quarta-feira, maio 04, 2005

Que público para a canção coimbrã ?
Uma pergunta para o “tempo que não passa”
*

Armando Luís de Carvalho HOMEM

Para o meu filho Gustavo,
nascido a 19 de Maio de 1978

Nos próximos dias 20 e 21 de Maio passarão 20 anos sobre o I Seminário sobre o Fado de Coimbra, que veio marcar o recomeço - não totalmente pacífico - da prática pública e não clandestina do Canto e da execução da Guitarra. Que a data pesa, e não pouco, como marco memorial dos cultores do género prova-o o facto de Jorge Gomes – um dos pioneiros do ensino sistemático da Guitarra de Coimbra - ter justamente dado o título Maio de 78 a uma peça de sua autoria, entretanto gravada pelo próprio e objecto de execução frequente por guitarristas como António Moreira, Paulo Soares e João Alvarez.
20 anos decorridos, onde e como estamos ?
Participei em todos os subsequentes Seminários, do II ao V (1979, 1980, 1981 e 1983, respectivamente), acompanhando os guitarristas Armando de Carvalho Homem (1923-1991), Octávio Sérgio e Mário Freitas. E de algo me dei conta quase de imediato: existindo uma solução de continuidade de cerca de 10 anos, o Canto e a execução da Guitarra recomeçavam em moldes consideravelmente mais tradicionais do que o ponto em que tinham ficado nos idos anos 60; até porque alguns dos mais inovadores intérpretes de então ou já cá não estavam (v.g. Nuno Guimarães, 1942-1973), ou pouco apareceram nestas duas décadas (v.g. António Andias), ou o têm feito muito irregularmente (v.g. Jorge Tuna) ou se eclipsaram de todo como executantes (v.g. Eduardo e Ernesto de Melo). Sendo depois a primeira metade da década de 80 um momento de atenção acentuada da Rádio e da Televisão ao género musical que é o nosso - lembremos os programas Cantos e Contos de Coimbra (RTP/2, 1982), Tempo(s) de Coimbra e Coimbra sem Tempo (RTP/1, 1983 e 1985, respectivamente), estes últimos da responsabilidade de António Brojo (1927-1999) e António Portugal (1931-1994), na origem de um dos monumentos discográficos desses anos -, a verdade é que o público auditor e espectador de então terá recebido com maior frequência temas criados até aos anos 50 (e não falo já dos diferentes níveis de qualidade, aspecto talvez demasiado melindroso para ser objecto de atenção em sede de Seminário...); e este panorama não foi, no essencial, alterado pela muita criatividade (e qualidade) de António Brojo e de António Portugal (e dos cantores que com eles colaboraram: António Bernardino [1941-1996], José Mesquita, Alfredo Glória Correia, Luís Marinho e, mais pontualmente, Fernando Rolim, Fernando Machado Soares e Luiz Goes), de João Bagão (1921-1993; em actividade praticamente até ao fim da vida, continuadamente acompanhando Luiz Goes), de Octávio Sérgio (responsável pelo acompanhamento do LP que marcou o regresso de José Afonso [1929-1987] à Canção de Coimbra, em 1981), de Francisco Martins, de António Ralha, de Hermínio Menino, de Jorge Gomes, de Fernando Monteiro, da dupla Álvaro Aroso / José Carlos Teixeira (a quem, instrumentalmente ou acompanhando cantores como José Miguel Baptista, Joaquim Matos ou Vítor Nunes, por exemplo, se devem alguns dos melhores momentos do já citado programa televisivo Cantos e Contos de Coimbra), dos mais tarde reaparecidos Jorge Tuna e Manuel Borralho / José Ferraz de Oliveira (e, com estes, Fernando Gomes Alves) ou, já de gerações post-78, de João Moura, de António Moreira / Henrique Ferrão (e do cantor Jorge Cravo) ou de Paulo Soares (Jó Jó), este último comitente da proeza de metodicizar a sua docência de tempo integral.
Serão no entanto intérpretes como estes os mais escutados por ouvintes da rádio ou espectadores da televisão ? Duvido. Ou então até poderão ser mesmo estes, mas sê-lo-ão preferentemente na dimensão não original do seu reportório; ou seja, quem faz opinião (seleccionando as gravações a passar num programa de rádio, ou produzindo discos – e depois CD's – e sugerindo / impondo um dado tipo de reportório) tem continuado a 'atirar' os auditores para criações de há 40, 50 ou 60 anos, não incentivando a produção original ou pouco ou nada a divulgando quando já exista. E nada disto constituirá a motivação ideal para jovens executantes (ou candidatos a tal): por mais do que uma vez ouvi António Portugal referir este facto com preocupação.
Vejamos um exemplo: boa parte da discografia de Luiz Goes está já em versão CD. Seria interessante indagar a dimensão das vendas. Mas julgo que não imaginarei demais se presumir que o Coimbra Quintet, de 1957 (com António Portugal / Jorge Godinho [1938-1972] / Manuel Pepe / Levy Baptista) alcança o top, prevalecendo sobre as gravações ulteriores (com João Bagão [1921-1993] / Ayres de Aguillar [?-?] / Fernando Neto / António Toscano / João Gomes, com Carlos Paredes [1925-2004] ou com António Andias / Durval Moreirinhas). E porquê ?
Seria de feia guerra procurar saber se, agindo assim, os reponsáveis pela realização radiofónica ou pela produção discográfica estão a procurar ir ao encontro de uma dada faixa de público consumidor ou se estão a enunciar o seu próprio gosto. Provavelmente até haverá um pouco das duas situações. Certo é, assim, que ao tipo de público mais comum da Canção Coimbrã dirão muito mais temas como Menina e Moça, Samaritana, Fado dos Passarinhos ou Maria, se fores ao baile, por exemplo, do que temas outros como Canção Pagã, Canção (quase) de embalar, Modos de cantar ou Madrugadas Silentes, por exemplo.
Mas que público é afinal o da Canção de Coimbra ?
Será antes de mais um público estudantil jovem, hoje em Coimbra e não só, no quadro de Universidades estatais e privadas, Institutos Politécnicos e mesmo anos terminais do Ensino Secundário. Este primeiro segmento de público, no entanto, será particularmente receptivo ao que haja de mais novo / criativo / moderno no âmbito da Canção coimbrã ? Ouso duvidar. E creio mesmo que a 'vizinhança' das multitudinárias Tunas de modelo espanhol, entre nós erigindo Quim Barreiros em paradigma, não ajudará muito...
Teremos depois um público de antigos estudantes. E aí, eventualmente, se reproduzirão alguns dos problemas do segmento precedente.
E teremos por último um público neutralmente apreciador de quanto seja música ligeira soft, na qual o nosso género se incluirá. E, neste caso, bem poderemos interrogar-nos: Canção de Coimbra ou fado-canção ? Uma vez mais me socorro da lembrança de palavras de António Portugal, ao salientar a proximidade entre algumas das manifestações mais tradicionalistas do Fado de Coimbra e o decantado nacional-cançonetismo ...
E, assim sendo, talvez possamos mesmo concluir que a situação presente não deixa de apresentar pontos de contacto com os anos 60:

a) O público normal e corrente da Canção Coimbrã é normalmente impreparado, e aceita sobretudo o mais antigo, o mais tradicional, o mais fácil, o mais acessível, o que melhor entra no ouvido, tendendo à rejeição (ou difícil aceitação) de tudo o mais.

b) Públicos auditores fora dos segmentos mencionados tenderão a achar a Canção de Coimbra musicalmente pobre, passadista / saudosista, esteticamente retrógrada, pouco autêntica, etc.; e mesmo o que haja de mais inovador lhes parecerá insuficiente. Sirva-nos de exemplo o que pude presenciar há cerca de ano e meio, aquando da preparação da homenagem a Nuno Guimarães na sua terra-natal (Perosinho, Vila Nova de Gaia): escritores e críticos literários houve que praticamente se recusaram a acreditar que um poeta de linguagem tão complexa (Nuno Guimarães é normalmente considerado próximo do movimento Poesia 61) pudesse ter também cultivado à Guitarra coimbrã. Ouvi frases como esta:

§ - É estranho ! Mas será a mesma pessoa ?! (Fernando Guimarães).

§ - Isso de «Fado de Coimbra» não me diz nada ! (Gastão Cruz).

Não estará portanto o género musical que é o nosso, na sua grande riqueza de estilos e de tipologias, a correr uma vez mais o risco de um confinamento a círculos muito restritos de conhecedores e de apreciadores ? E, eventualmente, e por via da associação das tradições lato sensu aos aspectos mais discutíveis da praxe stricto sensu, a correr o risco de uma nova contestação num futuro não muito distante ?

Terminar um texto como este com interrogações, ainda por cima não de todo optimistas, não será talvez uma atitude muito canónica. Possa no entanto o cenário exigente e autorizado dos participantes do VI Seminário constituir o lugar e o momento adequados a um eficaz tentame de resposta.

Porto, 30 de Abril de 1998

Post-Scripta (Jan.2004):

Em finais de 2002 foi editada em CD’s (quatro) uma integral da discografia de Luiz Goes: Luiz Goes: Canções para quem vier. Integral 1952 / 2002, EMI / Valentim de Carvalho, 2002,

Jorge Tuna tem tido um reaparecimento notável, com os CD’s A Guitarra de Coimbra (JORSOM, 1997) e As Mãos e a Alma (MOVIEPLAY, 2003); o acompanhamento cabe invariavelmente a Durval Moreirinhas; o primeiro destes CD’s constitui a reed. (acrescida de alguns inéditos) de um LP saído em 1990.

* Comunicação enviada ao VI Seminário sobre o Fado de Coimbra [Mai.98], a que não pude comparecer pessoalmente; publ. in Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos, org. F. Ribeiro da SILVA, M. Antonieta CRUZ, J. Martins RIBEIRO e H. OSSWALD, vol. 2, Porto, Fac. Letras / UP, 2004, pp. 569-573. «Tempo que não passa» é o título de um poema de Manuel ALEGRE musicado e gravado por José Mesquita.

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