quarta-feira, junho 08, 2005

O Fado de Coimbra não existe
(artigo de Jorge Cravo, saído na revista Rua Larga, nº 8, Abril de 2005)

A ligação do Cantar Coimbrão ao Fado é sustentada em publicações referentes à cultura popular de Lisboa e a este último género musical, afirmando-se que o "Fado de Coimbra" nasceu do Fado de Lisboa. Contudo, a Canção de Coimbra já existia muito antes do Fado ter surgido em Portugal. Todavia, a designação de "Fado de Coimbra" foi sendo aceite, não só por comodismo, mas por uma questão de moda, pois o Fado surgiu em Lisboa no primeiro quartel do século XIX, e como novidade difundiu-se por todo o País.
De verdade, "Fado de Coimbra" começou por ser o título de uma canção popular de meados da década de 40/50 do século XIX, que tem muito mais a ver com a toada regional e local da Música Tradicional de Coimbra do que com o Fado. O facto de nessa altura ser designado de "Fado de Coimbra" um só tema, não permite referência a um Fado como música autóctone, tradicional e enraizada nas gentes da cidade. É que, em título, igualmente existe o Fado de Aveiro, o Fado da Figueira, ou o Fado de Guimarães, entre outros, e nessas localidades não existe a tradição de um Fado próprio e genuíno. Não quer dizer que não se tenha cantado Fado em Coimbra. Precisamente o Fado de Lisboa. Ou que a Canção de Coimbra em períodos de fraca criatividade não tenha andado muito próxima do Fado de Lisboa. Mas, antes do Fado chegar a Portugal, já em Coimbra existia uma entidade musical muito própria, assente numa forte componente popular e na presença de uma comunidade estudantil que, de origem predominantemente aristocrática e burguesa, era detentora de um interesse musical e de uma exigência estética que nada tinham a ver com a vindoura filosofia de vida dos executantes do Fado de Lisboa.

A Canção de Coimbra como fenómeno social

Se, por um lado, a Música Tradicional de Coimbra compreende um conjunto de danças e cantares das fogueiras, as cantigas de trabalho, os cânticos de embalar, as canções de amor e as serenatas, que constituem o repertório do seu filão popular, nada tendo a ver com o Fado; por outro lado, no filão académico, no século XVI (trezentos anos antes do surgimento do Fado em Portugal) era hábito os estudantes de Coimbra cantarem e tocarem noite dentro pelas ruas da cidade; e no século XVIII (cerca de cem anos antes do Fado), os estudantes cantavam milles trovas, quitollis e amphiguris.
Através de festividades várias e de um convívio urbano-estudantil profícuo, uma população futrica ligada a profissões como as de barbeiro, alfaiate, sapateiro e encadernador, fazia a síntese de toda a oralidade musical que até ela chegava; e ao relacionar-se com gente ligada às repúblicas e às casas onde habitavam estudantes, (cozinheiras, engomadeiras, lavadeiras, serventes), as ricas canções locais foram sendo difundidas entre todos aqueles que partilhavam tal sociabilidade. Este intercâmbio cultural conduziu à retenção de formas mais eruditas e mais elaboradas de interpretação por parte do filão popular, reforçando-se um distanciamento salutar da Canção de Coimbra em relação ao Fado de Lisboa. Veja-se que ao nível da vocalização, esta Canção – sob o ponto de vista da projecção de voz, da dicção, do "dizer" os versos – tem alguma influência operática (reminiscências da modinha italiana, da qual o filão académico foi fortemente influenciado), mas sofrendo tal diluição em contacto com o cantar popular, releva-se o cunho regional e local da tradição musical coimbrã, e o estilo operático acaba despercebido. Ora, estas reminiscências vocais operáticas não se encontram no Fado de Lisboa. Um Fado que, partindo das camadas mais baixas da população lisboeta, não tinha condições culturais para qualquer ligação à música erudita, clássica e dramática, enquanto a Canção de Coimbra, com a presença dos estudantes ganhou sempre um cariz erudito, mas sem nunca perder as suas raízes populares regionais e locais.

Evolução da Canção de Coimbra

Fruto da sua oralidade como forma tradicional de transmissão, esta Canção difunde-se através da troca de sensibilidades musicais entre novos e antigos cultores, populares e académicos, num ensaio, numa tertúlia, numa qualquer demonstração despretensiosa do que se sabe e se cria. Mais do que escolas profissionais de Canto e Guitarra ou Conservatórios de Música, a vivência humana do Cantar Coimbrão, naquilo que o envolve em termos de memória histórica, "escolas" de interpretação, poesia, valores de solidariedade e fraternidade, continua a ser uma forma de aprendizagem por excelência desta tradição musical. É que a Canção de Coimbra vive de uma constante improvisação em torno de tudo o que constitui o seu imaginário.
Em suma: o "Fado de Coimbra" não existe. O que existe é uma Canção Tradicional, regional e local, com um duplo filão (o popular e o académico) enraizada nesta cidade, que tem a Serenata (expressão musical para concerto tocado e/ou cantado e não apenas ritual de cortejamento), como a sua manifestação artística mais genuína, embora esta Canção esteja aberta a outras formas de divulgação.

Jorge Cravo
Licenciatura em História e especialização
em Ciências Documentais pela FLUC
Cultor de Canção de Coimbra

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