sexta-feira, julho 15, 2005

A Canção de Coimbra e "os seus instrumentos", ou achas para remoer em férias estivais, por António M Nunes

Vai acesa a polémica sobre a inclusão de instrumentos "sacrílegos" no acompanhamento da CC, na senda da actuação do grupo da TAUC onde canta o meu velho amigo Adamo Caetano ( e eu a julgar que o Adamo era violonista. Bem me enganei! Estará na altura de começar a acreditar em milagres?).
Os debates em torno da utilização dos instrumentos de acompanhamento da CC deverão socorrer-se dos informes da actualidade e também dos dados da investigação histórica e da organologia. De contrário, não haverá debate algum, mas sim um esgrimir de argumentos ortoxos e anacrónicos. Aquilo que parece que "sempre foi", pode não o ter sido, a não ser na cabeça de quem nisso quer acreditar. Em 1998, um colega meu, a trabalhar na Biblioteca Municipal de Barcelos, ofereceu-me uma visita guiada ao centro histórico barcelense. A certa altura, perguntou se gostaríamos (seríamos umas 10 pessoas) de ver o antigo Galo de Barcelos. Habituados à figurinha de barro modernista que se compra em todas as feiras e quiosques (também se fabrica na China), ficámos desvastados ao perceber que o actual Galo de Barcelos é nada mais nada menos do que uma invenção do SNI de António Ferro, forjada durante o Estado Novo. O mais verdadeiro e antigo encontrava-se ao lado do campo da feira, na Igreja das Cruzes, tosco, assimétrico, de policromia opaca.
É hoje em dia possível historiar sincrónica e diacronicamente a evolução da(s) tocata(s) que ajudaram a construir em cada ciclo estético a CC. E perante os dados aportados por este corpus documental e iconográfico, algumas sínteses prévias se nos afiguram pertinentes:

a) a actual Guitarra de Coimbra, com ilharga alteada, escala abaulada e comprida (22 trastos), voluta lacrimal com rasgo em aresta pronunciada, 3 barras intra-tampo (idealizada por Artur Paredes/Joaquim Grácio, e não por João Pedro Grácio Júnior, como Gilberto Grácio gosta de contar), só se começou a divulgar em Coimbra a partir do mês de Maio de 1945;
b) a viola de cordas de nylon, empregue como instrumento de acompanhamento do canto e de peças instrumentais (raramente como cordofone solista, salvo com tocadores como Rui Pato, João Gomes, etc.) só iniciou a sua tímida divulgação em Coimbra no ano de 1958, graças à inclusão do jovem Paulo Alão na formação liderada por António Portugal;
c) após a "restauração" da CC em 1978, todas as formações apostaram na interpertação de um repertório generalista, com a mesma tocata, tendo ficado em aberto a necessidade de avançar para trabalhos de reconstituição no âmbito da História da CC, vertente que teria aberto este género artístico à confrontação com a pluralidade do seu próprio passado (neste particular, a antologia vinil "Tempos de Coimbra", comercializada por 1985, em nada veio ajudar, pois apenas incluiu um solo violístico de Rui Pato e quanto ao resto formatou 80 anos com 2 guitarra e 2 violas. Mas, como escreveram os mentores do projecto "Não fizemos arqueologia");
d) as polémicas, mais ou menos ortodoxas, mais ou menos reducionistas e anacrónicas, persistem em não acrescentar elementos substanciais para o teor da discussão controvertida.

I-BREVE SINOPSE ORGANOLÓGICA (apresentada de forma muito sintética)

Guitarra Inglesa: ca. década 1780-1880
Guitarra de Fado, ou Guitarrilha Tipo Lisboa: ca. 1870-finais da 1ª Grande Guerra
Guitarra Tipo Porto: décadas de 1880-ca.1910
Guitarra Toeira de Coimbra: ca. 1896-1954
Cavaquinho: século XVIII-meados do séc. XIX
Bandolim: finais séc. XVIII-ca. 1900
Violão de Cordas de Aço: meados do século XIX-1961
Viola Toeira: século XVIII-década 1870
Rabeca (violino): século XVIII-1917
Rabecão (contrabaixo): méados séc. XIX-ca. 1900
Viola de cordas de nylon: 1958/1961...
Ferrinhos: 1900-1904
Pandeiro de soalhas: décadas 1850-1880
Flauta Travessa: século XVIII-ca. 1850
Piano: meados do séc. XIX-década 1920
Violão aço com 3 cordas extra escala: décadas 1920-1930
Alaúde: décadas 1920-1930

II - POLEMIZANDO

anos 1902-1904:
-jornalistas ligados à cultura popular de Coimbra esgrimem contra a adopção de instrumentos "alheios", lamentando o quase desaparecimento da Viola Toeira e do Cavaquinho, considerados os mais lídimos representantes da música local. Os jornalistas Tinop e Alberto Pimentel publicam 2 livros sobre o historial do Fado, e nas entrevistas a figuras académicas activas nas décadas de 1850-1860 observaram a alusão obrigatória à utilização da Viola Toeira;
década de 1920:
-os defensores da guitarra em afinação natural reagem mal aos discos gravados por Artur Paredes em 1927. Alguns relembram que Manuel Mansilha com a sua Guitarra do Porto em afinação natural "fazia chorar as pedras";
-os novos sistemas de acompanhamento do canto, propostos por Artur Paredes nos discos gravados por Bettencourt em 1927/1928 geraram depreciativos rumores;
-as gravações de sonetos por Bettencourt e Armando Goes (1927-1928-1929), acompanhados apenas pelo violão aço, fizeram aumentar o mal estar entre os cultores da CC;
-Antero da Veiga aceita gravar em 1927 mas recusa teimosamente a inclusão do violão. No entanto, aceita que seu filho Eugénio o acompanhe com uma guitarra totalmente encordoada com bordões;
1945-1954:
-a nova tipologia de Guitarra de Coimbra vai sendo lentamente adoptada, até à sua consagração em 1954 no Coimbra Quintet;
-nos meios populares (futricas), a nova guitarra gera escassa aceitação. Argumenta-se que Artur Paredes se bandeara para o lado dos estudantes, acrescentando que a sonoridade era muito agressiva para a música de arraial e de romaria;
1958-1961:
-Paulo Alão chega a Coimbra e integra-se no grupo liderado por António Portugal, com uma viola de cordas de nylon. As críticas são acres e recaem sobre Portugal;
Progressivo abandono do Violão Aço, a exemplo de Durval Moreirinhas (1959, grupo Jorge Tuna), José Niza, e Rui Pato (1963, gravações José Afonso)
1961-1969:
Intensa utilização da Viola Nylon como instrumento de acompanhamento de repertório cantável/instrumental e ainda como solista (instrumentais gravado por Rui Pato em 1964), num período de violentas clivagens entre adeptos do clássico e cultores das Trovas e Baladas

III-OUVIR E REFLECTIR (breve amostragem)

LP Canção da Primavera, Philips, 1986 (revertido e ampliado no CD Francisco Martins. Primavera 2, Lisboa, Philips/Polygram, ano de 1998), que incluía guitarra+Violoncelo nos temas Canção da Primavera e Passo de Dança (por Celso de Carvalho) e guitarra+Violino em Passo de Dança Nº 2, Canção da Primavera Nº 2 e Despedida (por Manuel Rocha). No texto de acompanhamento destinado ao CD de Francisco Martins, Armando Luís de Carvalho Homem lancetava certeiramente os teorizadores coimbrinhas do que era e não era...
CD Fados Velhos, Lisboa, Movieplay, ano de 1998 (remasterização do LP Fados Velhos, Contradança, 1987), trabalho da formação Ronda dos Quatro Caminhos. Apresenta 10 temas acompanhados com viola de arame, sem especificar qual delas (Amarantina? Viola da Terra?). Chama a atenção para a necessidade de concretizar projectos de recolha e de reconstituição, que sendo do âmbito da CC, passam pelo ciclo da Viola Toeira. Foi também no brevísssimo texto de apresentação que os Ronda, directamente influenciados pelas recolhas de José Alberto Sardinha, lançaram pertinente repto "E serão o Delicado Pezinho e o Fado dos Estudantes dos Açores? Ou fazendo a pergunta de outra maneira, não serão os fados de Coimbra Açorianos"?
CD Torre de Santa Cruz, Coimbra, Rijo Madeira, 2001, pelo Grupo de Cordas e Cantares de Coimbra. Contém 15 temas, cantata mista, tocata formada por bandolins, violas e flauta. Artisticamente pouco consistente, permite gizar uma breve ideia do que foram as antigas "serenatas bandolinatas" e "serenatas populares fluviais";
CD Lauribano, Coimbra Agitarte AGT 00299, ano de 1999, faixa nº 6, relativa ao popular "Fado do Bandolim". Recolha e gravação do Grupo Etnográfico de Lorvão, com toeira, cavaquinho, bandolim e violas;
CD Flores de Coimbra, Coimbra, Agitarte, AGT 00399, ano de 1999, num trabalho do Grupo Folclórico da Universidade de Coimbra/Casa do Pessoal. Tocata formada por guitarra, viola, cavaquinho, bandolim, ferrinhos. Vale a pena ouvir os temas 1, 2, 4, 5, 6, 7, 9, 12, 14 e 15, ilustrando a utilização deste repertório nas Fogueiras do São João e nas serenatas fluviais populares;
CD Olhar Coimbra, Coimbra, Secção de Fado da AAC, ano de 1998, com Jorge Gomes/António Ralha (gg), Isabel Pinto (flauta), Pedro Lopes (viola), Jorge Pessoa (cavaquinho), Lurdes Garcia (solista) e coros femininos em 11 temas tradicionais, na sua maioria ligados às serenatas populares (de destacar positivamente a interpretação da cantadeira Maria de Lurdes Garcia que nos temas da CC canta ao estilo de Coimbra, sem empurrar a CC para estilizações tipo Jazz, Fado ou Soul);
CD Cantares de Coimbra, Coimbra, GFC-01, ano de 1999, recolha e reconstituição do Grupo Folclórico de Coimbra, sob direcção do Doutor Nelson Borges. Merecem atenção os temas 1, 2, 4, 16, 18 e 20, e o respectivo trabalho de acompanhamento com guitarra, cavaquinho, bandolim, viola e rabeca;
CD LuísBaptis. Toeira guitar, LBM 0104, ano de 2005, com Viola Toeira (?), piano eléctrico, órgão, percussão. Inclui 17 temas instrumentais, interpretados com surpreendente experimentalismo artístico e influência jazzística quanto baste. Este disco é uma surpresa (saber mais em http://www.musiclbm.com/ e em http://www.luisbaptis.com/), no que respeita à redescoberta da injusta e ingloriamente esquecida Viola Toeira. No entanto, não deixo de expressar as minhas sérias reservas quanto à fiabilidade do instrumento em apreço. Pela fotografia da capa do disco, parece-nos uma violinha de construção industrial como sói fazer-se em certas oficinas de Braga. Não queria ir tão longe, mas sem ter o cordofone à mão, arrisco escrever que se trata de uma "viola braguesa" a que se acrescentou a boca ovalada (o oval da Toeira não é este!) e o encordoado da Viola Toeira. É pena, pois a sonoridade fica substancialmnte alterada/adulterada.

relojes web gratis