sábado, setembro 17, 2005

O Fado propriamente dito e o “chamado Fado de Coimbra”

Por Afonso de Sousa(*)

Hesitei se devia ou não carrear a este Seminário o meu depoimento.
Está em equação um tema melódico, musical, e eu ignoro uma nota de música.
Mas uma voz interior aponta-me uma absolvição na medida em que outros, olhando como leigos para uma pauta, nem por isso regateiam a sua achega e, sobretudo, por não ter precisado de solfejo para me ter incorporado em manifestações musicais, na minha passagem pela Academia de Coimbra.
Aliás, o tema não é erudito, propenso mais à intuição do que sujeito a regras técnicas, científicas[1]. O Fado, seja o “Fado-Fado”, seja o “Fado-Canção”, como tema essencialmente popular que é, nunca (que eu saiba) mereceu um estudo específico, à semelhança dos dispensados às clássicas produções melódicas – sinfonias, sonatas, óperas, lieds, etc..[2]
Daí, o não ter ainda assentado numa definição de “Fado propriamente dito” ou das suas derivantes – fado canção, fado balada, fado serenata, fado nocturno, fado corrido - , modalidades que encontro apontadas por Frederico de Freitas[3].
E dado o seu restrito valor no aspecto da composição musical (fale-nos ele, muito embora, ao coração e ao sentimento, naquela receptividade para o povo lusitano, geralmente contemplativo e saudosista, está fatalmente predisposto) poucos curiosos ou estudiosos desceram – ou antes, subiram – às locubrações despertadas por esta popular composiçãozinha[4]. Citaremos, entretanto, Teófilo Braga, Armando Leça, Ribeiro Fortes[5], Alberto Pimentel, este autor dum ensaio que não logrei obter.
Dentro destas limitações e à falta dum “paradigma-padrão” parece-me poder-se definir como fado: “Uma composição melódica, de estrutura musical breve; acessível à comum e normal receptividade, estilo popular, geralmente propensa à evocação, à nostalgia, à saudade ou ao queixume, mais aligeirada no sentimentalismo quando virada para a canção” - , esta enformada nas “baladas ou xácaras” de que a literatura medieval e nostalgia sertaneja revelam o balbuciar lírico ou folclórico.
É característica deste género musical (o fado) a adopção da redondilha maior, a quadra de sete sílabas, sendo de acentuar que, quando adaptada à ironia (cantar de maldizer dos nossos trovadores?), perde as suas características de “fado propriamente dito” salvo se a ironia atingir a sublimação do sarcástico, em que a dor se destila nas profundezas de uma acusação, porventura de ingratidão, de desprezo, de traição. Mas isso é atingível, creio, através da garra de um Camilo, de um Raul Brandão, quando poetas, ou do desespero de uma Florbela Espanca, se tivesse conseguido despartilhar-se do formalismo do soneto.
Estou, assim, já debruçado sobre a parte literária, isto é, sobre a “letra”, já que a letra constitui um elemento indispensável à personalização do “fado”, na medida em que a melodia (a linha ou espira musical do seu travejamento), por um lado, e a parte discursiva (a oral), por outro são nele indissociáveis.
“Fado”, olhado apenas como mera composição musical (sem adaptação a um tema literário) não será caso virgem, é certo, mas, todavia, quase esporádico. Ocorre-me, quando muito um Rey Colaço, um Rui Coelho, talvez um Júlio Silva, compondo fados sem o condicionalismo duma letra.
E é precisamente na influência da letra, na constatação entre esta e a parte melódica, que se afigura poder ensaiar-se ou detectar-se uma distinção entre o “fado propriamente dito” (que para mim é o fado lisboeta), e o “chamado” fado de Coimbra (já justificarei porque não digo somente “Fado de Coimbra”) ou, pelo menos captar um dos elementos (pois há outros), que conferem autonomia ao “fado de Lisboa” e conferem autonomia ao seu “irmão germano”, que é o da tradição coimbrã.
Tanto quanto a audição, tenha sido directa, ou seja diferida (este o caso da transmissão em discos, filmes, rádio, fitas magnéticas) me têm proporcionado apreciar; e quer no que concerne à fonte ambiental coimbrã (esta credenciada pela própria experiência pessoal na ligação ao meio universitário), creio ter motivação para ensaiar este esquema:
1º - O “fado lisboeta” (e não esqueçamos em grande parte surte dos “libretos” das revistas teatrais) é musicalmente estruturado para ser adaptado à letra, à cópia, que são preexistentes, sendo estas que vão inspirar e moldar a linha melódica.
Forçosamente que o sentido intencional e descritivo da letra vai arrancar do compositor musical a frase melódica adequada à acção e sentimento revelados nessa letra.
Se esta incorpora uma acção alegre, pois a melodia será alegre, ligeira, amável aos sentidos. E nasce a canção.
Ao contrário, se a letra se espraia numa acção de conflitos humanos (a ingratidão, o esquecimento, a traição, o desprezo) a melodia resulta sombria, carregada, tristonha, emoliente e corrosiva. E nasceu um fado.
2º - O “fado lisboeta”, na sua generalidade, navega nestas últimas situações, que o obrigam a descer mais profundamente às convulsões da alma humana. Ferindo, como efectivamente fere (muito para além do saudosismo), a tecla da catástrofe, da desgraça, do desespero que a letra condicionou, estrutura a sua tessitura musical num sentimentalismo convidativo à depressão, ao torpor – um cariz saudosista, sebastianista, fatalista.
Mas mesmo quando mais declamado do que entoado, mas interpretado por uma voz artisticamente eleita, predestinada (tê-lo-ia sido na garganta de uma Severa, de uma Cesária, perdidas na tradição), ou mais recentemente na de um João Maria dos Anjos, Carlos Ramos, Alfredo Marceneiro, Filipe Pinto, Carlos do Carmo, Ercília Costa, Maria Alice, Celeste e Amália Rodrigues, Maria Tereza de Noronha, etc.., o fado de Lisboa, dizia, quando verdadeiramente o é, faz vibrar e faz doer!
Talvez com razão (abstraindo da sua radicação no lundum brasileiro ou no saudosismo sertanejo) ela seja uma expressão medieval da nossa saudade, curtida no nosso destino atlântico ou oriental, ante a partida e a expectativa do regresso das naus catrinetas da nossa gesta marítima!
Debrucei-me um pouco sobre estas características do “fado lisboeta” precisamente para melhor poder estabelecer uma linha de diferenciação com o “chamado fado coimbrão”, uma vez que é sob esta rubrica que se anuncia este seminário, ficando em melhores condições de justificar o cuidado que tive em não utilizar a designação de “Fado de Coimbra”, antepondo ao título, cautelosa e restritivamente, o classificativo de “o chamado” – o “Chamado Fado de Coimbra”.
Porque, afinal, haverá o “Fado de Coimbra”?
Não é de agora que se me antepõe esta dúvida[6].
Num apontamento marginal de um livrito meu Do Choupal até à Lapa (quando a propósito da revelada tendência de Luís Goes para a trova, balada ou canção, afirmei não hesitar tê-lo classificado como um precursor de novas toadas, se contemporâneo de Bettencourt), já então escrevi:
E se não inculco este género de antípoda do chamado fado de Coimbra, é porque verdadeiramente em Coimbra não houve fado, mas tão somente “canção”, por vezes de reconhecida sentimentalidade, é certo, mas nunca enformada em temas trágicos ou fatalistas, tão específicos daquela efectivamente depressiva composição, em que Lisboa se louva, e a minha sensibilidade também não enjeita (final de citação)[7].
Não enjeita, mas não confunde – direi agora – ou seja numa altura em que já estabelecidas as linhas definidoras daquela toada alfacinha vou procurar as que definem a congénere toada coimbrã, para concluir por uma ausência de coincidência entre ambas, - como tentarei demonstrar.
Vejamos:
Ao contrário do que sucede com este género de entoação lisboeta – e já atrás o esbocei – os compositores de Coimbra constroem as suas composições abstractamente[8] (música, pela música), isto é, valem-se de uma fonte instintivamente criadora, dum fogo interior espontâneo, sem disporem ainda de um tema literário para ser musicado, seja a tradicional quadra, seja outro poema (seja o soneto, em que se revelou mestre D. José Pais de Almeida e Silva, infelizmente sem continuadores; excepção ainda para as reconhecidas Carta d’Aldeia e Carta de Longe, realçadas na voz de oiro de António Menano).
Não é curial, nem didáctica, a invocação do próprio testemunho. Relevem-se aqui, pois a citação: duas canções que tive a honra de ver gravadas em discos por Almeida d’Eça, António Bernardino, Armando Goes e Luís Goes – Desalento e Asas Brancas – compu-las quando não tinha inventado a letra, pelo que julgo da mesma forma terem procedido outros. Por isso e por outros motivos, que adiante aflorarei[9].
Enfim... libertos desse condicionalismo, tantas vezes prejudicial à espontaneidade criacional – e na espontaneidade é que se revela a garra, o talento ou o génio – as composições coimbrãs resultam mais leves, menos arrastadas, consequentemente mais acessíveis e perduráveis.
Na medida em que não foram vazadas numa forma, amoldam-se e adaptam-se facilmente a esta ou àquela expressão literária, sejam embora divergentes os estilos ou os agrupamentos dessas diferenciadas letras[10].
Não assim, é forçoso repetir, no ambiente lisboeta. Aí o artista musical trabalha vinculado a um tema. Amolda o seu poder criativo à intenção desse tema. Ora, neste meio alfacinha, de feição fadista, já sabemos o cariz dos temas literários versados – o apelo à comoção, ao sentimento, à lágrima. Desta forma o arranjo musical reflecte na entoação o frio tristonho, emocional, doentio – um rosário de queixumes, um leque de acusações, de revoltas – por ciúmes, por traições, por esquecimentos, etc., sempre permeáveis à solidariedade ou à comiseração!
Estamos, pois, nitidamente perante o castiço “fado lisboeta”, de manifesta inconfundibilidade, seja quais forem os quadrantes ou as latitudes em que se evole[11].
E esse – e só esse – é que assume o carácter do “fado”. Qualquer outra entoação semelhante, mas destituída das características que alinhei, nunca será “Fado” – ou, pelo menos, nunca assumirá o aspecto estrutural do autêntico, do genuíno “fado”.
Como “autêntico, como genuíno fado” está bem distanciado nas tradicionais produções musicais congéneres coimbrãs, mas a que, por erro e visão, se usa chamar “fado”, “fado de Coimbra”, quando a estas melhor caberá a verdadeira designação de “canção”, a “canção de Coimbra” ou mesmo (por condescendência a uma tradicional nomenclatura, arreigada no tempo), “Fado Canção de Coimbra”[12].
E que gravitam na órbita da “canção”, mais e mais nos convenceremos se ponderarmos que tais composições (as canções) se revestem de carácter receptivo e versátil, que precisamente encontramos no “chamado Fado de Coimbra” e não encontramos no Fado alfacinha.
Receptividade, sim, na medida em que a canção está aberta a uma gama de adesões literárias, muitas vezes não coincidentes entre si, quer na acção, quer na intenção, no argumento, portanto. Cabem na mesma melodia um tema de saudade, um tema de constância, um tema de desilusão, sem que qualquer deles desvirtue o equilíbrio ou o esplendor do invólucro musical.
Receptividade e versatilidade: o Dr. António Menano, na sua fecundidade de intérprete, utilizou letras que outros cantores substituiram, sem que a substituição fizesse oscilar o sabor da melodia, precisamente pelo condão da receptividade e versatilidade que constituem apanágio da canção ou balada coimbrã e que, insisto, considero suas características fundamentais[13].
No que particularmente respeita à versatilidade, esta vai até ao ponto de permitir, sem quebra de valor original, que as estrofes de que se componham (geralmente duas quadras) não estejam relacionadas entre si, abrangendo assuntos desconexos e díspares bem ao contrário das toadas lisboetas em que as estrofes se completam em perfeita ligação, isto é, uma acção movimentada em sequência, uma intenção proclamada em objectividade: princípio, meio e fim[14]. Tal o fado de Lisboa e não assim o “chamado fado de Coimbra”, o qual, repare-se, vive de sentimentos e não de acção. Fica pairando no ar como um fluído, com um perfume, como um apelo ao irreal, em que a linha musical sobreleva a contenção de conflitos humanos, pois que, se agentes humanos se invocam (estou dentro do “chamado fado de Coimbra”, claro), sê-lo-ão mais em espírito de que como pessoas físicas.
Poderia ainda alinhar entre os seus atributos um evidenciado aspecto contemplativo, na medida em que convida a adivinhar estados de alma e antever, mas fugitivamente, um cenário mais espiritual do que geográfico, para nele contracenarem, não criaturas mas sentimentos.
Longe dum fatalismo telúrico, a canção ou “fado-canção de Coimbra” aponta-nos uma ou outra vez, um palco terreno, não para o povoar de dramas ou tragédias (tanto do agrado lisboeta) mas propositada e idealmente concebido para mais forte resultar a emotividade interior, mais sugestionável nesse enquadramento.
Recordemos:

Igreja de Santa Cruz
Feita de pedra morena
(a predisposição geográfica)

Dentro de ti vão rezar
Dois olhos que me dão pena
(o enquadramento anímico)

Do Choupal até à Lapa
Foi Coimbra os meus amores
A sombra da minha capa
Deu no chão, abriu em flores.
(a mesma coordenação)

Ou ainda:

Eu ouvi de Santa Clara,
Gemidos de alguém que chora!
(o enquadramento espacial)

(Agora a parte espiritual):
Era a Rainha pedindo
Por mim a Nossa Senhora.

Até a própria canção de pura raiz coimbrã, que a voz privilegiada, original e intelectual de Edmundo de Bettencourt proclamou urbi et orbi, como uma saudação e entrega davidosa do burgo académico – a canção Menina e Moça, é tanto mais repousante e acessível ao nosso relicário emotivo, quanto é certo firmar-se mais num apelo evocativo (o dramazinho concebido por Bernardim)) do que um deslumbramento geográfico – o burgo do Mondego - , muito embora este, pela fortuna, seja da geral predilecção: nossa, porque em Coimbra deambulou a nossa mocidade; de outros, estranhos e distantes, porque a mensagem das nossas vozes ou dos acordes das nossas guitarras, lha fizeram vislumbrar como lendária e irreal Colina Sagrada.

Com todas estas características (receptividade, adaptabilidade, versatilidade, poder contemplativo, - portanto, abertas à acessibilidade e pronta adesão dos apreciadores – e quem o não é neste Portugal? – estas composições têm que forçosamente primar pela leveza da sua estrutura melódica, o que significa nunca mergulharem na densidade ou estertor da frase musical arrastada, reticente, soluçante, que constitui atributo específico do autêntico fado, que para mim é, como já disse, o lisboeta[15].
Ora a leveza, o pairar nas alturas – e creio estar a atingir o ponto terminal da minha humilde tese - , constitui outro elemento fundamental e irreversível duma canção.
Pode esta aferir-se pelo diapasão do sentimento, da tristeza. Mas nunca é tristonha. Será contemplativa, mas não narcótica. Poderá embalar, mas jamais corrosiva!
Insisto: o “fado” predispõe à melancolia. Faz doer. Não assim a canção, muito menos a canção coimbrã, ou de feição coimbrã.
Mesmo aquelas que se vêem rotuladas de “fados” (fado disto, fado daquilo) são na generalidade vazadas em tons maiores. (Já Armando Leça frisava que os tons menores são os adoptados pelos fadistas lisboetas).
Ora os tons maiores são os que com predominância matrizam as composições coimbrãs, de que estamos tratando – as tais canções rotuladas de “fados”.
Exemplos? Aí vão, citados pelo 1º verso da respectiva quadra:

Nossa Senhora da Graça
Igreja de Santa Cruz
Quem me dera o Senhor fora
Passarinho da Ribeira
O Choupal anda, coitado
Saudades, não as merece
Maria tu és na terra
Ao morrer os olhos dizem
Dentro de ti, ó Leiria
Ninguém conhece no rosto
Eu ouvi de Santa Clara, etc., etc..

O próprio Fado Hilário é predominantemente estruturado em tom maior. E embora a sua 3ª parte (que não é da autoria de Hilário, mas um feliz acrescentamento de Edmundo de Bettencourt e Artur Paredes), seja em tom menor, é toda desenvolta e impregnada de vivacidade – o que quadra mais ao pendor da canção do que do fado[16]. E essa perfeita adaptação coonesta mais e mais a minha afirmação de que só a receptividade (abertura a soluções sem quebra do sentido estrutural), ínsita na canção, aproxima esta ou identifica até com o “chamado fado de Coimbra” – e só assim o Fado Hilário aceitou, sem desvirtuamento, um prolongamento perfeitamente adaptável e como que sua parte integrante originária.
Enfim:

Fado de Coimbra propriamente dito, não existe, nem nunca existiu no foro musical coimbrão – sem com isto querer minimizar o valor, o encanto, a sedução das criações desse género que aqui mergulham suas raízes ou que aqui têm o seu foco de difusão, já que não receiam confronto com as congéneres do meio fadista da Capital, porventura até superando-as, lançadas que são pelo génio académico para a eternidade, numa longevidade e resistência emotivas, em que as não acompanharão as suas pares alfacinhas!
Chamemos-lhes, não “fados de Coimbra”, mas sim “canções de Coimbra”, “baladas de Coimbra”. E, se quiserem, (uma vez que a designação tradicional de “Fado” está tão arreigada e vem de longe – e só por isso) chamemos-lhe “Fado-Canção”, “Fado-Canção de Coimbra”, na certeza de que, assim, seremos mais coerentes com o seu estilo, com a sua estrutura, com a nobreza e perfume da sua intenção.
E, sobretudo, não confundir esta deliciosa toada coimbrã (canção, ou fado-canção) com outras composições musicais de intenção social, política ou revolucionária, criadas ou entoadas por artistas ligados à Academia de Coimbra, muito embora prestigiosamente credenciadas pelos talentos de um Zeca Afonso ou de um Adriano Correia de Oliveira e que, por aquelas razões, se mostraram deslocadas na última sessão televisiva[17] de um tema igual ao deste Seminário “Fado de Coimbra” (e era de Fado de Coimbra que se tratava) – em que outros erros ou omissões haveria a assinalar - , salvando-se sempre, todavia, a louvável intenção de salvaguardar e perpetuar este nosso precioso património espiritual.
O “chamado fado de Coimbra” é regional. Aquelas canções (brilhantes que são, não há dúvidas) são geográfica e intencionalmente nacionais, pois nem visam Coimbra, nem sugestionam Coimbra, dirigindo-se a movimentos sociais, sem localização definida[18].
E nos repertórios desses dois artistas, que o são, havia outras peças também válidas, essas, sim, adequadas ao tema em equação[19].
E foi pena! Porque se teria trazido a esse Programa uma preciosa achega à valorização da “Canção” ou do “Fado-Canção de Coimbra”, mais a mais estando esse programa já desfalcado na ausência de aconselháveis ou indispensáveis colaborações[20].

Regressemos, porém, à minha proposição, cujo termo se avizinha.
Expus o meu ponto de vista pessoal, trazido à barra pela meditação e experiência, num contacto duradoiro com um outro núcleo artístico-académico, a quem dediquei um modesto trabalho que intitulei “Breve actividade de uma geração artística em colaboração com o Orfeon Académico de Coimbra”[21].
Admito estar incorrendo num erro de visão e respeitarei os motiváveis reparos. Não pretendo fazer escola, nem arregimentar adeptos e não me considerarei intelectualmente inferiorizado, nem darei por mal empregado o esforço dispensado neste ensaiozinho, quando convencido da minha errónea interpretação conferida ao tema proposto, ensaio que reduzido à expressão mais simples (o que acabei de ler constitui um resumo) chegou ainda para violentar a paciência dos Exmos. assistentes.
Aos discordantes, todavia, convido-os a alinhar comigo neste teste:
Escolha-se um fado de Lisboa, enformado que seja na menos tradicional das toadas.
Entoe-se, de seguida, um dos “chamados fados de Coimbra”.
Ninguém errará na devida classificação.
Aquela é lisboeta, este é de Coimbra.
A confusão seria possível se em Coimbra as composições musicais que estamos analisando se aferissem pelos moldes, pelo tónus do fado autêntico, que é oriundo da capital alfacinha.
E não se confunde, porquê? – Precisamente porque a nossa toada melódica, o nosso fluido musical, se ajusta às, e se proclama nas estruturas vertebrais duma canção, antagónica da “fado fadista”, surto na placenta bairrista da Madragoa, da Mouraria, do Bairro Alto, de Alfama!
Nem foi gratuitamente que Alberto Pimentel, debruçado sobre o Fado o incorporou no título do seu ensaio A triste canção do sul, assim o arredando das paragens do Mondego, que pertencem ao centro (e não ao sul) do nosso país[22].
Para terminar:
Dos vários subtítulos do meu inacabado ensaio, de que extraí este resumo, fazem parte estes outros: Os cultivadores do chamado Fado de Coimbra; Os cultivadores da feição instrumental coimbrã (guitarra, viola); O soneto como módulo ideal de composições vocalistas breves (um lied nacional).
O último, simultaneamente aflitivo e esperançoso, intitular-se-á: Valorização duma tradição em crepúsculo.
Com os olhos postos nesta revalorização é que todos nos louvamos, entre outras, em iniciativas como a do programa da Regional de Coimbra, Do Coupal até à Lapa; em um outro, a que fiz alusão, e a que a TV também deu cobertura, O Fado de Coimbra; e agora na arrancada do Seminário a que estamos assistindo, sendo de felicitar, como felicitamos, todas as boas vontades que terçam armas por esta cruzada de reabilitação, numa hora em que cada vez mais se sente a perplexidade de José Régio, quando, debruçado o seu estro sobre o Fado de Coimbra, já amarguradamente deplorava a rarefacção artística que agora se pretende colmatar, através deste magoado acento, com que termina a minha intervenção:

Ai choro com que o Paredes,
Vibrando os dedos em garra,
Despedaçava a guitarra,
Punha os bordões a estalar.

Gritos de cristal e oiro
Que o Bettencourt alto erguia
Que é da roda que algum dia
Vos sabia acompanhar?

Ainda é tempo! De alguma coisa que ainda resta do tanto que se perdeu, ajudemos a salvar esta relíquia prestigiosa do Património Cultural da Academia de Coimbra.

Coimbra, Maio de 1978
(Afonso de Sousa)

(*)Pelo Dr. Afonso de Sousa, in Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, nº 13, Coimbra, Julho de 1978, pp. 19-31. Comunicação apresentada no I Seminário do Fado de Coimbra, em 20 de Maio de 1978. Advogado, poeta, publicista, guitarrista, nasceu em Maceira, Concelho de Leiria, a 24 de Junho de 1906, filho de José de Sousa e de Rosália Coelho de Sousa. Faleceu em Leiria, no dia 18 de Dezembro de 1993. Frequentou o Liceu Rodrigues Lobo entre 1915 e 1923, onde se iniciou nas serenatas, violão, guitarra, flauta e concertina. Foi aluno da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra entre 1923 e 1930. Acompanhou os mais importantes cantores e instrumentistas conimbricenses da década de 1920, tendo participado em vários registos fonográficos com Artur Paredes, Armando Goes e Artur Almeida d’Eça. Figura incontornável da 2ª guitarra de Coimbra e autor de árias cantáveis e de temas instrumentais. Exerceu advocacia em Leiria. Culto e intelectual, percorreu inúmeros países e museus internacionais. Republicano, oposicionista ao regime de Salazar, apoiou as candidaturas presidenciais de Norton de Matos e Humberto Delgado.

O texto original não comportava notas de fim de página. Visando enriquecer este documento marcante, António Manuel Nunes tomou a seu cargo a introdução de anotações e comentários e de uma pequena biografia do autor.

[1] Afonso de Sousa não distingue, com o devido rigor, a Canção de Coimbra enquanto objecto de investigação, da Canção de Coimbra enquanto género estético praticado pelos seus intérpretes e cultores. Os discursos não são coincidentes, isto é, os relatos pessoalizados e autobiográficos dos cultores não são a História da Canção de Coimbra.
[2] Decorridos mais de vinte anos sobre o Seminário de 1978, a denúncia aflorada pelo autor continuava de pé.
[3] Frederico de Freitas, “Fado”, in Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, Volume 8, Lisboa, Verbo, 1969. O musicólogo Frederico de Freitas limitava-se a corroborar passivamente a teoria monogenista, segundo a qual o chamado Fado de Coimbra derivaria, por morfogénese, do Fado de Lisboa. Freitas nunca investigou as origens da Canção de Coimbra, pelo que o seu artigo não reconhece à Canção de Coimbra qualquer autonomia conceptual, identitária ou cronólógica. Daí que a comunicação enciclopédica de Frederico de Freitas nos mereça as maiores reservas.
[4] Seria mais correcto escrever popularizada ou mesmo tradicionalizada expressão estética. O vocábulo “popular” tem sido lido como sinónimo de “folclore” e “origem popular”. Se a Canção de Coimbra não despertou a atenção mais demorada dos musicólogos foi porque estes a entenderam como expressão musical “menor”. A “menoridade” das árias e instrumentais da Canção de Coimbra, presente nos dicionaristas e enciclopedistas do século XX traduz, antes de mais, ignorância e preconceito. Na Canção de Coimbra tanto convergem composições pouco elaboradas como temas eruditos. Em alguns, forjados por executantes musicalmente iletrados, não é possível falar de menoridade.
[5] José Maciel Ribeiro Fortes, antigo estudante de Coimbra, formado em 1917. Publicou O fado. Ensaios sobre um problema etnográfico-folclórico, Porto, Companhia Portuguesa Editora, 1926.
[6] A “dúvida” veio a lume em 1952, quando o jornalista João Falcato publicou uma crónica intitulada O Fado de Coimbra é uma balada (jornal Linhas de Elvas, de 25 de Outubro de 1952). Nesta crónica, Edmundo de Bettencourt declarava que não se considerava um fadista mas antes um intérprete de canções. Induzido por Bettencourt, João Falcato avançava o termo Canção de Coimbra. Lida a crónica, Afonso de Sousa debateu longamente a questão com Edmundo Bettencourt, via telefone. Também debateu o problema com Artur Paredes, guitarrista e compositor que não se considerava nem fadista, nem praticante do Fado.
[7] Anotação datada de 1973, na sequência dos LPs de 1967, 1969 e 1972, oferecidos por Luís Goes a Afonso de Sousa. Republicação em Do Choupal até à Lapa. Recordações de um antigo estudante de Coimbra, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1988, pág. 35.
[8] Existindo embora excepções, como os sonetos musicados por D. José Pais de Almeida e Silva, e algumas baladas de despedida de quintanistas.
[9] Alusão não inocente. Jurista, Afonso de Sousa conhecia bem os direitos de autor que lhe assistiam.
[10] A primazia da letra sobre a composição da melodia não deve ser entendida como um cânone incontornável no caso lisboeta. Anteriormente a Afonso de Sousa, autores como Alberto Pimentel procuraram sustentar as diferenças por via dos padrões poéticos empregues, identificando o Fado de Lisboa com o esquema Mote/Glosa em décimas, e a Canção de Coimbra com a redondilha maior. A relativa rigidez de muitos fados ao estilo de Lisboa resulta não tanto da letra adoptada mas sim do emprego de três padrões rítmicos, melódicos e harmónicos em que se moldam o Fado Corrido (modo maior), o Fado Mouraria (modo maior) e o Fado Menor (modo menor), padrões enformadores do Fado Castiço. Porém, existem múltiplos fados que não seguem a padronização apontada. Relativamente à Canção de Coimbra, os subgéneros existentes não obedecem a padrões fixos, nem mesmo os temas ditos “clássicos”.
[11] Salvo raras excepções, de que é exemplo o Fado Sepúlveda, os fados de Lisboa transladados para Coimbra, alguns dos quais registados em discos por Manassés de Lacerda, António Menano, Armando Goes, Alexandre Resende, Ricardo Borges de Sousa, nunca perderem o cunho de origem.
[12] Em abono do rigor terminológico, não se afigura operante estabelecer uma equivalência entre Canção de Coimbra e Fado-Canção. Canção de Coimbra identifica e configura o género semântico-musical no seu todo. Fado-Canção designa e identifica, em situações pontualizadas, certos espécimes com coplas e refrão (ex: À Meia Noite ao Luar, Samaritana).
[13] Versatilidade e receptividade são apanágio de géneros musicais diferenciados, de que podemos citar o Tango, o Fado, a Canção de Coimbra, e a música tradicional portuguesa em geral. O exemplo de António Menano não é dos mais conseguidos. António Menano alterou títulos, estropiou e modificou letras originais, não respeitou autorias.
[14] O emprego sistemático de quadras desconexas em Coimbra nem sempre resulta feliz. Pensemos no tema de Carlos Figueiredo, O Sol anda lá no céu, com uma primeira quadra extraída do cancioneiro popular e a 2ª tomada de empréstimo ao Fado das Penas (também popular, com música de Silva Ramos, gravado nos anos 20 por Almeida d’Eça).
[15] Versatilidade e receptividade, conforme se disse, não são apanágio exclusivo da Canção de Coimbra. O autor poderia ter capitalizado os seus conhecimentos de prática de guitarra e violão, para traçar com relativa segurança diferenças de afinações, timbres e dedilhações.
[16] Erro do autor do texto, pois só a adaptação guitarrística da linha melódica de Fado Hilário Moderno é que é da autoria de Artur Paredes.
[17] Refere-se a uma série de cinco programas produzidos na RTP/Porto, designada Coimbra Musical. Foram transmitidos entre Janeiro e 12 de Fevereiro de 1978.
[18] Afonso de Sousa aborda um assunto de extrema delicadeza, sobre o qual os participantes nos seminários não chegaram a entendimento possível. Os adeptos da corrente tradicionalista rejeitavam liminarmente o contributo trazido pelo Movimento da Trova, objectando que as trovas e baladas protagonizadas por Rui Pato, José Afonso, António Bernardino, António Portugal, Adriano, Luís Goes, e outros, não eram “verdadeiros fados”. Algumas das figuras mais destacadas do Movimento da Trova replicavam que “o fado clássico estava morto”, tendo-lhe sucedido as baladas e trovas de intervenção sócio-política. Afonso de Sousa vivera polémicas similares na década de 1920 (embora os participantes no Seminário de 1978 ignorassem tal facto), pelo que não comungava qualquer das posturas ideológicas em confronto. Negando a teoria da “morte simbólica” da Canção de Coimbra e denunciando as confusões lexicais em jogo, Afonso de Sousa aceitava a evolução sofrida pela Canção de Coimbra, pese embora alijada do neo-estatuto de canto de intervenção político-social.
[19] José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Carlos Paredes, foram alguns dos convidados que recusaram participar no Seminário. Adriano manteve-se coerente até ao fim (faleceu em 16/10/1982). José Afonso (falecido em 1987) gravou em 1981 o LP Fados de Coimbra e outras Canções, sendo notória a degradação vocal provocada pela doença. Em 27 de Maio de 1983 cantou e gravou ao vivo no Jardim da Sereia um EP, aquando da homenagem pública que lhe foi prestada. Carlos Paredes regressou à Coimbra da infância em registos de 1993 (Canção para Titi. Os inéditos), lançados no mercado em 2000 (CD EMI-Valentim de Carvalho, Lisboa, 2000, 724353117429).
[20] O autor aponta o dedo polidamente à sobrecarga de relatos que vinham a exaltar o valor dos artistas activos nas décadas de 1950 e 1960, e à clara confusão entre tempo da história e gestas pessoalizadas, com manifesto prejuízo de outros movimentos não devidamente estudados.
[21] Primeiramente publicado em Bodas de Diamante do Orfeon Académico de Coimbra (1880-1955), Coimbra, 1955. Reedição em Do Choupal até à Lapa, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1988, págs. 17-36.
[22] Alberto Pimentel, jornalista e romancista (Porto, 1849; Cascais, 1925). Publicou A triste canção do sul. Subsídios para a história do Fado, Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho Editor, 1904. O título desta obra revela bem a intensidade dos conflitos bairristas e xenófobos vividos pelas populações do Porto e de Lisboa. Para um bairrista portuense, o sul perfilha-se do Vouga para baixo, indistintamente. Afonso de Sousa, natural de Leiria, antigo estudante de Coimbra, precisa que o Centro do país não se inclui no sul.

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