboa, donde se presume que só depois disso se terá adoptado a designação de guitarra clássica, para o distinguir não só da guitarra portuguesa, mas também das violas populares." (Isabel Monteiro, "Viola ou guitarra?-As diferentes designações do mesmo instrumento", in Educação Musical, nº 111—Out./Dez. 2001, Lisboa, Associação Portuguesa de Educação Musical, pág.s 22-23).
E o que era a "viola francesa" em 1820? A guitarra clássica na sua primeira fase, que vai de finais do século XVIII até meados do século XIX. As alterações introduzidas por Torres (que, de início, aliás, só foram adoptadas em larga escala em Espanha) correspondem a uma segunda fase, e o instrumento sofrerá a sua última modificação morfológica significativa com a introdução das cordas de nylon, nos anos 40 do século passado. A guitarra clássica, como hodiernamente a entendemos, não existe desde meados do século XIX, mas desde muito antes: "Decidedly, the most important factor in the development of the guitar was the addition of the sixth string. It was without doubt an innovation that belongs to the eighteenth century, just as the five-string guitar was a product of the sixteenth" (François Faucher, Classical Guitar Illustrated History, in: http://www.classicalguitarmidi.com/history/guitar_history.html; consultado em 27/12/2005; o itálico é do autor).
Na verdade, a introdução da sexta corda (Mi grave) terá, como consequências, profundas alterações ao nível da escrita de música prática, da técnica de execução e da didáctica do instrumento. O que acontece precisamente na primeira metade do século XIX, graças a mestres (também compositores consumados e instrumentistas virtuoses) como Fernando Sor, Mauro Giuliani, Mateo Carcassi, Johann Mertz, Ferdinando Carulli, Dionisio Aguado. Os seus métodos continuam hoje a ser usados, e os seus estudos e peças fazem parte do repertório essencial da guitarra (ou guitarra clássica).
E é neste ponto que devo referir-me à importância destas Valsas e Rondó: que eu saiba, são o mais antigo testemunho da prática em Coimbra do instrumento hoje conhecido como guitarra clássica. São peças fáceis, provavelmente usadas no ensino do instrumento, e não em execução pública. O que não se passa com as verdadeiras peças de concerto que figuram em "O Conimbricense Armonico (sic) / Periodico de Musica / que contem alternadamente. / Simfonias, Variações, Caprichos, Fantazias, / Pot-pourris, Arias, Cavatinas, Cabaletas, Ron-/ dos Contradanças, e Waltzs etc.ª / Arranjadas / Para Viola Franceza / por / L. J. M. Oliveira. / Coimbra / Lva.[=Livraria] de L. J. M. Oliveira". Como se lê, manuscrito, na capa de um dos seus folhetos (ver abaixo), "este periodico Conimbricense, de musica para viola francesa, começou a publicar-se em 15 de Novembro de 1848, e terminou com este nº 26 em dezembro de 1849. Fariam 2 numeros por mes". Na Biblioteca Municipal de Coimbra, há alguns números, alguns repetidos. Devo o conhecimento da sua existência à cantora Catarina Braga. É outra obra que merece a atenção de todos que se interessam pela música de Coimbra, e pela guitarra/ guitarra clássica (seja o que for que lhe chamem).
Com estas linhas, espero ter respondido a todas as suas dúvidas, bem como às que porventura subsistissem nos espíritos dos que neste "blog" encontram um espaço de reflexão e de informação actualizada sobre a música que se fez e se faz em Coimbra.
Cordiais cumprimentos de
Flávio Pinho

Seguem-se imagens de uma das capas, com um pormenor do seu topo, bem como de uma Waltz (Valsa) de "O Conimbricense Armonico".

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