terça-feira, julho 05, 2005

A propósito da candidatura da Canção de Coimbra
a Património da UNESCO


Jorge Cravo

Com a candidatura da Canção de Coimbra a Património da Humanidade pela UNESCO, novas perspectivas se abrem para que a Música Tradicional de Coimbra, na sua vertente popular e académica, seja equacionada como um bem cultural a necessitar de ser preservado e divulgado sem atropelos à sua raiz regional e local.

Sem querer cometer alguma inconfidência, importa desde já referir como esclarecimento, que em pouco mais de dois meses (entre Março e Maio de 2004), a Canção de Coimbra passou de candidata à "Proclamação de Obra-Prima do Património Oral e Imaterial da Humanidade" à de "Património Cultural Imaterial", e desta, à sua integração na candidatura da Universidade de Coimbra a "Património Mundial da UNESCO", num processo sem mácula alguma, longe de qualquer "ruído" nos orgãos de comunicação social, e sem que os pressupostos em que, primeiramente, se baseou a candidatura desta Canção fossem minimamente afectados. Bem pelo contrário, penso que a Canção de Coimbra só tem a ganhar se inserida numa candidatura mais ampla que envolva o Paço das Escolas e a zona da Alta circundante, não fazendo sentido duas candidaturas a decorrer em paralelo, oriundas da mesma cidade, quando a própria Canção encerra em si mesma um duplo filão (o popular e o académico), sendo por isso mesmo interpretada quer por estudantes, quer pela população em geral. De facto, existe uma fortíssima relação entre a Cidade, a Universidade e esta Canção. Por muito que alguns procurem esvaziar esta ligação, a própria comunidade académica e popular onde a Canção de Coimbra se insere, tendem a reforçar esta complementaridade. Ambas se reflectem na sua música e vivem esta Canção como seu património. Foi, pois, natural, a solução encontrada quanto ao introduzir a Canção de Coimbra no imaginário estudantil que acompanhará a candidatura do Paço das Escolas. Imaginário este preenchido pelas repúblicas, por festividades académicas, algumas praxes e costumes vários, num conjunto de manifestações tradicionais vivas incluídas num dos critérios da proposta de Candidatura da Universidade.

Ressalvemos todavia que, embora integrada na candidatura da Universidade de Coimbra a património da UNESCO, a Canção de Coimbra será sempre perspectivada como um bem cultural imaterial. Ideia reforçada pelo Magnífico Reitor, quando na sessão de assinatura do Protocolo entre a Universidade e a Autarquia, no passado dia 2 de Dezembro, afirmou, referindo-se à Canção de Coimbra, à praxe, cerimónias e trajes académicos, estar-se na presença de "um património intangível, associado à vida académica".

Mas, o que se entende por Património Imaterial? O que pretende a UNESCO? Qual o enquadramento possível da Canção de Coimbra, como bem cultural, nesta categoria, sem esquecer o grau de importância que a cidade quererá dar a tal atributo?

Após a adopção da Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural, em 1972, por parte desta Organização, alguns Estados-membros manifestaram o interesse em ver criado um instrumento de protecção do património imaterial. Assim, viria a ser adoptada, em 1989, a Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e do Folclore.

Posteriormente, em 1999, o Conselho Executivo da Organização decidiu criar uma distinção internacional intitulada "Proclamação das Obras-Primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade", para distinguir os exemplos mais notáveis de espaços culturais e formas de expressão popular e tradicional tais como as línguas, a literatura oral, a música, a dança, os jogos, a mitologia, rituais, costumes, artesanato, arquitectura e outras artes, bem como formas tradicionais de comunicação e informação.

O objectivo da Proclamação é encorajar os Governos, as Organizações Não Governamentais (ONG) e as comunidades locais a identificar, salvaguardar, revitalizar e promover o seu património oral e imaterial.

A Proclamação das Obras-Primas do Património Oral e Imaterial foi, pois, um dos dois projectos da UNESCO no domínio do património imaterial. O outro projecto consistiu na criação de uma Convenção Internacional para a salvaguarda do Património Imaterial, aprovada pela Conferência Geral na sua 32ª sessão, em 17 de Outubro de 2003.

No fundo, o que a UNESCO pretendeu nesta Convenção, foi reunir na mesma base jurídica, os fundamentos, a metodologia e o programa daquela Proclamação (1999) e da sua antiga Recomendação de 1989. Fundamentalmente o que se pretende é a inventariação das culturas tradicionais existentes no planeta, elaborar uma lista dos bens culturais intangíveis a preservar e salvaguardar as culturas-tradição que estejam em vias de desaparecimento.

Evidentemente que tal salvaguarda passa pelo financiamento de acções pensadas urgentes e indispensáveis à preservação do bem em questão. Financiamento que deve ser suportado por um fundo da UNESCO proveniente de comparticipações dos estados-membro, única e exclusivamente com estes objectivos.

Com a entrada em vigor desta Convenção – o que sucederá quando a mesma for ratificada por 30 países (e que se espera que o seja durante o corrente ano) –, será extinta a Proclamação das Obras-Primas do Património Oral e Imaterial, e os bens entretanto proclamados como tal serão integrados na futura Lista do Património Imaterial a preservar. Ou seja: desde Março de 2004 que já se sabia que de candidata a "obra-prima do património oral e imaterial", a Canção de Coimbra passaria a ser objecto de candidatura a "Património Cultural Imaterial".

A UNESCO define como património imaterial (= intangível), "tudo aquilo que engloba manifestações culturais tradicionalmente populares, saberes colectivos produzidos por uma certa comunidade e fundados sobre uma tradição, transmitidos oralmente, através dos gestos, modificado através dos tempos por um processo de recriação colectiva (por exemplo, a música, a dança, os rituais, as festividades (...), etc.". Ainda para esta organização internacional, o património imaterial engloba "os processos adquiridos pelos povos, assim como os saberes, as competências e a criatividade de que são herdeiros e que desenvolvem, os produtos que criam e os recursos, espaço e outras dimensões do quadro social e natural necessários à sua durabilidade; estes produtos inspiram às comunidades vivas um sentimento de continuidade por relação às gerações que as precederam e revestem-se de uma importância crucial para a identidade cultural, assim como para a salvaguarda da diversidade cultural e da criatividade humana." Ou seja, de uma forma mais simples, podemos afirmar que património imaterial tem a ver com tudo o que está longe daquilo que é fisicamente palpável (= tangível). Isto é: tudo o que não cabe no património arquitectónico, monumental, de construção, mas envolvendo todo o tipo de vivências humanas, representações mitológicas e simbólicas e produtos culturais provenientes da arte e engenho das comunidades que os produzem. Ora, como a UNESCO fala de uma qualquer manifestação cultural transmitida oralmente e possível de ser recriada, é evidente que a Canção de Coimbra – cuja transmissão ainda se faz longe de um suporte físico, mas sim, com base na oralidade – inscreve-se, perfeitamente, nesta definição; isto para além de continuamente recriada por ser uma expressão musical geracional, renovável todos os anos.

Acrescente-se que para além da Canção de Coimbra, constituem exemplos de património imaterial: as Festas da Rainha Santa Isabel, a Queima das Fitas, as Fogueiras do S. João, o artesanato, ou até mesmo aquilo que se designa de "comércio tradicional" (que estando em vias de extinção na Baixa, encontra, ainda, pelas ruas da Baixinha, um agradável espaço onde desenvolver o seu imaginário). Também o preservar a vivência quotidiana dos bairros mais tradicionais da cidade, como bairros históricos, é, igualmente, algo que contribui para a manutenção do património imaterial desta terra: Bairro Silva Pinto, Bairro Norton de Matos, ou a própria Alta (com as suas relações vivenciais entre estudantes e futricas tendo como espaços de eleição: as repúblicas, os cafés, as mercearias e as casas de pasto que ainda vão resistindo naquela zona).

Ora, o que se pretende com a Convenção da UNESCO para este tipo de património é o de sabermos acautelar as diferenças culturais que nos separam. E isto, hoje em dia, num mundo que teima em uniformizar-se em excesso (mesmo naquilo que é incomparável) – fruto de uma errada compreensão do que se deve entender por globalização – é muito difícil fazer chegar às pessoas com responsabilidades na afirmação cultural diversificada das comunidades. Todavia, num mundo em tempo de globalização, uma comunidade que possua auto-estima, necessita saber preservar as paisagens sócio-culturais e musicais que lhe transmitam e revelem uma identidade (a sua identidade), a sua marca, o seu traço próprio, de forma a alcançar uma individualidade e visibilidade à escala planetária. Numa Europa cada vez mais de menos estados e cada vez mais de regiões, há que saber acentuar, proteger e valorizar as várias culturas-tradição que sejam expressão patrimonial de um espaço urbano, de um lugar, de uma comunidade. Neste sentido, a afirmação de Coimbra como cidade moderna implica o respeito e a valorização dos fenómenos culturais constituintes do seu património histórico e artístico que lhe permitam a sua projecção extramuros, reforçando a sua identidade local e o seu horizonte cultural.

O processo de globalização aplicado a Coimbra obriga a que o seu espaço urbano seja depositário de todo um conjunto de manifestações que constituem aquilo a que se chama de cultura urbana, transformando a cidade numa expressão de cosmopolitismo, onde a diversidade cultural se afirme. Resulta daqui que o seu próprio património sofre uma vulnerabilidade tal que obriga a repensá-lo sob o ponto de vista da sua preservação, da sua valorização, da sua revitalização e difusão. Assim, seria estranho, num mundo de grande globalização, que a comunidade académica e popular, como agentes principais de divulgação, não reconhecessem a Canção de Coimbra como seu património; logo, como uma memória histórico-musical de que são herdeiras; e que não encarassem esta Canção como um objecto fundamental na afirmação da diversidade cultural de Coimbra face a outras culturas-tradição espalhadas pelo País. De facto, a Canção de Coimbra é uma referência para a cidade, e poderá revelar-se um instrumento capaz de reforçar a imagem de Coimbra no panorama global das restantes cidades, desde que se redimensione o trinómio Canção-Identidade-Cidade para afirmação da sua música. Por outro lado, se se perspectivar a Canção de Coimbra como uma herança cultural, é porque a legitimamos como memória musical (uma memória colectiva), e então, há que encará-la como uma expressão musical que vinda do passado, ganha o conceito de imaterialidade no tempo actual, porque acaba sempre por ser vista como representação de um passado que continua a preencher o imaginário actual da comunidade popular e académica onde se insere, o que permite a contemporaneidade de um imaginário humano e social que se traduz num "sentimento de identidade" por parte da(s) comunidade(s) que sustenta(m) toda essa representação do passado. A sua imaterialidade como valor da memória leva a que a pesquisa das suas origens seja um imperativo actual, por forma a entender-se a sua representação na contemporaneidade e o seu significado na construção de um novo imaginário. Assim, quantas mais formas tradicionais de divulgação da Canção de Coimbra se conseguirem recuperar, melhor será para se entender o imaginário comunitário passado e mais facilmente se saber projectar esta Canção no futuro. Neste sentido, é necessário darem-se passos firmes e bem sustentados na intangibilidade que se souber registar, sob pena de amanhã esta Canção ser perspectivada como um produto da World Music, e no dia seguinte, estar reduzida a uma noite na Sé Velha para uma Serenata que, por incrível que pareça, não merece – da parte dos nossos agentes da Indústria Cultural – uma simples transmissão televisiva em directo, de forma regular.

Não penso que ao pretender-se recuperar as formas tradicionais de representação da Canção de Coimbra que caíram em desuso ou que estão em vias de extinção, se esteja a criar uma situação artificial; antes pelo contrário, estar-se-á a reforçar o seu ritual e a produzir uma destradicionalização que recupere de um tempo passado e originário todo um imaginário que poderá ser útil à sobrevivência da identidade e reafirmação do Cantar Coimbrão. Ou seja: é a memória da Canção de Coimbra, como herança cultural, que produz um património que deverá ser classificado. E por que a identidade só existe face à diferença, a candidatura que se pretende desta Canção, como elemento identitário de uma cultura musical regional e local de um lugar elevada a um patamar universal de preservação e divulgação, só será viável se soubermos elaborar uma memória histórica descritiva que aponte – para além das diferenças musicais que a distinguem de outro qualquer género musical (desde o período medieval) e, em especial, do Fado de Lisboa (a partir do primeiro quartel do século XIX) – as características do imaginário onde sempre se difundiu e lhe ditam outro tipo de diferenças. Falar de uma identidade cultural em termos de Canção de Coimbra implica relacionar essa cultura musical com o próprio espaço urbano que a cidade representa e onde a sua comunidade popular e universitária se organizam. É importante saber definir e caracterizar as relações que desde sempre se estabeleceram entre ambas, o modo como a população e os estudantes sempre viveram a sua Canção, a sociabilidade interactiva que nelas se produziu através dos tempos, para entendermos qual o produto musical que temos necessidade em preservar e difundir. É que se não deitarmos mão a algumas especificidades que caracterizam e distinguem esta Canção, como cultura musical de um lugar, a candidatura não tem fundamento. Daí que o mais importante seja que todo o discurso da memória musical desta cultura-tradição que se recuperar seja bem aceite por ambas as comunidades que actualmente a interpretam. Assim espero.

Segundo a UNESCO, o bem cultural que qualquer Estado-membro tencione candidatar, deverá assentar nos seguintes critérios de selecção:

a . Valor excepcional como obra prima do génio criador humano;

b . Profundamente enraizado na tradição cultural ou na história cultural da comunidade;

c . Papel de relevo na afirmação da identidade cultural, importância como fonte de inspiração e troca intercultural e meio de aproximar povos e comunidades, e papel cultural e social contemporâneo na comunidade envolvida;

d . Excelência na aplicação dos conhecimentos e qualidades técnicas;

e . Singularidade da tradição cultural viva;

f . Risco de desaparecimento, quer devido à falta de meios de salvaguarda e protecção, quer devido ao processo de rápida mudança, ou à urbanização, ou à aculturação.

Ora, aplicar estes critérios de selecção à Canção de Coimbra, é saber sustentar objectivamente a sua candidatura. Assim:

1. Tem valor excepcional como obra prima do génio criador humano (alínea a), pois tendo esta Canção um duplo filão (popular e académico), é executada, no filão popular, pelo habitante urbano não-académico, que para além da sua profissão (seja comerciante, operário, trabalhador, funcionário público ou bancário, barbeiro ou sapateiro, etc), encontra tempo e disposição para desenvolver o seu talento musical sem ser um profissional da música ou tão pouco saber música; e no filão académico, é interpretada por estudantes e antigos estudantes, que longe de saberem música ou serem profissionais da música, continuam a dignificar - cada qual à sua maneira, ao seu estilo e ao seu ritmo - esta Canção, sem nunca abdicarem das suas actividades profissionais para as quais estudaram, tendo o privilégio de se dedicarem à Canção de Coimbra, da mesma maneira que outros cantaram no Orfeon, representaram teatro no TEUC ou no CITAC, jogaram rugby ou futebol na Académica. O que não deixa de ser surpreendente, e daí excepcional, o facto de pessoas sem formação musical específica saberem preservar e renovar este património musical.

2 . A Canção de Coimbra é um género musical profundamente enraizado na tradição cultural e na história cultural da comunidade (alínea b), porque, não só desde sempre, as danças e os cantares do povo coimbrão, assim como todo um conjunto de representações etno-musicais em torno das fogueiras dos santos populares, as canções de trabalho, os cânticos de embalar, as cantigas de amor, a balada, a trova, barcarolas e nocturnos, cantigas e descantes, são parte integrante do Cancioneiro Popular de Coimbra; como paralelamente a este filão popular, sabe-se que, pelo menos, desde o século XVI, era hábito os estudantes de Coimbra cantarem e tocarem noite dentro pelas ruas da cidade. (Prova factual é a missiva que o rei D. João III enviou ao então magnífico reitor da Universidade - D. Agostinho Ribeiro - em 20 de Junho de 1539, dando conta da necessidade em se pôr fim à algazarra e às cantorias que os escolares faziam altas horas da noite, já que eram muitas as queixas dos habitantes da cidade). E, quanto à Serenata, como ritual, ela é muito anterior cronologicamente, pois remonta à Idade Média.

3. Fruto da coabitação entre estas duas comunidades (a popular e a académica), e da sua divulgação constante pelo mundo, a Canção de Coimbra tem papel na afirmação da identidade cultural, importância como fonte de inspiração e troca intercultural e meio de aproximar povos e comunidades, e papel cultural e social contemporâneo na comunidade envolvida (alínea c).

4. Por não ser, ainda, executada, única e exclusivamente, por músicos profissionais e intérpretes com formação superior na área do Canto e da Música, é um género musical que assenta, essencialmente, na aplicação de fórmulas de digitação da guitarra e de interpretação vocal profundamente enraizadas na cultura local, e transmitidas oralmente, o que nos revelam a excelência na aplicação dos conhecimentos e qualidades técnicas (alínea d) regionais e locais que caracterizam esta cultura-tradição, por parte dos seus executantes.

5. Continua a ser uma canção de grande singularidade e uma tradição cultural viva na cidade, o que está de acordo com a alínea e.

6. Por fim, estando a Canção de Coimbra actualmente envolvida numa fase de experimentalismos musicais vários - fruto do hibridismo musical que a própria globalização cultural nos permite - bem visível na utilização de novos instrumentos na sua forma de acompanhamento (saxofone, violoncelo, acordeão, etc), assim como o recurso a orquestra, e a uma tentativa de fusão com outros géneros musicais, nomeadamente o jazz (e, por ventura, o Fado de Lisboa?), esta Canção sofre hoje um processo de descaracterização tal, que conduz a um preocupante abandono de práticas identitárias e diferenciadoras desta música regional e local em relação a outros géneros musicais, transformando-as em banalidades e adulterando-se a sua vivência humana, o seu imaginário e o seu ritual. Daí o risco de desaparecimento (alínea f) das suas formas mais regionais e locais de execução, devido a fenómenos de aculturação vários, mas que deveriam sujeitar-se a uma triagem de sons matricialmente identificáveis com esta música tradicional da cidade de modo a preservar a essência deste Canto.

Como é fácil concluir do que se escreveu, a Canção de Coimbra não pode ser dissociada de todo um imaginário humano e social, de toda uma vivência espiritual e mental, cuja representação intangível reflecte hoje o seu passado e nos surge como suporte de uma candidatura à UNESCO.

Quanto a mim, negar este património é esvaziar os conteúdos em que deve assentar esta Candidatura. Assim, há que assumir que só a recriação da Canção de Coimbra se pode assumir como Património a preservar.

Nesta perspectiva, alguns tópicos deverão ser objecto de recolha, investigação, estudo e divulgação para suportar a inclusão da Canção de Coimbra no imaginário vivencial do estudante e da própria cidade.

1. Nótula histórica sobre a génese, evolução e imaginário da Canção de Coimbra, seu enquadramento na Academia e na cidade, tendo em conta o grau de sociabilidade entre populares e estudantes, e o modo como vivem e recriam a sua Canção.

2. Testemunhos sonoros e documentais, tendo como base: 1) a biodiscografia de cultores-referência, com especial relevo para a figura amadora do cidadão comum/filão popular e do estudante-cultor/filão académico, sendo imprescindível a aquisição das 523 gravações em 78 rpm de "Fado de Coimbra", datadas, inicialmente de 1904, pertença do cidadão inglês Bruce Bastin, bem como, a recolha de iconografia vária; 2) edição de um Cancioneiro de Música Tradicional de Coimbra.

3. Bibliografia assente na edição/reedição de obras de investigação de reconhecido mérito, consideradas pertinentes para adição à bibliografia-base preconizada pela UNESCO como parte integrante do processo de Candidatura.

4. Plano de Revitalização da Canção de Coimbra com a realização de eventos vários que consagrem as formas tradicionais desta Canção um produto cultural a divulgar como "marca" da Cidade e da Universidade de Coimbra.

Ora, é possível que a maioria das pessoas veja como objectivo último da Candidatura a consagração da Canção de Coimbra como património da UNESCO. Mas há uma pergunta pertinente a fazer: o que ganhará a Canção de Coimbra com esta Candidatura para além do seu reconhecimento patrimonial?

Pois bem, acredito que este processo de candidatura poderá sustentar, através de uma investigação séria e responsável, aquilo que muitas vezes se afirma em privado, mas que raramente é assumido em público: que a Canção de Coimbra não tem a sua origem no Fado de Lisboa! De facto, existe já investigação que aponta neste sentido, havendo assim a oportunidade de, uma vez por todas, se colocar fim à confusão reinante entre o que se canta em Coimbra e em Lisboa. Creio que o País só terá a ganhar na afirmação da sua diversidade cultural neste campo. Na minha perspectiva, esta é mais uma justificação para que a Candidatura ganhe enorme significado. Todavia, nunca será de mais reafirmar que o fundamental é que o processo seja conduzido com seriedade e sentido de responsabilidade, tendo sempre presente o assumir-se a Candidatura pela diferença e não pela confrontação em relação ao Fado de Lisboa.

Por outro lado, embora não defenda (nem nunca tenha defendido) a transformação da Canção de Coimbra num "artefacto" musical museológico, creio ser necessário contrapor ao imaginário artificial que se vai desenvolvendo em Coimbra como forma de divulgação da sua Canção, as suas representações mais tradicionais de difusão, que têm de ser defendidas e preservadas, sob pena da Candidatura não ter qualquer sentido nem justificação. A renovação da Canção de Coimbra não implica o adulterar da sua memória identitária rumo a um novo-riquismo musical. A memória histórico-musical da Canção de Coimbra, por muito que custe a alguns que nada dela querem preservar, nunca foi, nem alguma vez será, uma memória descartável. Aliás, a própria UNESCO estipula que a Candidatura tem de apresentar um plano de acção para a protecção e revitalização da expressão cultural em questão, enquanto género musical tradicional. É nesta perspectiva que a Canção de Coimbra não pode ser adulterada e distorcida com o objectivo de mais facilmente ser integrada na cultura turística da cidade para dar resposta a qualquer tipo de consumo global imediato. Esta Canção para se dar a conhecer aos outros e ao mundo tem de reencontrar a sua própria identidade. Tem de se saber diferenciar de tudo o resto, e só depois de redefinida a sua identidade "local" é que é possível divulgá-la sem atropelos à sua raiz regional e local numa mundialização que lhe permita ultrapassar a crise de identidade e de criatividade que hoje a condiciona e limita.

Em suma, a candidatura da Canção de Coimbra a património da Humanidade deve:

. acentuar as suas diferenças em relação ao Fado de Lisboa;

. recuperar formas de expressão tradicionais que revelem a sua identidade com a cidade e a Universidade.

É que esta Canção como música tradicional é já pertença do património intangível. Para que o seja oficialmente carece apenas de ser consagrada pela UNESCO como tal. Mas a candidatura deve envolver muito mais do que um simples epíteto como objectivo.
Este texto de Jorge Cravo foi editado no Diário de Coimbra nos dias 13 de Março e 3 e 10 de Abril.

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