quarta-feira, outubro 05, 2005

A Canção de Coimbra no Século XIX
Ele há teorias e teorias...

IV. Identidade(s)
por António M. Nunes

O conceito de identidade pertence ao léxico vulgar e ao vocabulário técnico dos mais diversos ramos do saber. Em Psicologia fala-se de identidade pessoal, em Direito de identidade jurídica, em Antropologia, História e Sociologia, de identidade cultural/regional/nacional[1].
No tocante à CC, podemos entendê-la como um género artístico, semântico e musical singular e singularizado (acepção psicologista), por oposição a outros géneros musicais portugueses ou estrangeiros. Ao longo da sua multifacetada história, a CC distingue-se e distancia-se de outras manifestações estéticas graças ao seu éthos e ideossincrasia. Porém, a singularização a que nos referimos configura ela própria um longo percurso de construção.
No interior das práticas e discursos subjacentes à CC, são detectáveis dimensões estruturantes, de constituição singularizante. Podemos falar, a propósito da CC em identidade geral e em micro identidades. As últimas correspondem a movimentos estéticos que, pela sua vertebração poética, musical e ideológica, potenciam a individualização de fenómenos conjunturais cronologicamente circunscritos.
A CC, pela sua versatilidade e receptividade (Afonso de Sousa, 1978), e mal grado as inércias e resistências à dinâmica de mudança, revela uma identidade adaptativa (capacidade para se adaptar a novas situações e propostas), traduzida naquilo que o etnólogo José Alberto Sardinha designa por “processo de tradicionalização”[2].
A identidade da CC sai reforçada não em contexto cultural de isolamento, antes no confronto, diferenciação e oposição com outras manifestações culturais. A consciência da mesmidade e da alteridade ajudam a determinar aquilo que os seus cultores consideram como sendo próprio, distinguindo-a daquilo que lhe é alheio.
Tal qual chegou ao início do século XXI, a CC é vista e proposta como uma das traves mestras da identidade da Academia de Coimbra, considerando-se os estudantes da UC os legítimos representantes deste género artístico.
À luz deste postulado endógeno, todas as formações exógenas são consideradas destituídas de “autenticidade”, e concebidas como ilegítimas usurpadoras de um património cultural “alheio”. O “isolacionismo estético” coimbrão reforçou-se após a Questão Capas Negras (1947) e aumentou de tom pelo menos desde a década de 1990, quando as formações estudantis activas na cidade do Porto optaram por praticar o “chamado Fado de Coimbra” como um virtual “Fado Académico”[3].
Alvo de veemente rejeição são igualmente todas as formações amadoras ou profissionais activas em casas de Fados (Lisboa e Porto), cujos protagonistas utilizam a capa de estudante à semelhança do “traje folclórico domingueiro” instaurado como “farda” pela FNAT, interpretam repertório dito clássico (na linha do entendimento grosseiro do folclore do Estado Novo: Corridinho=Algarve, Fandango=Ribatejo, Vira=Minho, Fado=Lisboa, Chula=Douro Litoral, “Fado de Coimbra”=Beira Litoral), recorrendo a tocatas de fado[4].
Vista à distância, a CC insinua-se como uma produção artística espontâneo-amadora, monolítica, parada do tempo, imune aos movimentos de contestação e de ruptura, praticada ao longo de todo o ano pelas ruas da cidade de Coimbra, espaços onde os agentes masculinos embrulhados em capas de estudante cantariam chorosamente serenatas românticas. Este é obviamente o esteriótipo deformado. O ritual estudantil vazado na serenata de cortejamento era apenas uma das várias formas de afirmação artística da CC, tradicionalmente praticada entre os inícios da Primavera e o Outono.
Inteligir a CC na sua globalidade e multiplicidade diacrónica exige do investigador demoradas incursões de terreno, bons conhecimentos da cultura tradicional académica, o colocar-se no interior dos sentidos em que a CC se insinua. O saber desvendar-lhe os mitos e os silêncios. A(s) identidade(s) da CC ensinam-nos que ela, enquanto manifestação artística, foi sendo exactamente aquilo que os dicionaristas, panfletaristas e devotados cronistas nunca escreveram.
As demoradas incursões de terreno mostram-nos que podem considerar-se suportes basilares da identidade da CC:
-determinados artefactos instrumentais – cordofones e instrumentos musicais considerados característicos na sua maioria da cidade de Coimbra; instrumentos que não sendo oriundos da cidade ali se aclimataram pelo menos desde o Renascimento (Viola Toeira, Cítara-Bandurra ou “guitarra popular”) e o Barroco (Guitarra Inglesa) e assumiram marcas inconfundíveis no tocante a anatomias, afinações, timbres e esquemas de execução (o bandolim, proveniente de Itália; o cavaquinho, trazido por estudantes minhotos no século XVIII; o “violão francês”);
-esquemas de dedilhação;
-estilos de emissão vocal – que variando de cantor para cantor se alicerçam quase sempre em etnoestilos pré-existentes, seja em termos de mera reprodução/mimetismo, seja em termos de esforço criador/individualizador. Mais doces e demonstrativos de ternura, suaves, metálicos, nasalados, caprinos, baços, brilhantes, os timbres vocais percorrem os registos de baixo, barítono, segundo tenor e primeiro tenor, espelhando sensibilidades, formas de estar e de sentir. Ressalvando casos pontuais, a maioria dos cantores tende a reproduzir cânones de emissão vocal bebidos em intérpretes paradigmáticos. Pelo que se pode falar em “escolas”, ou melhor, “paradigmas”. Estamos perante reprodução de estilos quando José Paradela de Oliveira se aproxima de Lucas Junot, Luís Goes e Manuel Julião de Armando Goes, Machado Soares e Mário Mendes de Edmundo de Bettencourt. Augusto Camacho, Fernando Rolim, José Afonso, Anarolino Fernandes, Sutil Roque, não engeitaram a herança vocal de Paradela de Oliveira. A teoria das filiações vocais foi levada muito a sério na década de 1950, primeiro no grupo de António Brojo, depois no Coimbra Quintet, graças à influência de Florêncio Neto de Carvalho[5].
-códigos semântico-linguísticos – a Sociedade Tradicional Académica comunica usando da língua portuguesa padronizada, e simultaneamente dispõe de uma gíria própria, onde entram vocábulos nem sempre inteligíveis (capa, torre, cabra, quintanistas, fitas, pastas, etc.). Acrescem a estes, nomes e palavras vincadamente coimbrãs, decorrentes da toponímia, dos lugares da memória, dos monumentos;
-sistemas específicos de afinação de instrumentos;
-formas de elocução verbal e fonética (pronúncia de Coimbra) – o respeito pela pronúncia de Coimbra é uma característica da CC. No dizer do historiador e etnólogo Nelson Correia Borges (Coimbra e região, 1987, pág. 31), “não falta quem afirme que Coimbra é a terra onde melhor se fala em Portugal. O português é aqui mais agradável e gracioso, o que não pode deixar de ser um reflexo do facto de Coimbra ter sido sede da universidade portuguesa durante séculos. Mesmo as pessoas da mais humilde condição se exprimem com facilidade, sem as asperezas de sotaque nem falhas de dicção”. A fono-história da CC demonstra que no geral os cantores se esforçaram por adoptar a pronúncia de Coimbra, mesmo quando oriundos de espaços sócio-culturais de fonética muito vincada, como sucedeu com Edmundo de Bettencourt (Funchal), Fernando Machado Soares (Ilha do Pico), Tomáz Alcaide (Estremoz), José Pimenta Lacerda e Megre, José Maria Lacerda e Megre (Ponte da Barca), Manassés de Lacerda (Sabrosa), Adriano Correia de Oliveira (Porto), Alexandre Resende, Lucas e Jaime Junot (Brasil), Anarolino Fernandes (Ilha Terceira), Barros Madeira (Loulé). No século XIX, a erudição e pronúncia eram de tal ordem padronizadas que até nos cantos populares se cantava escrupulosamente o ditongo “ou”, em vez do vulgar “oi”. Breves peculiarismos registados no terreno, como “eiágua”, “neiágua”, “houveram”, “perca”, não ferem letalmente a elegância e correcção do falar[6], pelo que a manutenção de uma qualquer pronúncia regional alheia a Coimbra constitui anátema e motivo de descrédito para um cantor[7].
-determinados rituais e gestos (traçar a capa, fechar os olhos, olhar melodramaticamente para o céu, inclinar a cabeça, entrelaçar os dedos e bambolear os ombros, enrolar e morder a língua, suspender teatralmente a mão direita sobre a boca da guitarra nos momentos de pausa, manear tronco e braços durante o toque. Em território mais circunscrito, alguns destes tiques e esgares são alvo de temíveis troças);
-certas imagens e memórias (mesmo que míticas);
-o uso do trajo académico, por parte de estudantes cultores, e da capa simples pelos antigos estudantes da UC. De acordo com as normas praxísticas positivadas e a legislação portuguesa que regulamenta o uso dos uniformes, o uso da capa por elementos não académicos integrados em grupos, obedece a certas restrições.
Segundo os ditames das antigas praxes, a Capa e Batina era escruposamente interdita a não estudantes, potenciando a violação destes preceitos a aplicação de penas. Cultores como Eugénio da Veiga, Antero da Veiga, Artur Paredes, António Rodrigues da Silva, Flávio Rodrigues da Silva, Alexandre Resende, José Lopes da Fonseca, Francisco Caetano, José Caetano, Walter Figueiredo, respeitaram a tradição estudantil.
As primeiras excepções remontam a Artur Paredes, cujo estatuto peculiar e excepcional motivou a Academia a homenageá-lo, colocando-lhe a capa sobre os ombros em diversos momentos. Os cultores e praticantes da CC, activos na Sociedade Tradicional Futrica nunca envergaram trajo académico. A pesquisa iconográfica demonstra que o visual dos serenateiros reflecte nuances evolutivas, antes de se cristalizar definitivamente no período do Estado Novo.
Observando fotografias de finais da década de 1940 e inícios de 1950, é bem visível o quanto o figurino dos intérpretes da CC se retrai e congela a partir da invenção das “serenatas radiofónicas”, e das Serenatas Monumentais da Queima das Fitas, impondo um visual sacralizado e hierático, distanciador e quase paramilitar, muito ao gosto da estética do Estado Novo.
Esta invenção, construída a partir do hieratismo triunfante das Serenatas Monumentais da Sé Velha e de um fragmento dos saraus académicos, sendo encantatória, não deixa de afigurar-se redutora/desfiguradora. Por um lado, as Serenatas Monumentais estavam em fase de arranque. Por outro, a representação da CC em saraus estudantis, tal como fora alinhada pela Tuna Académica (TAUC) desde 1894, propunha um momento de “guitarradas”, com os intervenientes de capas descaídas pelos ombros, e outro de árias cantadas por solistas masculinos, este último com as capas traçadas.
Até 1900 temos batinas abotoadas até ao pescoço, capas pendentes dos ombros, gorros, capas traçadas com uma das abas descaindo por debaixo do braço até repousarem sobre o peito, tocadores que desfilavam nas ruas com os instrumentos suspensos de cordéis, representações de palco com os instrumentistas de capa caída pelos ombros, acompanhadores de serenatas-desfiles empunhando archotes e lanternas ora nas ruas, ora em barcas serranas. Nas récitas de despedidas dos quintos anos, quando se cantavam em palco os hinos de curso e baladas de despedida, além da orquestra, destacavam-se os solistas masculinos convidados (tenores e barítonos) que cantavam erectos na boca do palco, tendo atrás todo o curso que fazia os coros.
Numa fotografia de 22 de Maio de 1945 (65º aniversário do Orfeon Académico), Artur Paredes, Afonso de Sousa, Arménio Silva, Paradela de Oliveira e Armando Goes, apresentam-se no pórtico da Sé Velha em postura erecta e com as capas pendentes. Numa foto também de 22/05/1945, relativa a um trecho do sarau orfeónico realizado no Teatro Avenida, vemos João Bagão e Paradela de Oliveira com as capas traçadas, enquanto Arménio Silva (violão aço) apresenta a capa aberta e pendente dos ombros (Cf. Ernesto Veiga de Oliveira, Instrumentos Musicais Populares Portugueses, 3ª edição, Lisboa, FCG/MNE, 2000, pág. 95, foto 66, com o título discutível de “fado académico”).
A glaciação do visual dos serenateiros académicos instaurou-se na transição para a década de 1950, atingindo o auge com a Tertúlia do Calhabé (Grupo de António Brojo), qual corolário lógico do processo de inculcação dos “fardamentos” domingueiros que a FNAT vinha a aconselhar aos ranchos folclóricos, em sintonia com os princípios “ordem”/”disciplina”/”uniformização”. Não são conhecidos documentos oficiais que nos permitam afirmar que o Estado Novo impôs um determinado visual aos cultores da CC, mas o fenómeno de generalização da “capa traçada”, a silhueta hirta e distante dos cantores, o progressivo “fardamento” dos futricas ligados à arte, conduzem-nos a tangentes demasiado evidentes. Não se trata apenas de assinalar fortuitas coincidências.
E se na época referida se assistiu nas formações académicas conimbricenses a um autêntico congelamento do visual, o mesmo se passou nos meios oficiais tutelados pelo SNI (formações profissionais, destinadas a actuar no estrangeiro) e nas casas de fados licenciadas em Lisboa, cujos programas incluíam “momentos de folcore e de Fado de Coimbra”. Lentamente, a partir da década de 1940, a indústria cultural apropriou-se de uma certa imagem da CC e forjou outras (serenata amorosa, só com elementos masculinos, dupla estudante/tricana). Dito isto, pertencem apenas ao imaginário kitsh pratos, copos e estatuetas turísticas, recheados de anacronismos, onde pululam tricanas de mini-saia, estudantes em uniforme que se pretende vender por trajo “popular”, guitarras de modelo não anterior a 1900 e violas toeiras totalmente descontextualizadas. E ao imaginário kitsh pertencem ainda pseudo signos da CC, inventados por “restaurantes típicos”, onde se vislumbram capas dependuradas de paredes e velas, directamente inspirados na ambiência das casas de Fado de Lisboa.
Os emblemas e signos revisitados falam-nos do “processo de folclorização” a que foi sujeita a CC no Estado Novo, sob o manto diáfano de “folclore urbano”, com total rejeição das práticas futricas[8], a desqualificação da serenata de cortejamento espontânea severamente controlada pelos requerimentos ao Governador Civil e pagamento de multas por perturbação da ordem pública nocturna[9], e a aposta numa CC domesticada por via da sua inclusão em três eixos: serões dos trabalhadores da FNAT, serenatas monumentais da Queima das Fitas e “serenatas da Emissora Nacional”[10].
No caso da Emissora Nacional, o crescente recurso ao pré-gravado e a exibição de discos de cantores do clássico activos nas casas de Fado de Lisboa, permitiu neutralizar na década de 1960 eventuais embaraços causados pelos artistas contestatários. A herança perniciosa das manipulações ideológicas a que esteve sujeita a CC deixou rasto após 1974 nas seguintes linhas vertebradoras:
a) persistência da rotulagem da CC como “um folclore urbano”;
b) fabricação urbana de temas coimbrãos a partir de temas rurais, ou pseudo-rurais, considerados pelos seus inventores como a quinta essência da CC;
c) inclusão imprópria de “grupos de fados de Coimbra” em grupos folclóricos [11].

As pesquisas de terreno permitem-nos assinalar uma comprovada consistência interna desta manifestação estética, o sentimento de continuidade temporal, a radicação geográfica (territorialização), a relativa fidelidade dos praticantes a experiências, valores e ideias enformadoras das fronteiras do Eu/Nosso.
A dimensão estruturante das práticas identitárias foi realçada por Wally Olins (Corporate identity, Thames & Hudson, 1991), ao relevar a enfatização das raizes, a originalidade, as traves mestras e pontos fortes das instituições. Eric Erickson (Identity, New York, 1968), seguido por José Mattoso (A identidade nacional, 1998), sugere como bons postulados úteis aos debates sobre questões identitárias: a) a possibilidade de diferenciar/distinguir um objecto ou bem cultural de qualquer outro; b) a existência de um significado específico; c) o valor próprio[12].
A identidade da CC, nos seus quase 160 anos de vivescência, tem sido penhor de uma consciência regional fortemente radicada nos meios académicos e populares conimbricenses. Alguns memorialistas académicos – pelo menos desde a década de 1880 - , apostaram em realçar como características diferenciadoras a especificidade do meio geográfico, com as suas belezas, recantos naturais, bosques, fontes, o rio, a configuração da malha urbana, elementos afinal invocados para legitimar outras manifestações artísticas como o naturalismo de veia nacionalista. Outros, apostaram na sobrevalorização da produção literária “mais lírica e espiritualizada”, recorrendo a critérios vagos, generalistas, que também foram empregues nos momentos de acalorados debates nacionalistas sobre “arquitectura portuguesa”, “pintura portuguesa” e “casa portuguesa”.
Durante décadas, a CC foi internamente definida (autodefinição) por identificação com o Fado de Lisboa. A longa homologia cifrou-se na importação e entrada em circulação de um léxico aparentemente comum, traduzido em vocábulos do tipo “fado”, “fadista”, “fadistas”, “trinados”, “gemidos”, “chorar”, “castiço”, “tempo de fado”, “pausa do fado”, “fado-canção”, “cantar o fado”, “fados e guitarradas”.
Consoante a plataforma ideológica e investigativa em que gravitam, os empíricos, diletantes, investigadores, memorialistas, cultores, notam-se tendências para valorizar as seguintes estratégias estruturantes:

-o carácter único e inconfundível da CC;
-o regionalismo ou matriz localista, húmuz incontornável de vocalizos, sonoridades, emoções, inspirações, ubérrimo útero onde tudo, ou quase tudo, se gera (elemento bairrista);
-as tendências melancólicas, nostálgicas, vertidas numa vaga e fluida filosofia da saudade, associadas ao lirismo romântico, ultra-romântico, neo-medieval (elemento místico);
-a hiperbolização selectiva de mitos (exemplo de Augusto Hilário), e a ingénua crença de que os rouxinóis do Choupal teriam reencarnado em certas vozes de eleição (António Menano);
-o alinhamento do Amor, como base nuclear inspiradora das criações;
-a sobrevalorização do ritual da serenata estudantil de cortejamento;
-a alegada propensão para o improviso amadorístico, campo onde residiria o segredo e a virtude da CC (abusado artifício que não raro mascara inaptidões e rudimentarismos);
-uma estranha, mistérica e irracional capacidade para gerar emoções introspectivas, choro, arrepio, tristeza, nostalgia;
-o perfil “boémio” dos praticantes e executantes, e bem assim dos meros reprodutores;
-a (in)capacidade de problematização de questões sociais, traduzida num esforço de alargamento do campo semântico-musical, por vezes sublinhando o sentido de ruptura, embora mantendo diálogo com as raizes (etnoestilo).

As “valências” inventariadas foram construídas em diferentes tempos e contextos culturais. Muitas delas são comuns às apontadas a outros géneros musicais. Se solicitássemos a um amante do Tango, da Morna ou do Fado para nos facultar definições simplistas dos géneros musicais que pratica ou idolatra, encontaríamos elementos comuns aos diversos géneros convocados. Relativamente ao ponto dois, a radicação geográfico-cultural é um dos pilares da identidade da CC. Não oferece dúvidas que foi na cidade de Coimbra, e mais especificamente no tecido urbano do Bairro Latino/Bairro Salatina (Velha Alta, em sentido restrito, não conglobando o Bairro dos Chibatas, Baixa e Arrabalde) que a CC emergiu, se afirmou e consolidou na sua longa trajectória. Ou que foi no interior da própria cidade, por contraposição à música popular e à tradição musical tunante (as pândegas e tunas) que o foro musical em apreço se autonomizou. Ou que a CC foi directamente influenciada pelos instrumentos musicais em uso na cidade, suas anatomias, afinações, toques e timbres. De Coimbra – e passe a banalidade - , porque em Coimbra germinou e evolucionou, e não em qualquer outro espaço geográfico[13].
Não quer isto significar que o foro musical coimbrão não tenha incorporado elementos exógenos, ou que antigos estudantes de Coimbra não tenham composto quando domiciliados longe da cidade onde estudaram. Porém, os elementos exógenos tiveram de passar pelo crivo da selecção e da aculturação local. Mesmo as chamadas canções de proveniência regional, de que citaremos apenas Senhora do Almotão, Salvaterra me Desterra (vide Canção da Beira Baixa), tiveram de metamorfosear-se localmente. E as que não foram sujeitas a aculturação, revelam demasiadamente traços exógenos, como acontece com Fado em Dó[14].
Do ponto três se dirá que nem todas as árias suscitam sentimentos melancólicos. Nem poderíamos corroborar tal ideia impressiva, visto não existir um inventário global dos temas enformadores da CC. Estando o registo fonográfico disponível dos temas mais conhecidos em menos de meio, e olhando à diversidade de composições existentes, afigura-se verosímil que uma percentagem não quantificada apele a emoções do tipo apontado, enquanto muitas outras (ainda não quantificadas), produzem efeitos do foro emocional bem diferentes. Quanto ao generoso emprego do tom menor, para exprimir dolência, saudade, tristeza, ele irrompe na Morna, no Fado Menor de Lisboa, no Tango, no Chorinho brasileiro, e até em plangentes modas açorianas como Tanchão (O cantar da meia noite), Meu Bem (Ó Meu Bem se tu te fores), Saudade (A Saudade é um luto), a Lira e outras.
Quanto ao ponto quatro, definitivamente Augusto Hilário não é o inventor da CC, nem dos rituais de serenata. Gorada a derradeira esperança de encontrar um dos cilindros de cera Edison, gravado ao vivo pelo cantor em 1894, durante muitos anos na posse do Dr. Júlio Condorcet Pais Mamede, a confirmação do seu extraviamento numa exposição leva-nos a afirmar que a perda deste documento sonoro representa a glória de Hilário. A sua audição faria esboroar penosamente o mito.
Sobre o ponto cinco, o pseudo enfeudamento da CC à glosa do amor, só muito parcialmente corresponde à riqueza e diversidade de uma produção cultural vinda do século XIX. Não existem amostragens percentuais de outras temáticas, como a despedida, a morte, os lugares da memória e da natureza, as questões sociais. Nem sequer existem elementos comprovativos, para o caso da comunidade estudantil, indiciadores de que todos os estudantes cultuavam ao amor viril. Alguns dos serenateiros eram alunos da antiga Faculdade de Teologia da UC, e concluídos os cursos seguiram a vida sacerdotal, sendo bem conhecido o caso de “Petrónio Teológico”, D. José Dias do Patrocínio. Quem o viu, revestido das dignidades de Bispo de Beja pela década de 1920, não diria que nos alvores do século XX enfeitiçava vultos janelantes com a sua bela voz de barítono. Também não lembraria à intuição dos investigadores que certos vultos activos da CC não foram exactamente heterossexuais. Importa pois questionar se a hiperbolização da amorosidade não constitui ardil para reforçar o discurso monolítico que pretendeu reduzir a CC ao ritual da serenata de cortejamento, cujo fim último seria o enlace matrimonial?
O que se canta no século XIX, em termos de cortejamento, são as mulheres-anjo, os olhos negros, os rostos morenos, a honra e a virtude das donzelas idealizadas. Não se cantam as criadas de servir, as mulheres casadas, as viúvas, as prostitutas, as mendigas. O culto da noite resvalava frequentemente para as fronteiras do interdito e das transgressões, e em lugar de serenatas, borbulhava o vinho, a embriaguês, o comércio sexual com meretrizes, as doenças venéreas, as brigas, o erotismo, o dançar nas Fogueiras de São João, os decatos ao sossego dos moradores e à ordem estabelecida. Ausente a estrutura familiar portuguesa tradicional, os jovens provisoriamente domiciliados em Coimbra inventavam a “adolescência” recheada de prazeres e passatempos cujos códigos conflituam frequentemente com a tradicional normativização anjinho/rapazinho/homenzinho/homem. O “homenzinho” não tinha ainda adquirido em Portugal o estatuto de adolescente. Era visto tão somente como um adulto masculino em miniatura que, forçado a abandonar a meninice e as brincadeiras, se fazia adulto à força do trabalho e da ajuda prestada aos adultos.
As meninas respeitáveis eram alvo de serenatas, convívio respeitoso em saraus musicais, espectáculos teatrais. Alguns estudantes romancistas abordaram literariamente casos de mulheres “dignas” que se “desgraçaram”, entre eles Arnaldo Gama e António da Cunha Belém. O tema estava em voga, tendo feito escola em Dumas Filho (A dama das camélias) e em Verdi (La Traviatta). Na sua maioria, os estudantes do século XIX cultivam uma imagem bem convencional da família e da esposa virtuosa, vendo nas práticas sexuais adolescentes um “pecadilho de juventude” que o casamento resgataria.
Aqui e ali respigaram registos de filhos ilegítimos, fruto de relacionamento entre estudantes e raparigas domiciliadas na cidade. A aplaudida poetisa Amélia Jany (1841-1914), era filha ilegítima do Dr. António Correia Caldeira, estudante entre 1836-1841, doutorado em 1842, deputado às Cortes, Conselheiro do Tribunal de Contas. Amélia Jany jamais seria perfilhada ou reconhecida pelo progenitor. O grande mestre do ferro forjado coimbrão, José Pompeu Aroso nasceu em 1910, fruto de uma relação entre Virgínia Pompeu e o estudante nortenho Manuel. Manuel formou-se em 1914, e regressou à terra natal, tendo abandonado Virgínia com dois filhos nos braços. Melhor sorte teria o Dr. José Bruno Tavares Carreiro, formado em 1904, autor de uma sólida biografia de Antero de Quental, que tendo nascido ilegítimo, foi perfilhado.
O amor de estudante era fugaz, inconstante, dizia o cancioneiro popular. Cobiçavam-no as raparigas da cidade, conforme cantam muitas quadras da malta. “Eu sou o Jaime Peralta, namorador das pequenas da Alta”, vangloriava-se o guitarrista serenateiro Jaime de Abreu em plenos pulmões. Por estas e por outras, e a propósito das brigas travadas entre futricas e estudantes pela posse das fêmeas, gritava o sapateiro e guitarrista Alexandre em plenas Fogueiras, aí por 1880-1885: “Futricas! Futricas! Como se houvesse em Coimbra algum futrica... que não fosse filho de estudante!”
Em finais do século XIX, os estudantes amigos do erotismo e da pornografia podiam adquirir no estrangeiro, ou via encomenda postal ao Porto e a Lisboa, gravuras e fotografias pornográficas, a par das chamadas “leituras só para homens”, onde constavam textos eróticos de “leitura apetitosa” e “bonitas gravuras”. Também circulavam manuais de “doenças secretas”, descrevendo as “doenças venéreas e syphiliticas” de ambos os sexos, com promessas de cura clandestina pelo Dr. R. Sepúlveda. Os mais púdicos podiam consultar a Grammatica dos namorados, de Dona Rita Taveira, o Manual dos solteiros, de M. Barbosa do Bocage, o já antigo Secretário dos Amantes e o Toilette secreto das damas. Por aqui se aprendia a conversar, galantear, cortejar, redigir cartas amorosas, disfarçar malformações e fealdades, emagrecer ou engordar, a fecundação feminina, o segredo da paixão das senhoras, o alfabeto da luva, a significação dos beijos, o abc do amor, o cantar ou declamar poemas irresistivelmente sedutores.
Nos estudos sobre as imagens da masculinidade na Academia de Coimbra, importará considerar que até à fundação do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), em 1938, todos os papéis femininos foram interpretados por travestis masculinos, fossem eles operáticos, cómicos, dramáticos ou burlescos. O assunto foi por diversas vezes registado nos livros de memórias estudantis e na época áurea do bilhete postal ilustrado circularam nos quiosques muitos postais de estudantes travestidos de tricanas em trajo de 1880-1900[15]. Assim postas as coisas, não nos parece despropositado intentar em futuras investigações detectar eventuais conexões entre o travestismo estudantil enquanto prática social bem aceite e respeitada e alguns sinais de androginia em vozes serenis do primeiro quartel do século XX[16].
Nos meios populares, os poemas cantados nos arraiais e romarias eram mais brejeiros, chegando a explicitar nomes e situações. A escassos quilómetros de Coimbra, em Vila Nova de Cernache, o ritual vindicativo de Deitar Pulhas (difamar publicamente) não poupava ninguém. Modas populares como “A Raptada”, “As Criadas de Servir”, “As Freiras de Santa Clara”, “Frei Paulino”, “O Frade Capucho”, falavam abertamente do adultério, mancebia, violação dos votos de castidade. A moda “Vá Laranja ao Ar”, preceituava brejeiramente: “Quatro coisas são precisas/Para saber namorar/Olho fino, pé ligeiro/Responder, saber falar”.
Nada romântica era a tonitroante voz do mandador das Fogueiras da Alta, o célebre Calmeirão[17], que pelos idos de 1940, gritava “nesta roda não há putas”, e o povo em delírio e palmas “há-há-há”, e de novo o Calmeirão, “nem paneleiros”, e o povo “há-há-há”[18]. Como também o não seria o “Livro das Dedicatórias”, rol de clientes que a velha prostituta Cona de Aço, residente na Rua das Covas, guardava preciosamente, com nomes de lentes, médicos, juristas, engenheiros, Sidónio Pais, o Cardeal Cerejeira e outros lembrados pelo fio da memória oral.
No tocante ao ponto seis, a investigação prova que a serenata de cortejamento, vulgo de rua, foi apenas uma das tipologias rituais da multiplicidade de manifestações serenis detectadas na cidade.
Relativamente ao último ponto, antes da década de 1880, os serenateiros não se auto definem na categoria de boémios. Se acaso se definiram, a documentação existente não faz sólida prova de tais representações culturais. Mesmo na época de Augusto Hilário, sabido o quanto os seus contemporâneos e amigos próximos o consideravam o “pontífice da boémia”, não encontramos rasto de afirmações boémias na produção poética hilariana. Vamos encontrá-las, e muito vincadas, no Fado Boémio de Reinaldo Varela (1896), serenateiro, cantor, guitarrista e compositor que não viveu em Coimbra e que hoje classificaríamos sem pejo na categoria de artista “ao estilo” conimbricense da Belle Époque. No entanto, relatos elaborados por memorialistas contemporâneos dos executantes João de Deus Ramos (década de 1850), Antão de Vasconcelos (década de 1860), Manuel dos Santos Melo e Jaime de Abreu (década de 1880), reputam-nos de “boémios”.
Diferentemente do que se tem pretendido inculcar, a boémia estudantil coimbrã não é apenas apanágio de serenateiros e executantes de guitarra. A boémia coimbrã praticada no século XIX tinha diversos aspectos em comum com as vivências quotidianas experimentadas pelos estudantes de Salamanca e pelos frequentadores do Quartier Latin (Paris). Ser boémio, passava pelo culto da individualidade, pelo falar, pelo vestir, pela sociabilidade cultivada, pelos traços de humor, pela produção poético-literária, pelas crenças políticas, pelas deambulações domiciliárias, pelos espaços frequentados[19]. Importa matizar a associação simplista boémio/serenateiro, precisando com rigor a que tipo de boémia nos reportamos, considerando que muito poucos cultores da CC preenchem amplamente as imagens, práticas e representações do viver boémio. Figuras de proa da CC como António Menano e Edmundo Bettencourt apostrofavam abertamente a “boémia praxística” ligada à estúrdia, ao consumo desregrado de vinho e à frequência dos bordéis, valorizando as práticas musicais e as tertúlias literárias.
Conforme salientou argutamente ALCarvalho Homem no título “Da árdua definibilidade da Canção de Coimbra” (livreto do duplo cd José Mesquita, Coimbra, Agitarte, 2000), nenhum “especialista” interveniente nos cinco seminários realizados entre 1978-1983 conseguiu definir satisfatoriamente o que seja a CC. As tentativas definitórias clássicas que vingaram até 1978, além da vulnerabilidade vocabular, eram monolíticas, monológicas, deterministas, causalistas, essencialistas e reducionistas:
-descrições trans-históricas;
-hipervalorização das árias estróficas (com inaceitável desprezo de todo o restante repertório cantável e instrumentístico);
-negação radical das produções da década de 1960;
-cauteloso e desconfiado chauvinismo perante tudo o que cheirasse a exógeno;
-redução da pluralidade instrumentística/organológica à guitarra.
Outro elemento crucial para a prospecção da identidade da CC reside na busca/construção das noções de “autêntico” e de “genuino”. Os sinónimos oitocentistas seriam “pitoresco” e “castiço”, num processo iniciado em finais do século XIX, no decurso do Tricentenário da Morte de Camões (1880), da fundação do Orfeon Académico (1880) e do Ultimato Britânico (1890).
Do ponto de vista das formações e agentes activos em Coimbra, é considerado autêntico tudo o que tenha origem em Coimbra, ou tudo o que seja praticado por grupos radicados em Coimbra. Trata-se de um modo de ver que não questiona o difícil conceito de “qualidade” artística e faz tábua rasa das composições importadas e localmente aclimatadas. O grande exemplo é “Samaritana” (“Dos amores do Redentor”, de Álvaro Cabral), que em 1986 esteve na origem de um requentado conflito com o fadista Nuno da Câmara Pereira (gravação no LP “Mar Português”, 1986, com mais de 80.000 unidades vendidas).
No entanto, até à década de 1940, pesquisa documental mais aturada não corrobora a invocada produção auto-suficiente da CC como um fenómeno cultural endógeno e purista. Há produção local e há importação e aclimatação de repertório. Logo no século XVIII são importados rondós e minuetos do francês Jean Philip Rameau, tocando-se também na Guitarra Inglesa e na Viola Toeira o repertório europeu de salão em voga como a Gavota, a Marcha, o Minueto, a Sonata, a Jiga, o Solo Inglês, a Galharda, a Pavana, e os mais meridionais Lundum e Modinha. Pelo século XIX entram a Polca, a Valsa, e Mazurca. Circulam abundantemente canções trazidas por cantadores ambulantes, ceguinhos mendigos, estudantes, métodos de ensino de instrumentos, partituras impressas do tipo quiosque e encomenda postal. Alguns fascículos de partituras venderam-se em todo o país e até no Brasil, com tiragens simultâneas nos dois países. Com o advento do disco de 78 rotações, logo a partir de 1902-1904, pode dizer-se que quase tudo o que se gravou em língua portuguesa no Porto, em Lisboa e no Brasil, chegou a Coimbra. Reinaldo Varela e a sua vasta obra foi cantado e apreciadíssimo, o mesmo valendo para vozes de profissionais como António de Almeida Cruz ou Avelino Baptista. Já indicámos a aclimatação local de Samaritana, do actor Álvaro Cabral, mas podemos referir Canção à Flora (Querida Flora), a Terra Amada, o antigo Fado da Severa e o Fado do Conde de Anadia, À Meia Noite ao Luar (Porto, meados da década de 1930), e para a década de 1940 Lagoa Adormecida (Eric Coats), o grande sucesso radiofónico de Luís Piçarra Noites de Luar (Fernanda Câncio, gravação de Manuel Branquinho), ou mesmo a Canção das Velas Soltas (Dias Soares) que fora estrondoso sucesso de um rancho sanjoanino da Figueira da Foz (num registo comparativo, com pontos de sintonia, cf. José Alberto Sardinha, “Tunas do Marão”, Vila Verde, Tradisom, 2005).
É por via do endurecimento do discurso nacionalista/regionalista que a necessidade de definir um estilo musical conimbricense diferenciado toma corpo. No entanto, os primeiros “estudiosos” do fenómeno cultural CC não foram os cultores e produtores da CC. Foram exogenamente jornalistas que alimentaram o discurso do “chamado Fado de Coimbra” como um Fado regional exótico e atemporal, apto a redimir a indignidade do Fado. Se não havia em Coimbra um “estilo Fado de Lisboa”, existiria a nuance da “feição coimbrã”, reconhecida pelos diletantes como uma espécie de marca de origem ou característica diferenciadora (João Pinto de Carvalho, Alberto Pimentel).
Endogenamente, a invenção da CC como um “folclore urbano”, síntese utópica das cantigas provinciais trazidas para Coimbra pelos estudantes, começa com o regente do primeiro Orfeon Académico, João Marcelino Arroyo, numa saga de amor/ódio ao Fado em que se ensarilharam os regentes João Arroyo (e seu irmão António Arroyo), António Joyce e Elias de Aguiar. Por seu turno, os diletantes escudaram-se em expressões vagas como “poesia espiritualizada”, “paisagens inebriantes”, “trinados maviosos da guitarra”, “cantor apaixonado”. Conforme se pode aduzir pela análise demorada das parcas fontes, os alvitristas nunca chegam a dizer o que é a CC, apenas enunciam exemplos vagos ou esboçam um confronto pela negativa com aquilo que excluem do universo ortodoxo da CC.
Antes da grande glaciação regionalista de 1947 (Questão Capas Negras), os agentes da CC importavam composições e instrumentos, pelo que os critérios de “genuíno” e de “autêntico” merecem cautelosa análise. Como “medir” a autenticidade localista da CC em Augusto Hilário, sabido que executava os acompanhamentos tonais elementares em guitarras de tipologia portuense e lisboeta, em afinação natural? (o periódico local, “O Tribuno Popular” de 21/06/1902, falando da evolução das Fogueiras de São João, lamentava que os instrumentos típicos da tradição coimbrã, concretamente cavaquinho e viola toeira, extivessem em processo de extinção).
A partir dos finais do século XIX, começa-se lentamente a identificar “genuíno” com rural e “popular”. Afinal o que era concretamente o “chamado Fado de Coimbra”, enquanto essência ou estilo regional? Para os fadistas e cronistas do Fado, a resposta era óbvia: uma variante exótica do Fado transladado a partir de Lisboa.
E para os intelectuais de finais de oitocentos, patriotas republicanos e elites do Estado Novo? Sendo inaceitável que estudantes universitários cultivassem o Fado, tendo em conta a dupla “génese” estrangeira (dizia-se que o Fado era originário do Brasil e que a guitarra viera da Inglaterra), restava, à luz das teorias nacionalistas do reaportuguesamento inventar uma essência ruralizante. Curiosamente, foram os cronistas do Fado que forneceram o mote ideológico para os confrontos diferenciadores, ao insistirem na maior intelectualização/espiritualização da CC.
A resposta a esta questão aparecia resolvida a priori, pois um estudante universitário dominava um registo cultural mais elaborado do que o da prostituta ou do chulo. Mas, se os argumentos diferenciadores comportavam uma costela agressiva, pronta a explodir nos momentos de mais aceso ardor regionalista, também enunciavam já elementos atávicos de sujeição a que deveriam submeter-se os futuros artistas.
Como definir a estética da CC? Quais os seus atributos mais salientes? As respostas começam a ser dadas lentamente em finais do século XIX, correlacionadas com a prática deste género artístico na Sociedade Tradicional Académica: árias estróficas para solistas masculinos, serenata de cortejamento com vista à celebração do matrimónio, guitarra, estudante, rapsódia de bailes populares, celebração poética do amor e da saudade, lugares românticos de Coimbra, evocação bucólica de espaços provinciais portugueses[20].
A crispação destas linhas de força reforçou-se extraordinariamente na década de 1930 com a fundação de um organismo estudantil que desagradou ao Estado Novo – o Fado Académico de Coimbra - , e estalou de madura com a Questão Capas Negras (1947). Mas a animosidade e o chauvinismo presentes na Questão Capas Negras não faziam parte dos valores pregados pelo regime, quando increpava o estrangeiro, fomentava os orgulhos bairristas e recusava os modernismos?
Com a afirmação agressiva da identidade, ao reforçar-se pela negativa, a CC distanciava-se de tudo o que não fosse canonicamente coimbrão. Daí os furores suscitados pela canção ligeira “Coimbra, é uma lição”, adjectivada de “cançoneta de teatro de revista de Lisboa”. Daí os anátemas lançados sobre Amália Rodrigues[21], Alberto Ribeiro, e a hostilidade com que foram vistos à distancia cultores exógenos, sobretudo os activos na cidade do Porto e arredores (crispação reforçada pelas rivalidades entre universidades, academias e militâncias futebolísticas). Porém, uns dez anos antes aceitara-se em Coimbra e sem um ai a portuense “À Meia Noite ao Luar”, êxito infalível da formação Os Samedos.
Não admira pois que quase todas as tentativas de definição da CC feitas por cultores avessos à herança do Segundo Modernismo (década de 1960), mesmo quando esboçadas após 1974, revelem uma atitude pró-ruralista (“o folclore urbano”, a rapsódia), pró-classizante (árias estróficas, variações clássicas), revivalista, reducionista, e claramente anti-moderna. Acontece que estas questões desvelam problemas muito complexos que conduzem o investigador para terrenos não menos armadilhados como a herança ideológica do conceito nazi-fascista e autoritário de “arte degenerada” (1937) que viria a ser aplicado na década de 1960 pelas facções conservadoras da CC.
A partir da década de 1920, e com particular enfâse nos três primeiros seminários do “Fado de Coimbra” (1978, 1979, 1980), certos autores começaram a pôr em dúvida o carácter fadístico da CC, para tanto invocando importantes argumentos:

-a falta de estudos aprofundados, biografias, monografias, análises musicais circunstanciadas, levantamento de movimentos artísticos e literários, ideologias, séries quantitativas de modos menores e maiores;
-a anterioridade histórica da Música Tradicional de Coimbra, quando comparada com a tardia emergência da CC;
-a anterioridade dos rituais de serenata em relação à emergência da CC;
-a ocorrência sincrónica de rituais de serenata em outros países e noutras províncias portuguesas;
-a existência de fados corridos no cancioneiro coimbrão, fonte apta à irrupção de exercícios comparativos com a identidade da CC;
-a localização geográfica de múltiplos fados coreográficos na Beira Litoral, fonte que veio abrir luzes sobre a questão das origens;
-a impropriedade da expressão “Fado de Coimbra”;
-a relativização da teoria ortodoxa e monogenista que se baseava no postulado da transição do Fado de Lisboa para o “chamado Fado de Coimbra”;
-a crescente sinalização de pistas literário-musicais antes da década de 1890;
-a constatação de que a CC é só um género musical diferenciado de um todo que é a Música Tradicional de Coimbra;
-a consciencialização de que não existe uma identidade monolítica e imutável na CC, sendo detectáveis diversas micro-identidades no seu interior;
-a base lexical vulgarmente utilizada afigura-se insuficiente, empobrecedora e imprópria;
-a descodificação da proposta origem medieval/trovadoresca como uma construção ideológica forjada no contexto de legimitação do Movimento da Trova;
-a hipótese aliciante de o estilo vocalizador coimbrão preencher, em Portugal, o lugar nunca verdadeiramente ocupado em termos de música dita erudita pelos lieder[22].

As diferenças que separam e distinguem hodiernamente a CC de outros géneros estéticos são de grau e de natureza, o que não a impede de interagir com outras manifestações literário-musicais.
Faz sentido debater a identidade da CC?
A resposta deverá ser positiva, em época de esfacelamente acelerado das culturas tradicionais, da globalização de gostos e comportamentos, da morte simbólica a que foi sujeita a CC, da invenção de artistas-simulacro, do fenómeno de desterritorialização, da frágil consciência patrimonial observada nas pesquisas de campo.
Perante o “choque civilizacional” (Samuel Huntington), o estudo e prática da CC assumem renovada importancia. A identidade da CC é uma importante componente da história local (imprensa, poesia, música, cordofones, partituras, iconografia, discos, toponímia, memória social, objectos de museu), daí decorrendo mais valias e funções diversificadas.
A CC possibilita o acesso à fruição cultural, o reforço da identidade coimbrã, a emergência de traços de genialidade criadora, a valorização dos textos poéticos cantáveis, a singularização de vivências, o intercâmbio entre gerações, a ocupação de tempos livres, a animação cultural, o prazer da música, o gosto e o gozo de cantar, a descoberta e afirmação de valores individuais, o mundo subjectivo das emoções.
Uma das preocupações essenciais, subjacentes ao debate sobre a identidade consiste na necessidade de delimitar por via da prática investigativa as linhas de força do próprio fenómeno. Trata-se de um trabalho exaustivo e árduo, porquanto ainda não realizado, onde fenecem a conceptualização, as metodologias, as boas hipóteses, a teoria geral.
Constitui hipótese aliciante, sem enjeitar outras, sondar sistematicamente as micro-identidades da CC. Servem de exemplo, independentemente do grau de aprofundamento atingido, prospecções efectuadas por Afonso de Sousa (O canto e a guitarra na década de oiro da Academia de Coimbra, 1981), No rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma voz para a modernidade (1999), e de Armando de Carvalho Homem, A Guitarra de Coimbra em tempos de fim-de-tempo. Ca. 1965-ca. 1973, Separata de Anais, Volume V-VI, UAL, 2000-2001; idem, Jorge Tuna: para uma abordagem ternária de um Mestre da Guitarra de Coimbra, Separata da Revista Portuguesa de História, Tomo XXXVI, Volume II, Coimbra, FLUC, 2002-2003; ibidem, Que público para a Canção Coimbrã? Uma pergunta para o “tempo que não passa”, em Estudos de Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos, Volume 2, Porto, FLUP, 2005.
Os ensaios e monografias em questão privilegiam a abordagem conjuntural e diacrónica, delimitando cronologicamente as fronteiras de sensibilidades, produções, contributos grupais e individuais, conservantismos, rupturas, continuidades, gostos, representações mentais, ritmos de acesso aos estúdios de gravação, tipologia de temas criados, grau de receptividade pública grangeada pelos inéditos.
Face às primeiras sondagens efectuadas, e ainda sujeitas a mais latos aprofundamentos e correcções, julgo minimamente coerente propôr um plano de abordagem alicerçado em cesuras cronológicas decorrentes de possíveis micro-identidades.
Vejamos:

a) Proto-Canção de Coimbra (do último quartel do século XVIII ao fim da Guerra Civil)
b) O lôngevo Romantismo (da Revolução de 1820 a cerca de 1880, coincidindo com o período de emergência, legitimação e afirmação)
c) A Belle Époque e os “devaneios” Ultra-Românticos (de cerca de 1880 à decada de 1920)
d) O Modernismo Presencista (=Primeiro Modernismo da CC) e os resíduos do fazer tradicional (de cerca de 1920 a 1934, marcado pelo grupo de Artur Paredes e seus próximos colaboradores, pese embora com adesões de outros cultores)
e) Neo-Romantismo Decadentista (de meados dos anos 30 a cerca de 1951, marcado pela crise de cantores, escassa qualidade dos instrumentistas, fusão adocicada de elementos Ultra-Românticos com práticas Modernistas, tendência para a cançoneta, inculcação e reprodução da ideologia do Estado Novo, etc..)
f) Neo-Presencismo, maneirismos e renovações (de 1951 a 1960). Período fortemente marcado pelo protagonismo dos grupos liderados primeiro por António Brojo, depois por António Portugal/Machado Soares. Não obstante a verificada busca de qualidade e de selectividade impõe-se como prática dominante um maneirismo inspirado em Artur Paredes e Edmundo de Bettencourt. Por outro lado, a recusa ostensiva dos neo-romantismos configurava atitudes de rebeldia artística)
g) Movimento da Trova, Movimento da Balada, Novo Canto (Segundo Modernismo da CC), tradicionalismos crepusculares e evoluções na continuidade (de 1960 a cerca 1973). Período marcado por rupturas, tendências experimentalistas, exploração de novos campos semântico-musicais, da proposta da morte do “clássico” e da própria guitarra, crispados conflitos internos entre adeptos do tradicional e protagonistas do novo. Representa o último grande momento de irrupção da modernidade. Período também de conservantimos, resistências e propostas de evolução na continuidade. A delimitação ideológica do Movimento da Trova continua a levantar dificuldades, na medida em que gere mal os avatares da produção baladística, e atrai à sua esfera a produção torrencial de Luís Goes (figura singular e pouco enquadrável que de per si justifica um atalho para o Novo Canto)
h) Pós Modernismo, Transvanguardas e regresso do Tradicional (de 1978 aos nossos dias). Época de crise da modernidade, de regressos à identidade, reactivação de instituições, estudos, seminários, jornadas, debates, afirmação de jovens valores, regresso à ribalta de antigos cultores, conflitos de geração, consciencialização patrimonial[23].
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[1] O conceito de identidade é complexo. As interpretações essencialistas ignoraram frequentemente que as identidades resultam de processos de construção. Cf. José Madureira Pinto, “Considerações sobre a produção social da identidade”, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 32, Junho (de) 1991, págs 217-231.
[2] Cf. Tradições Musicais da Estremadura, Vila Verde, Tradisom, 2000, págs. 26-27.
[3] Estamos longe da “machadomania” que varreu as academias na década de 1980, quando se entoava “Viseu tem mais encanto”, “Vila Real tem mais encanto”, “Braga tem mais encanto”, “Paços de Brandão tem mais encanto”, “Ponta Delgada tem mais encanto”, não raro nas vozes de grupos conimbricenses expressamente contratados para o efeito, cada qual acertando a métrica à conveniência.
[4] Sendo de assinalar importantes mudanças: até à década de 1970 as casas de fados usavam habitualmente a tocata do fado. Cremos que por influência da oficina de Gilberto Grácio e de Carlos Paredes se passou a verificar uma crescente utilização da Guitarra de Coimbra na transição para a década de 1980. Fontes Rocha terá sido um dos primeiros executantes de Guitarra de Fado a transitar para a Guitarra de Coimbra, assertiva documentada numa fotografia de 1968 com Amália Rodrigues e Vinícius de Morais. Cf. Vítor Pavão dos Santos, “Amália. Uma biografia”, Lisboa, Contexto, 1987, pág. 76.
[5] Mais desenvolvimentos em António Manuel Nunes, “Da(s) memória(s) da Canção de Coimbra”, in Canção de Coimbra. Testemunhos vivos (antologia de textos), Coimbra, Edição da DGAA, 2002, págs. 25-26.
[6] O português padrão falado em Coimbra terá sofrido aperfeiçoamentos ao longo dos séculos. Em trabalhos de campo efectuados entre 1890 e a década de 1920, José Leite de Vasconcelos classificou o Concelho de Coimbra na categoria de “zona de transição” entre o litoral norte e o litoral sul. Em 1890, o ilustre etnólogo anotou a substituição do ditongo “ou” por “oi” (noute/noite; ouro/oiro) e deu-se conta de peculiarismos nas freguesias do Concelho, nomeadamente falares cantados e troca do “v” pelo “b”. Cf. José Leite de Vasconcelos, Opúsculos. Volume VI. Dialectologia (Parte II), Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985, págs. 312-314 e 430-433. Na Comédia sobre a divisa da Cidade de Coimbra (1527), Gil Vicente opinava que na cidade se falava mal. Cerca de um século mais tarde, Francisco Manuel de Melo, em A visita das fontes, 1657, defendia que em Coimbra se falava “mais elegantemente” que em outras partes do reino. Corrobora Francisco Manuel de Melo o sólido estudo de António de Oliveira “Estrutura social de Coimbra no século XVI”, Actas do Simpósio Internacional A sociedade e cultura de Coimbra no Renascimento, Coimbra, Epartur, 1982, pág. 59. Para Lindley Cintra, a fala de Coimbra pertence ao “dialecto Centro-Litoral” (mais desenvolvimentos, com mapas geo-linguísticos, em António Reis (direcção), Sabatina. Guia de Formação Escolar. Linguagem e Expressão Literária, Setúbal, Marina Editores, 1999, págs. 40-46.
[7] São comuns em cantores exógenos a conversão de “pedrinhas” em “pédrinhas”, “vermelho” em “vermeilho”, “tão” em “tã”, “são” em sã”, “abêlha” em “abalha” ou mesmo “abeilha” (pronúncia ditongada), “totalmente” em “totalmãete” (Rezende, Marco de Canavezes, São Pedro do Sul), a hiperbolização das sibilantes à moda da Beira Alta ou a pronúncia apical dos S (=X) e dos Z (=J ou G). Será nas vozes oriundas do Porto e concelhos confinantes que mais se notam tentativas para neutralizar a vigorosa pronúncia do Douro Litoral, acentuada nos registos invernais de um Napoleão Ferreira Amorim e explícita nos “érres” à inglesa de Adriano Correia de Oliveira. De notar em cantores provenientes do sul do Tejo, nomeadamente Alentejo (ex: António Batoque) a monotongação do “ei” em palavras como “chêro” (=cheiro), “perfêto” (=perfeito), “mêdu” (=medo), e o efeito paragoge nos finais de palavras (“cantári”, “amore”).
[8] Serenatas de cortejamento futricas, a CC nas Fogueiras de São João, a CC nas revistas populares de amadores, as serenatas fluviais em louvor da Rainha Santa Isabel. Valeria a pena investigar porque motivos o tão cantado xaile de Cachemira das tricanas não entrou no panteão dos emblemas da CC.
[9] Como que retoma das severas interdições “Dos que dão músicas de noite”, consagradas no Livro V, Título LXXXI, das “Ordenações Filipinas” de 1603.
[10] Sobre o conceito de “folclorização”, vide Salwa Castelo Branco e Jorge Branco, “Folclorização em Portugal. Uma perspectiva”, in Vozes do Povo. A folclorização em Portugal, Oeiras, Celta Editora, 2003, págs. 1-21.
[11] Precisamente quando os grupos folclóricos mais exigentes e credíveis da cidade de Coimbra negam com irrefutáveis argumentos a inclusão da CC de “capa e batina” no seio dos espectáculos e reconstituições folclóricas. Quando em 1978 a Câmara Municipal de Coimbra promoveu a organização do “Seminário sobre a Etnologia e Folclore de Coimbra e seu Termo”, na sessão de 7 de Janeiro de 1978, o guitarrista Pinho Brojo foi convidado a palestrar sobre “O Fado de Coimbra. Sua presença no folclore coimbrão”. A 6ª proposta formulada à CMC pelos congressistas, entre os quais, Pinho Brojo, Tomás Ribas, Francisco Faria e o folclorista Augusto Gomes dos Santos, sugeria “Que seja promovido o Seminário Sobre o Fado de Coimbra, se possível ainda no primeiro trimestre do corrente ano”. Cf. “Seminário sobre Etnologia e o Folclore de Coimbra e o seu Termo”, in Diário de Coimbra, sábado, 7/01/1978, pág. 5; idem, “Seminário sobre a Etnologia e Folclore de Coimbra e seu Termo”, in Diário de Coimbra, 2ª feira, 9/01/1978, págs. 1 e 9. Paradoxalmente, o discurso de reabilitação da CC, produzido em 1978 pelas elites, brotou da errónea convicção de que se tratava de um ramo do “folclore” coimbrão. Ignorância, oportunismo, ingenuidade?
[12] José Amado Mendes, “A identidade portuguesa. Perspectiva histórica”, in A Identidade Portuguesa, Coimbra, Faculdade de Letras, 1999, págs. 11-13.
[13] Contrariamente à voz corrente, entendo que a CC não pode ser lida como um Fado de Lisboa interpretado em Coimbra. Não se trata de Fado reproduzido na emigração, como sucede por exemplo, com os praticantes de Tango em Paris ou com os praticantes de Jazz em Portugal.
[14] Podendo acontecer, no pior dos casos, que a adaptação se revele tão pouco convidativa que os cultores das gerações seguintes pura simplesmente “rejeitam” a proposta. Veja-se o caso de “Cantares do Minho”, tentativa gravada em 1960 por Lacerda e Megre/António Portugal.
[15] Por exemplo José Bruno Tavares Carreiro, “Uma véspera de feriado”, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1929, relativa à récita do 5º Ano Jurídico de 1904, apresenta fotos de pelo menos três travestis.
[16] Na falta de argumentos mais rigorosos, dizia-nos em Agosto de 1989 Eduardo Tavares de Melo: “o Menano e o Junot pareciam mulheres a cantar”.
[17] António Monteiro, sapateiro, boémio, amigo de comes e bebes, autor de partidas que deram brado, habitou num prédio junto do Museu Machado de Castro. Nasceu na freguesia da Sé Nova em 1903 e faleceu em 5 de Janeiro de 1954. Ficou célebre a resposta escrita a uma convocatória do Bispo diocesano, que afixou na ombreira da sapataria. Diz-se que isto aconteceu numa altura em que a imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima passou em Coimbra. Em “desafronta”, o Calmeirão disfarçou-se de Rainha Santa e passeou-se provocatoriamente com um Santo António debaixo do braço.
[18] Na moda “A Bonequinha” que ainda hoje se dança e canta nas Fogueiras da Alta pelo São João. Outras havia que também se prestavam a brejeirices por parte dos cantores e mandadores, a começar pelo “Manuel Ceguinho” (O Manuel Ceguinho/Foi aos caranguejos/Para dar às moças/Que tinham desejos; O Manuel Ceguinho/Foi aos camarões/Para dar às moças/Que tinham sezões).
[19] J. Seigel, Bohemien Paris. Culture, politics and the boundaries of bourgeois life (1830-1930), Nova Iorque, Elizabeth Sifton Books, 1986; Michel Perrot, “À margem: celibatários e solitários”, in História da Vida Privada. Da Revolução Francesa à Grande Guerra, Tomo 4, Porto, Edições Afrontamento, 1990, pág. 294.
[20] Caso para perguntar a propósito desses falsos rústicos, “Fado do Buçaco” só porque consta do título da composição? Que astutos artifícios encerram os excessos de músicas e quadras rotuladas de “popular” durante o Estado Novo? A resposta é óbvia, infelizmente para os autores lesados: as peças de autor são disfarçadas de “popular” justamente para conferir à CC uma dimensão de “folcore urbano”.
[21] Estranhamente, quando questionada pelo biógrafo, Amália entra em tergiversações: “A minha estreia no cinema foi nas Capas Negras (1947) mas nunca vi o filme. Vi algumas cenas que ia fazendo e não gostava nada. Por isso, quando foi a estreia, não quis ir. Fez aquele sucesso todo, dizem que bateu todos os recordes de bilheteira até aí, mas nunca me apeteceu ver”. Cf. Vítor Pavão dos Santos, “Amália. Uma Biografia”, Lisboa, Contexto, 1987, pág. 81. O filme conheceu reedição em cassete vídeo no ano de 1993, ainda antes da artista falecer.
[22] Quem o afirma é Vera Lúcia Vouga, Na Galáxia Sonora: sobre o Fado de Coimbra, Porto, 1991, pág. 60.
[23] Tentativa de periodização para as décadas de 1940 até 1970 em António Manuel Nunes, “Da(s) memória(s) da Canção de Coimbra”, in Canção de Coimbra. Testemunhos vivos, Coimbra, Edição da DGAAC, 2002, págs. 9-69.

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