terça-feira, abril 05, 2005

Jorge Tuna:
para uma abordagem ternária de um Mestre da Guitarra de Coimbra
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Armando Luís de Carvalho HOMEM


0. Necessariamente: Duas explicações e uma reexplicação

Uma vez mais me sinto motivado a iniciar um texto versando a Guitarra de Coimbra – e um seu Ilustre Criador e Executante – salientando o duplo estatuto de um trabalho desta natureza: historiador de formação e profissão, pretenderei pautar-me pelo rigor metodológico e por uma severa selecção e crítica de fontes (que são, neste caso, os registos discográficos com a participação de Jorge Tuna); mas, por outro lado, o executante e filho de guitarrista que sou não pode deixar de estar presente, tanto mais que os sons de Jorge Tuna me são familiares desde 1968, possuo integralmente as suas gravações comerciais e na minha longa – embora muito descontínua – carreira de viola de acompanhamento não raro tive oportunidade de acompanhar peças do Mestre («Variações em mi menor», «Variações em si menor», «Variações em Lá Maior», «Rapsódia de fados», «Andamento», «Variações em fá sustenido menor», «Variações em Ré Maior», «Os Amantes», «Tempo de Guitarra» (solistas que acompanhei nestas peças: Octávio Sérgio, Manuel Antunes Guimarães, António Cunha Pereira, Mário Freitas e Alexandre Bateiras) ou de autoria alheia mas com a marca das suas interpretações (Nomeadamente as «Variações de Coimbra», de Afonso de Sousa, que até tempos recentes eram fundamentalmente conhecidas através da gravação por J. Tuna). Como já disse, e repito: «a deformação profissional ‘casando’ com a rememoração vivencial, ainda que a primeira destas dimensões seja, creio, predominante».
Mas há mais: o autor destes considerandos não é propriamente um executante da Guitarra de Coimbra (ainda que não desconheça de todo onde-se-põem-os-dedos...), antes da viola de acompanhamento. Este facto marca indelevelmente as linhas que seguem – tal como, aliás, outras congéneres anteriormente produzidas. Não se espere, portanto, deste trabalho uma análise técnica estrita da execução de Jorge Tuna – à maneira das intervenções, por exemplo, de Paulo Soares nas masterclasses que têm precedido, no ano em curso, os concertos integrantes do I Festival da Guitarra de Coimbra, no âmbito da Coimbra 2003: Capital Nacional da Cultura [v.g. a análise a que efectuou dos procedimentos técnicos correntes em Octávio Sérgio na tarde que antecedeu o memorável concerto em sua homenagem (Coimbra, 2003/09/25)]. Espere-se, em contrapartida, uma análise de sequências melódicas e harmónicas das peças do compositor e executante objecto de análise: ou seja, o enunciar de um ponto de vista que será, em boa medida, o de um acompanhante empírico, sem especial formação musical [na linha de expoentes clássicos da viola de acompanhamento, que passem por nomes como os de Arménio Silva, Paulo Alão ou Durval Moreirinhas, e isto para só referir alguns nomes que particularmente admiro]. Conclusão lógica: o que vai seguir-se de modo algum esgota os ângulos possíveis de análise da Obra de Jorge Tuna.
Por último: Jorge Tuna tem uma produção discográfica que arranca no final da década de 50 e que se estende – ainda que com soluções de continuidade – até aos nossos dias. O estabelecimento de uma periodização – e, consequentemente, de uma diacronia – da sua Obra é, portanto – e utilizando os discos como fontes –, relativamente viável e facilmente suscitador de uma análise como a que aqui proponho [pense-se também, por exemplo, em Artur Paredes (1899-1980) ou, «mutatis mutandis», em António Portugal (1931-1994) ou ainda, «mutatis mutandis» novamente, em José Amaral (1919-2001) ou em Armando de Carvalho Homem]. Mas não faltam em contrapartida os executantes que, por obra original curta, concentrada no tempo ou problematicamente passível de periodizações, muito mais dificilmente sustentam uma apreciação desta natureza [v.g., e dos anos 50 para cá, António Brojo (1927-1999), Eduardo de Melo, Octávio Sérgio, António Andias, Álvaro Aroso, etc.].
Dito e escrito o que, avancemos.


1. «Variações de Coimbra»

O primeiro tempo do tríplice compasso em que enformo a minha aproximação à obra de JORGE MANUEL CASQUEIRO LOPO TUNA tem justamente esta Cidade e o seu Estudo Geral como cenário. O jovem estudante de Medicina, já na recta final do seu Curso e com uma intensa actividade musical – que inclui os grupos em que participou e a colaboração com Organismos Académicos –, grava o primeiro dos seus múltiplos EP’s, Sé Velha: Guitarras de Coimbra, com Jorge Godinho, José Tito e Durval Moreirinhas. Duas particularidades:

a) Grava peças de autoria alheia: «Variações de Coimbra» de Afonso de Sousa [1906-1993] e «Variações em ré menor» de Flávio Rodrigues [1902-1950] [À luz de um «estado actual de conhecimentos», os materiais de Flávio Rodrigues aqui interpretados constituirão as «Variações em ré menor n.º 1», existindo do Autor mais 3 peças no mesmo tom. Pela mesma altura, António Portugal [1931-1994] (com Eduardo de Melo, Manuel Pepe e Paulo Alão, em EP com 3 números vocalizados por Casimiro Ferreira: ed. RAPSÓDIA, EPF 5.084, Porto, s.d., lado 2, faixa 2) gravará uma versão ‘miscelânica’ das n.º 1 e n.º 3; no CD Variações inacabadas (ed. EMI/Valentim de Carvalho, EMI 7 243 831729 2 4, 1994, com António Brojo [1927-1999], Aurélio Afonso dos Reis e Luís Filipe [Roxo Ferreira], faixa 5) apresentará uma versão corrida das 3 peças. Na actualidade, Octávio Sérgio executa correntemente um encadeamento das duas primeiras: tocou-o na Homenagem a Flávio Rodrigues (Coimbra, Nov.2002), acompanhado pelo autor destas linhas; sobre Flávio Rodrigues v. por todos António Manuel NUNES e José dos Santos PAULO, Flávio Rodrigues da Silva. Fragmentos para uma guitarra, Coimbra, Minerva, 2002]; é algo que se repetirá no EP subsequente (com a «Rapsódia de Canções» de Artur Paredes), mas que depois só voltará a ocorrer no seu mais recente CD, com outras três peças de Artur Paredes («Variações em Sol Maior», em «ré menor» e em «si menor»). Uma e outra das duas peças supra-mencionadas converter-se-ão por basto tempo em paradigma para outros executantes; e Afonso de Sousa elogiará publicamente a versão da peça de sua autoria no decurso do I Seminário sobre o Fado de Coimbra (Maio de 1978).

b) Na peça de Flávio Rodrigues o solo cabe a Jorge Godinho, ainda que Jorge Tuna execute uma elaborada 2.ª guitarra.

É neste EP que Jorge Tuna patenteia as suas duas primeiras criações instrumentais: «Variações em mi menor» e «Variações em lá menor». Numa linha com alguma tradição – a lembrar os temas mais elaborados de Artur Paredes –, estas peças mostram já, no entanto, alguma audácia em matéria de sequências tonais, particularmente a primeira. Procedamos a uma breve análise:

I. Variações em lá menor - 6 frases:

i. Compasso quaternário, desenvolvimento em lá menor (1.ª e 2.ª), início com o emblemático acorde de lá menor grave (na linha das primeiras «Variações» de Artur Paredes neste tom).
ii. Compasso ternário, passando a quaternário perto do final, após uma breve suspensão; desenvolvimento em lá menor (1.ª, 2.ª, ré menor, 2.ª de ré).
iii. Compasso quaternário; desenvolvimento em lá menor, particularidade de uma passagem de lá menor a Fá Maior, com utilização ainda da 2.ª de lá.
iv. Compasso quaternário; desenvolvimento em lá menor (1.ª, ré menor, 2.ª).
v. Idem.
vi. Compasso quaternário; desenvolvimento em lá menor (1.ª, ré menor, 2.ª), com finalizações de sub-frase em 2.ª e 1.ª de Dó Maior; finalização neste último tom (incluindo os dois acordes de fecho). Tal como na frase anterior, a 2.ª guitarra de Jorge Godinho faz uma plena 2.ª voz à execução solística.

II. Variações em mi menor – Esta peça, desenvolvida em 7 frases, insere-se numa genealogia de variações no tom, que, na linha de Artur Paredes, faz alternar a tónica com a dominante, isto é, desenvolvimentos em mi menor com desenvolvimentos em Sol Maior [tal tipo de alternância estará ulteriormente patente em variações no dito tom de Armando de Carvalho Homem, Octávio Sérgio, Francisco Martins, Manuel Borralho e ainda outros, porventura]. Concretizemos:

i. Compasso quaternário; desenvolvimento em Sol Maior (1.ª e 2.ª), passagens também por 2.ª e 1.ª de lá menor.
ii. Compasso quaternário; desenvolvimento em Sol Maior (1.ª e 2.ª), várias sequências Sol Maior / si menor / lá menor.
iii. Compasso quaternário; desenvolvimento em Sol Maior (1.ª, 2.ª, Dó Maior), uma sequência Sol Maior / lá menor.
iv. Compasso quaternário; desenvolvimento em mi menor (1.ª e 2.ª), com vindas a Sol Maior (1.ª e 2.ª).
v. Compasso inicialmente ternário, depois quaternário; desenvolvimento em mi menor (1.ª, 2.ª e 1.ª de lá menor) com passagens por Fá Maior e daí para a 2.ª de mi; trata-se de algo de novo – um desenvolvimento num tom menor que vai ao tom maior subsequente – e que ajuda a definir sonoridades e sequências tonais bem próprias dos anos 60; em Jorge Tuna surge aqui pela vez primeira, e por sinal ainda nos fifties [Jorge Tuna, como veremos, utilizará, para além do mi menor/Fá maior, sequências lá menor/Lá sustenido Maior e si menor/Dó Maior. Também Eduardo de Melo e João Bagão [1921-1993] irão cultivar com assiduidade, ainda na primeira metade da década de 60, sequências deste tipo. É evidente que as simples fontes discográficas não autorizam a dizer quem foi, em Coimbra, o primeiro e quando. Mas será isso de primordial importância ? Não posso deixar de lembrar palavras bem recentes (2003/07/12) de Cristina Robalo Cordeiro, lente de Línguas e Literaturas Românicas da Fac. Letras/UC e actualmente Vice-Reitora do Studium Generale Conimbrigensis, em solene elogio de 7 lentes apresentantes de outros tantos drs. recipiendários de insígnias na Sala dos Capelos [e cito de memória]: «Ser o primeiro não significa necessariamente ser óptimo ou ser o melhor». Mas datando de facto este EP de finais da década de 50, haverá antecedentes de tal tipo de sequência ? Na discografia não os vislumbro; fora dela... Em 1962 Carlos Paredes apresentará uma sequência si menor/Dó Maior na suas «Variações em si menor» (EP Carlos Paredes, AEP 60.508, ALVORADA, Porto, s.d. [1962], lado 1, faixa 1; reed. in Mundo (O) segundo Carlos Paredes. Integral, 1958-1993, Lisboa, EMI Valentim de Carvalho, 2002, CD 1, faixa 5); mas apenas em 1967, na frase final das «Variações em Ré Maior» (LP Guitarra Portuguesa, ed. COLUMBIA SPMX 5002, 1967, lado 1, faixa 1; reed. in Mundo [O] segundo Carlos Paredes, cit., CD 1, faixa 13), se reencontrará algo de idêntico. Para tempos posteriores veja-se, entre outras exemplificações possíveis, uma sequência lá menor/Lá sustenido Maior/2.ª de lá em «Castro Daire», de Pedro Caldeira Cabral (no LP Duas Faces, EMI-Valentim de Carvalho 1776171, s.d. [1987], lado 1, faixa 2; e no CD Pedro Caldeira Cabral: Variações – Guitarra Portuguesa, ed. WORLD NETWORK BEST.-NR.: 54.038, NC 6759, Frankfurt, 1992, faixa 2). Um precedente remoto estava, noutra galáxia, num tema da banda sonora de O Pátio das Cantigas (1942); mas aí o autor era Frederico de Freitas (1903-1980)... É também evidente que este surgir de sequências novas (ou quase) na produção de Jorge Tuna muito pode ter também a ver com os processos de trabalho com Durval Moreirinhas: o testemunho deste último (Agº.2003) refere como não raro o surgir primeiro, sob os seus próprios dedos, de uma qualquer ideia para uma sucessão tonal; posto o que, a construção da melodia por Jorge Tuna sobre essa sequência pré-estabelecida. Tal forma de trabalhar não será inédita nem exclusiva: pontualmente a presenciei e/ou ajudei a protagonizar em grupos em que haja participado; mas também não creio que ocorra ‘todos os dias’...].
vi. Compasso ternário, depois quaternário; desenvolvimento em mi menor (1.ª e 2.ª; 2.ª e 1.ª de lá menor), com idas a 2.ª e 1.ª de Sol Maior, fechando de novo com a sequência Fá Maior / 2.ª de mi / mi menor.
vii. Compasso ternário; desenvolvimento em mi menor, com fecho idêntico ao da frase anterior; acordes de encerramento: 2.ª e 1.ª de mi menor.


* * *


É por volta de 1962 que surge o segundo EP instrumental de Jorge Tuna: Coimbra à noite; em relação ao anterior, continuidade do naipe instrumental, apenas com a circunstância de a viola se limitar a Durval Moreirinhas. Não vou alongar-me sobre a versão aqui patente da «Rapsódia de Canções» de Artur Paredes; conforme noutro lugar escrevi, «Como qualquer produto da criação cultural, um tema coimbrão não se esgota no acto (e no momento) criador(es): ele vive enquanto houver receptores apreciadores, potencialmente reintérpretes. A versão de Jorge Tuna para a “Rapsódia de Canções” de Artur Paredes, por exemplo, é um marco memorial da execução do tema na década de 60, e de tal modo que diversos executantes (v.g. José Ferraz de Oliveira) aderiram a determinadas inovações rítmicas e/ou de marcação de compasso do hoje lente de Medicina do Studium Generale olisiponense; o não fazer tal-qual-como-o-Paredes não é, de acordo com estas coordenadas de pensamento, crime de lesa-majestade... antes constituirá a prova mais acabada de que a obra-prima parediana pervive...».

Centremo-nos então, e por agora, nos 3 temas originais deste EP:

I. Rapsódia de Fados – Peça célebre, serviu durante anos (década de 60) como ‘indicativo’ ao programa Do Choupal até à Lapa, do Emissor Regional Centro da Emissora Nacional (depois RDP/Centro). Desenvolvimento em sete frases, que correspondem, em parte, a temas da galáxia coimbrã (ou a ligações entre eles):

i. [Balada do Outono] Compasso ternário; desenvolvimento em ré menor (1.ª, 2.ª, sol menor); passagens por Lá Sustenido Maior e Dó Maior.
ii. [Senhora do Almortão] Compasso ternário; desenvolvimento em ré menor (1.ª, 2.ª); passagens por Lá Sustenido Maior, Dó Maior, finalização em 2.ª de ré.
iii. [Senhora da Póvoa] Compasso ternário; desenvolvimento em Lá Maior (1.ª, 2.ª).
iv. [Saudadinha] Compasso binário; desenvolvimento em ré menor (1.ª, 2.ª); passagens por Lá Sustenido Maior, sol menor e Fá Maior.
v. [Canção da Beira Baixa] Compasso ternário; desenvolvimento em ré menor (1.ª, 2.ª); passagens por Fá Maior, 2.ª de Fá, Lá sustenido Maior e sol menor.
vi. Compasso ternário; desenvolvimentos em Ré Maior (2.ª, 1.ª) e si menor (1.ª, 2.ª), com passagens por mi menor e Sol Maior.
vii. Compasso quaternário lento; desenvolvimento em si menor (1.ª, 2.ª), passagens por 2.ª e 1.ª de Ré Maior e mi menor; finalização em si menor. A 2.ª guitarra de Jorge Godinho executa efeitos complexos e muito trabalhados.


II. Variações em Lá Maior – Desenvolvimento em 6 frases:

i. Compasso quaternário; desenvolvimento em Lá Maior (1.ª, Ré Maior, ré menor); passagens por 2.ª de si e si menor.
ii. Compasso quaternário; desenvolvimento em Lá Maior (1.ª, 2.ª); passagens por fá sustenido menor (1.ª e 2.ª), Ré Maior e 2.ª de mi. Surgimento, nalgumas passagens, de uma dedilhação a fazer lembrar um tremolo, com utilização de indicador, médio e anular; e note-se que Jorge Tuna usava então unhas nos 3 dedos em causa; hoje limita-as ao indicador e ao anular [Testemunho do próprio – e visualização da minha parte – em Agosto de 2003].
iii. Compasso quaternário; desenvolvimento em Lá Maior (1.ª, 2.ª); passagens por fá sustenido menor (2.ª, 1.ª; termina em brusca pausa em acorde deste tom).
iv. Compasso quaternário, final em cadência; desenvolvimento em Lá Maior (1.ª, 2.ª); passagens por Fá Maior e 2.ª de mi.
v. Compasso quaternário; desenvolvimento em lá menor (1.ª, 2.ª; 2.ª e 1.ª de ré menor, 2.ª de mi); uma passagem por Fá Maior.
vi. Compasso quaternário lento; desenvolvimento em lá menor (1.ª, 2.ª; 2.ª e 1.ª de ré menor); passagem por Lá Sustenido Maior; finalização num acorde simples de lá menor grave.


III. Variações em si menor – Também serviu de indicativo a Do Choupal até à Lapa, na fase de retoma do programa (ca. 1977), que então ganhou o subtítulo «Para que não se perca o Fado de Coimbra». Desenvolvimento em 7 frases e um epílogo:

i. Compasso ternário, passando a quaternário, finalizando em cadência; desenvolvimento em si menor (1.ª, 2.ª, mi menor), com passagens por 2.ª de Ré, Dó e Sol Maior[es].
ii. Compasso ternário; desenvolvimento em si menor (1.ª, 2.ª; 2.ª e 1.ª de mi menor), com uma passagem por Dó Maior.
iii. Compasso ternário, passando depois a quaternário; desenvolvimento em mi menor (1.ª, 2.ª; 2.ª e 1.ª de lá menor), finalização em 2.ª de Sol.
iv. Compasso quaternário lento; desenvolvimento em mi menor (1.ª e 2.ª, lá menor).
v. Compasso ternário; desenvolvimento em Sol Maior/mi menor; uma sequência Sol Maior/si menor/Dó Maior; passagens por Dó Maior, 2.ª de Sol e 2.ª de mi.
vi. Compasso ternário; desenvolvimento em mi menor (mi menor, 2.ª de Sol, Sol Maior).
vii. Compasso ternário; desenvolvimento em mi menor (mi menor, 2.ª de Sol, lá menor); passagens também por Fá Maior, 2ª de lá e 2.ª de mi.
viii. [Epílogo] Compasso ternário; desenvolvimento em mi menor (mi menor, 2.ª de lá, lá menor, 2.ª de mi); passagem também por Fá Maior.

Uma palavra para Durval Moreirinhas: sozinho agora na viola e porventura mais solto que no disco anterior, começa a configurar-se como aquele acompanhante «dinâmico», segundo qualificativo de Joaquim Neves Correia de Pinho. Com efeito, as suas performances em «Rapsódia de Fados» e em «Variações em si menor», para além do sublinhar auditivo dos compassos, por vezes como que pré-anunciam a frase seguinte; enquanto que na «Rapsódia de Canções» também ele se não rende ao fétiche das versões originais.


2. «O voo da ave»

O segundo tempo do compasso ternário inicia-se por volta de 1965, com a edição do EP Coimbra, 3 anos posterior ao precedente, como escreve Rocha Pato [Albano da Rocha Pato (1924-1983), repórter de O Primeiro de Janeiro / delegação de Coimbra, pai do viola Rui Pato] na contra-capa, acrescentando: «A gravação agora apresentada é uma obra de nova concepção, que de certo modo rompe com os moldes tradicionais, para se integrar mais pròpriamente num estilo universal (...)»; mas o «autor (...) não quis libertar-se totalmente do estilo coimbrão e que nos proporciona um clima até agora não conseguido (...)». Estas palavras dão conta da extraordinária sensibilidade crítica de Rocha Pato, e com elas me sintonizo plenamente. Assim, se há nas 4 peças deste disco («Solidão», «Variações em si menor n.º 2», «Variações em lá menor n.º 2» e «Andamento») uma dimensão de inovação, não é menos verdade que a dimensão de continuidade igualmente comparece. Concretizemos:



a) Inovação:

i. Dedilhação: É neste EP que Jorge Tuna introduz a dedilhação coordenada do indicador e do polegar, concretamente em «Solidão», «Variações em lá menor n.º 2» e «Variações em si menor n.º 2», com a especificidade – desde logo original – de o fazer em registos múltiplos da escala.
ii. Construção melódica: Neste campo é de destacar a formação de melodias a partir de grupos de 3 notas, processo particularmente patente em «Variações em lá menor n.º 2», e muito em especial nas frases de abertura e de encerramento [Ostentando a mesma característica e cronologicamente próximo, pensemos no tema «Variações em Lá», de Eduardo de Melo, particularmente o motivo de encerramento, em Lá Maior (LP Coimbra Quartet, PHILIPS, 1964, lado 1, faixa 2)]. Moderadamente, embora – nos temas «Andamento» e «Solidão» –, as repetições de temas começam a surgir, ainda que a acentuação respectiva seja ulterior [Tratar-se-á neste caso de uma inovação mediante o retorno a uma remota tradição. Efectivamente, os antecedentes recentes de Jorge Tuna viam as repetições fundamentalmente em temas aportados do universo da música popular (pensemos em «Bailados do Minho» ou em «Valsa em Fá», entre muitos exemplos possíveis), e não nas «variações» estritas: aqui havia que remontar, neste campo, a temas de bem mais antanho, constituindo as «Variações em lá menor» de Jorge Morais («Xabregas») [anos 30] a excepção ilustre na Coimbra post-Artur Paredes. Daí que Octávio Sérgio, ao compor, na década de 70, as suas «Variações em lá» (LP Guitarra Portuguesa: Raízes de Coimbra, ed ORFEO/Arnaldo Trindade, 1981, lado 1, faixa 1), num quadro intencional de Velha Coimbra, tenha justamente optado por tais procedimentos, utilizando inclusive o tema de abertura nos modos menor e maior].
iii. Sequências harmónicas: Aqui merece saliência o entrar em cena do procedimento das descidas de meio-tom em meio-tom no acompanhamento dos temas em modo menor, circunstância que ocorre nas «Variações em lá menor n.º 2», «Variações em si menor n.º 2» e «Andamento»; não era inteiramente novo, e na conjuntura parecerá marcado por «Raiz», de Carlos Paredes; mas deixo para infra uma mais longa abordagem da questão.


b) Continuidade – Apesar do que ficou exposto em a), a verdade é que um dos dois temas ‘maiores’ deste EP – «Variações em lá menor n.º 2» – continua a manter – e até o título o indicia – a estrutura tradicional de variações, com um teor que, por frases, se desenvolve de A a Z, num contexto para já não excessivamente propício a repetições. Daí que não poucos guitarristas tradicionais admirassem profundamente esta peça, apontando a virtuose, a par da muito especial estética melódica de algumas frases. Uma estrutura mais próxima de tema e variações – com os naturais efeitos de repetição – só nas obras seguintes acentuará a sua dimensão – por enquanto, como se viu, discreta.

* * *

A obra subsequente sai no Outono de 1967 e suscita reacções algo desencontradas. Trata-se do EP Um som diferente nas Guitarras de Coimbra; ostenta capa do pintor MÁRIO SILVA, consistindo num tratamento ‘expressionista’ de motivos da paisagem urbana coimbrã em fundo amarelo vivo. Quatro temas, naturalmente, sendo que os da face 1 («Danças» e «Águas») ressurgirão, nos mesmos takes de estúdio, no LP Coimbra Guitars (1969); comecemos, entretanto, pelas peças específicas deste EP:

I. Variações em fá sustenido menor ou “A Loucura Genial” – É sem dúvida, pela originalidade e pela virtuose, uma das peças mais espantosas de toda a discografia de Jorge Tuna. Com uma frase inicial desenvolvida em Ré Maior, espraia-se depois – num total de mais 9 frases, por vezes com repetições, e um “epílogo” – numa série de desenvolvimentos a partir dos acordes graves de Lá Maior e de lá menor, bem como por uma dupla sequência em diminutas/dissonantes. Entre as ‘estranhas’ harmonias, o virtuosismo, os tipos de dedilhação ou a velocidade com que se percorrem – longitudinal ou transversalmente – as diferentes zonas e os diferentes registos da escala, uma pergunta é possível no ouvinte atento: como seria presenciar uma execução ao vivo desta peça (se é que ela alguma vez o foi) ?...

II. Variações em Ré Maior ou as reminiscências do Barroco – Mais uma vez um trilo de notas (fá/mi/fá, fá/mi/fá, fá/mi/sol) está na base de tudo, um tudo que sugere um desenvolvimento fugato, com sugerências entre o scarlattiano e o haydniano. Em tempos de redução de peças a partitura, seria um desafio (para um Octávio Sérgio, para um Paulo Soares, para um José dos Santos Paulo) assim proceder com este Ré Maior, posto o que fazer executar a peça em cravo, espineta, clavicórdio, alaúde, bandola ou oboé (ou pura e simplesmente num sintetizador). Com resultados porventura surpreendentes para o ouvinte ? Para mim, pelo menos, não...


Passemos agora aos dois restantes temas deste EP:

I. Danças – Num reino de dissonância, com alguns desenvolvimentos em lá menor, si menor e fá sustenido menor, a atenção é naturalmente captada pelo motivo final, de ambiente tropical (eu quase diria: cabo-verdiano). Influência dos périplos africanos do Autor ?

II. Águas – Será aqui que pela vez primeira Jorge Tuna se aventura pelos terrenos da música descritiva. Peça desenvolvida em lá menor, com 2 belos temas melódicos a abrir e a fechar, o desenvolvimento central, que uma vez mais diríamos dissonante, aponta para a interminabilidade do movimento de uma queda de água.

* * *

No final do Verão de 1969 surgiu nas discotecas o LP Coimbra Guitars, Played by Dr. Jorge Tuna and Durval Moreirinhas [Tirando o título genérico, o bilinguismo Inglês/Português é total: nos títulos das peças e no texto de José Carlos de VASCONCELOS patente na contra-capa; este texto é demasiado adjectivante e exprime pontos de vista algo discutíveis, v.g. as interrelações que estabelece entre J. Tuna, Carlos Paredes, António Portugal ou as baladas de José Afonso; sobra no entanto uma ou outra nota com a sua pertinência. «O Voo da Ave» (The Bird’s Flight) é o título da peça patente no lado B, faixa 2, deste disco]; capa sob o signo do vermelho vivo: no fundo que enquadra uma fotografia da Urbe – tirada da margem esquerda do Mondego, frente ao Parque da Cidade – e no vestido da jovem que, de costas, vemos reclinada no relvado da dita margem. Mas este disco cor-de-fogo não o é apenas pela cor da capa ou do trajar de uma figurante da mesma. Há de facto fogosidade em várias das peças que o integram; como noutras um incomparável lirismo se detecta. Concretizemos, com as mais significativas:

I. Prece (Prayer) – É outra das peças de Jorge Tuna particularmente felizes no plano melódico. Começando em poderosa abertura em Dó Maior (com evolução, de meio-tom em meio-tom, até lá menor), inclui depois uma dupla sequência em diminutas, fechando num belíssimo desenvolvimento em lá menor, no qual a viola de Durval Moreirinhas executa uma autêntica «2.ª voz».

II. Dança Triste (Blue Dance) – Tema em lá menor particularmente virtuosístico, abre e fecha com 2 belos motivos melódicos. O tema central é sucessivamente desenvolvido, culminando, no quase-final, em elaboradíssima execução.

III. Os Amantes (Lovers) – Agora estamos no terreno da narração, como aliás notou ao tempo José Carlos de Vasconcelos, numa das poucas passagens do texto da contra-capa que merecem a minha cabal concordância: «(...) uma composição tão bela como “[Os] Amantes” define, só por si, um criador: o narrativo tem a força, a cor e a emoção que desde a paixão ao lirismo repousado tudo nos transmite, em diversos planos harmónicos admiràvelmente conjugados na unidade e no equilíbrio do essencial». Assente numa estrutura de repetição/reversão (Tema A / tema A’ [outro é o compasso, outro é o tipo de acompanhamento] / tema B / tema C / tema B [com variantes] / tema A), «Os Amantes» são peça a documentar – se preciso ainda fora – a genialidade do Autor/intérprete e um sapientíssimo doseamento de lyros e de eros; tudo envolto no excepcional melodismo do tema A e na expressiva fogosidade do tema B [Obs.: Esta peça de J. Tuna conheceu em 1981 um autêntico (des)arranjo, perpetrado por um grupo de antigos estudantes da UP: em LP do cantor José Tavares Fortuna, o naipe de acompanhantes (gg.: António Arnaldo Melo e Castro e João Lamego; vv.: Rui Garcia de Brito e Agostinho de Matos) inseriu umas «Variações em lá menor», ditas do Dr. Jorge Tuna, com «arr. Dr. Melo e Castro». Os executantes – solista à cabeça – mostram um total desconhecimento dos processos de trabalho de J. Tuna, executando às vezes as mesmas (embora por vezes não...) notas em pontos diferentes da escala (uma oitava acima, nomeadamente), mostrando justamente desconhecer o jogo de oitavas que tanto individualiza esta peça e desvirtuando completamente os processos durvalianos de acompanhamento].


3. «Flores para Manuela»

Ao dar-se, com os Seminários levados a efeito pela Comissão Municipal de Turismo de Coimbra (1978-1983), o termo dos anos de silêncio público do Canto e da Guitarra, muita gente exprimiu a saudade de executantes que haviam marcado, nomeadamente, o período circa 1960-circa 1968; entre eles, naturalmente Jorge Tuna que, de facto, por esses anos não se viu nem ouviu (salvo, quanto a este último aspecto, mediante a possibilidade de reescutar velhas gravações). Outras dimensões do viver se impunham, e em 1980 viria o doutoramento na Fac. Medicina/UL.
Mais uns tantos anos foram passando. Na Televisão e no Disco iam-se vendo e ouvindo Brojo, Portugal, Bagão, Álvaro Aroso / José Carlos Teixeira, João Moura, António Moreira...; mais pontualmente Octávio Sérgio, Hermínio Menino, Jorge Gomes, Manuel Borralho / José Ferraz de Oliveira, António Ralha... De Jorge Tuna apenas a grata lembrança. Até que um dia...

* * *

... e eis que estamos chegados ao 3.º tempo do compasso...
No Verão de 1990 transmitiu a RTP um conjunto de programas sobre rumos recentes do Canto e da Guitarra de Coimbra; a coordenação dos programas e a selecção do elenco de participantes couberam ao cantor José Mesquita. Serviu de fundo musical de abertura e fecho um belíssimo tema em lá menor, onde ouvidos conhecedores e atentos facilmente reconheceriam as mãos de Jorge Tuna; que aliás, com Durval Moreirinhas, participaria num dos programas, para executar dois temas.
Meses depois sairia o LP Tempos de Guitarra; o tema/indicativo do programa televisivo referido no parágrafo anterior era o doravante emblemático «Tempo de Guitarra»; as duas outras peças executadas para o pequeno écran eram «Memória de Coimbra» e «Balada das Alpenduradas»; a capa mostrava os dois executantes actuando na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa [Imagem infelizmente substituída, na versão CD (1997), por detalhes individuais dos 2 músicos]. A excelente estética da capa deste LP ‘de última geração’ estava no entanto longe de ser acompanhada pela qualidade da prensagem. E 7 anos depois surgiria a transposição para CD, incluindo 3 temas inicialmente não vindos a público [Trata-se de «Flores para Manuela», «As danças» - que importa não confundir com «Danças», do EP Um som diferente... (lado 1, faixa 1) e do LP Coimbra Guitars... (lado 2, faixa 5) -, e «Sol Maior»] – por falta de espaço – bem como uma segunda versão de um outro [Trata-se de «Dança dos Duendes (II)»].
Neste retorno de Jorge Tuna – cerca de 20 anos depois de Coimbra Guitars... – ao contacto com os seus ouvintes e admiradores, 5 temas me parecem merecedores de especial destaque:

I. Memória de Coimbra – Tema em mi menor, desenvolve-se em 6 frases. Destaco a frase de abertura, a frase 5 (desenvolvida nas 3 cordas graves a partir de acordes de 1.ª e 2.ª de mi menor) e a frase 6 (encerramento, em interessante linha melódica).

II. A Valsa – Peça poderosíssima, é também um dos ‘documentos’ mais sólidos do «modus faciendi» do Autor ao longo deste LP/CD, em matéria, por exemplo, de utilização solística da corda de mi, de bordões harmónicos na corda de ré ou de ataque de frases (ou secções das mesmas) com notas dadas para fora. Desenvolvida em lá menor, esta verdadeira invitation à la valse compreende um preâmbulo, mais 4 frases e um epílogo em compasso ternário. Tema dos mais conseguidos neste disco – e mesmo, em geral, na Obra tuniana –, «A Valsa» notabiliza-se pela conseguida homogeneização da virtuose com uma construção melódica geradora de momentos singularmente belos.

III. Tempo de Guitarra – É o verdadeiro ex-libris do CD em análise; e por alguma razão serviu de indicativo ao já mencionado programa da RTP (1990), além de entretanto ter passado a integrar o reportório de guitarristas de gerações diversas. A característica tuniana mais evidente nesta peça é o modo sábio de utilização do vibrato da corda de mi – coisa em relação à qual «Tempo de Guitarra» será como que um discurso de método (ainda que nem sempre plenamente recebido por outros executantes). Desenvolvendo-se em lá menor e compasso ternário, «Tempo de Guitarra» consta de um preâmbulo e mais 3 frases, a última das quais cadencial, sequentemente se repetindo a tríplice totalidade das frases.

IV. Balada das Alpenduradas – Tema em mi menor, o desenvolvimento central sugere o que em guitarra poderia ser a transposição da harmonia subjacente ao célebre tema «Jeux interdits» (vulgo, entre nós, Brincadeiras proibidas), com interessante trabalho, a latere, de Durval Moreirinhas. Abre e fecha a peça uma frase executada nas cordas graves de ré e de lá.

V. (The last but not the least) Flores para Manuela – Em homenagem a sua Mulher, Jorge Tuna dá-nos aqui outro dos temas inequivocamente fortes deste momento discográfico. «Flores para Manuela» desenvolve-se em lá menor e consta de uma frase cadencial, a funcionar simultaneamente como preâmbulo e fecho, e de mais 3 frases: a primeira apresenta-se em compasso ternário – outra notável petite valse –, onde – uma novidade – se constrói o discurso musical a partir agora de grupos de duas notas; a segunda, acentuadamente virtuosística, é em compasso binário; a última, de novo em ternário, funciona como ligação à reexecução final do tema de abertura.

* * *

E vamos para o último CD de Jorge Tuna, As Mãos e a Alma (2003). De novo Jorge Tuna inclui nesta gravação temas de Artur Paredes (três), como já se disse; e o balanço da sua execução parece-me comparável ao atrás exposto para a «Rapsódia de Canções». Destaques entre o reportório original? Sem dúvida. Cinjo-me a duas peças:

I. As Mãos e a Alma: Ouverture majestosa do CD, com primeiro desenvolvimento em Fá Maior, tom para executantes maduros, conforme já tive oportunidade de dizer; as frases subsequentes são em ré menor, por vezes com dedilhação coordenada.

II. Serenata a Dois: Sem dúvida um dos momentos altos do mais recente CD de Jorge Tuna, esta peça principia com um desenvolvimento torrencial – a fazer lembrar a interminabilidade do movimento das Águas, no LP Coimbra Guitars –, com dedilhação coordenada [a reaparecer, aliás, em diversos pontos da peça], tendo depois um desenvolvimento em lá menor, de virtuose controlada, onde, qual refrão, se nos deparam várias passagens e desenvolvimentos pelo (e a partir do) acorde grave do referido tom.



4. A fechar: «Deixa-me contar-te um segredo» [título da faixa 7 do CD As Mãos e a Alma]

Num primeiro balanço, em termos quantitativos, direi que Jorge Tuna gravou, ao longo de cerca de 45 anos, 54 temas instrumentais – sendo 48 de sua autoria (88,88 % do total) – e 7 introduções de temas cantados. Não é propriamente pouco. Para além do que, qualitativamente, recolhe a herança de velhos Mestres da Guitarra (Flávio Rodrigues, Afonso de Sousa e, acima de todos, Artur Paredes) e lhe dá original sequência, tanto em contextos reconhecíveis como tradicionais – embora desde muito cedo afirme uma execução e um estilo de composição inconfundíveis –, como segundo coordenadas manifestamente novas, levando a temas por vezes perplexificantes para quem, desprevenidamente, o ouça; a acrescer, técnicas de dedilhação que são bem suas e um virtuosismo talvez hoje um pouco domado, mas que nas gravações das duas primeiras fases surpreende o ouvinte e pode inculcar, naqueles que saibam onde-é-que-os-dedos-se-põem, a tal ideia da genial loucura, de que já falei.

Mantendo-me no domínio do qualitativo, (re)afirmarei Jorge Tuna – e, por certo, ninguém discordará – como um dos mais criativos e prolíficos intérpretes das gerações que em Coimbra se iniciaram nas décadas de 50 e de 60. Mas – e bem mais importante do que isto – um criador/intérprete que na dimensão de inovação/ruptura se afirmou de forma praticamente lateral à recepção coimbrã de Carlos Paredes (1925-2004), de quem só ocasionalmente terá executado qualquer peça [Caso de «Dança Palaciana» (testemunho do próprio, em Nov.2003] – e isto torna Jorge Tuna um caso praticamente único:

a) Com efeito, novidades tunianas em termos, por exemplo, de dedilhação podem incluir a coordenação indicador / polegar, mas tendem a exercer-se em pontos da escala bem diversos – não raro nas cordas agudas – dos normalmente utilizados pelo Autor de Canção Verdes Anos; podem também incluir o tremolo de 4 notas ( = duas idas e vindas do indicador, com apoio de notas do polegar no bordão de ré por cada grupo de duas notas), processo que outros executaram e vêm executando; antecedentes plausíveis ? pensemos, por exemplo, no final de «Passatempo», de Artur Paredes...

b) No acompanhamento de temas no modo menor, as frequentes descidas de meio-tom em meio-tom em bordões da viola de acompanhamento: como origem / paradigma, pensar-se-á de imediato em «Raiz-Dança», de Carlos Paredes. Simplesmente, não só o ocorrer desta sequência na Obra de Jorge Tuna anda cronologicamente muito próximo da divulgação discográfica daquele tema de Carlos Paredes [de ca. 1963 para ca. 1965; na obra de Jorge Tuna pense-se, antes de mais, na «Variações em lá menor n.º 2», nas «Variações em lá menor n.º 2» e em «Andamento», do EP Coimbra], como na guitarra de Coimbra já havia antecedentes: o mais significativo ocorrera em 1957 nas «Variações em lá menor» de António Portugal [LP Coimbra Quintet, com Luiz Goes/António Portugal/Jorge Godinho/Manuel Pepe/Levy Baptista (PHILIPS, ESTEREO 8330 016, 1957 [com múltiplas reeds.]), face 2, faixa 6]; mas também ocorrerá, logo a partir das primeiras trovas/baladas, em temas vários acompanhados somente à viola [e deixo para os investigadores específicos da matéria o recenseamento, aí, de tais ocorrências]. Ou seja: primeiros ou não, Jorge Tuna e Durval Moreirinhas estão desde cedo no processo, que usam com abundância até ao LP Coimbra Guitars, onde surgirá na quase totalidade dos temas [pense-se, aqui, nos temas «Entardecer», «Encontro», «Os Amantes», «Amanhecer», «Dança Triste», «Infância», «Na Feira», «Prece», «Devaneio», «Danças» e «Águas»].

c) A valorização da corda de mi – e do vibrato que lhe é próprio – individualiza particularmente o Autor; nas peças dos anos 90 para cá, salientem-se «Tempo de Guitarra» e «A Valsa».

d) O início de frases (ou secções das mesmas) com notas dadas para fora – procedimento cuja complexidade seria supérfluo acentuar – é outro traço marcante, presente já no segundo e no quarto EP’s e no primeiro CD (e muito particularmente nas «Variações em fá sustenido menor» e em «Flores para Manuela»).

e) A utilização dos bordões harmónicos na corda de ré pode também ocorrer, mas é sobretudo frequente em fases mais próximas de nós [cf., como peças especialmente significativas deste ponto de vista, «Amanhecer» (Daybreak), do LP Coimbra Guitars, Lado A, faixa 4; e «A Valsa» e «Memória de Coimbra», do CD A Guitarra de Coimbra, faixas 7 e 6], para além de se exercer em sequências harmónicas muito próprias [caso de «A Valsa»].

E a construção melódica também pouco ou nada tem a ver com Carlos Paredes; Jorge Tuna partilha com diversos (poucos) executantes do seu tempo a construção de melodias em grupos de 3 notas [procedimento onde, como já se viu, as «Variações em lá menor n.º 2» se revelam essenciais na Obra do Autor (EP Coimbra, face 2, faixa 1]: deste ponto de vista, uma vizinhança a explorar futuramente pelos estudiosos seria a eventualmente existente entre Jorge Tuna, Octávio Sérgio, Eduardo de Melo ou António Andias, por hipótese... o que é, obviamente, tarefa requeredora de uma formação musical que de forma alguma possuo...


É por tudo isto, Caro Ouvinte e Futuro Leitor, que fecho o presente texto com o pedido que titula a alínea terminal: deixa-me exprimir-te, como quem «conta um segredo», a ideia de que, para quem não seja Homem de um só Livro, a vasta Obra gravada de Jorge Tuna bem pode constituir manual de aprendizagem para jovens executantes: porque, de certa maneira, está lá tudo e há lá de tudo. Até hoje não têm sido numerosos os que se abalançaram à execução – pelo menos pública – de temas tunianos. Será esperar demais que, num futuro de médio prazo, as Cordas do Mondego possam fazer-se ouvir interpretando, também, temas deste AMIGO DO CORAÇÃO que em tempos habitou a Ladeira das Alpenduradas ?...


Post-Scriptum: Uma derradeira palavra para Manuela Tuna, não raro, estou em crer, verdadeira musa inspiradora dos trabalhos de seu Marido.



Lisboa / Morelinho (Sintra) / Coimbra, Julho / Novembro de 2003




Obs.: Para o essencial da vida e da obra de Jorge Tuna veja-se Pedro Caldeira CABRAL, Guitarra (A) Portuguesa, Alfragide, EDICLUBE, 1999, pp. 262-263; José NIZA, Um Século de Fado: Fado de Coimbra, vol. II, Alfragide, EDICLUBE, 1999, pp. 172-173; do mesmo Autor cf. também o belo texto («Jorge Tuna: O Navegador Solitário») que acompanha o CD As Mãos e a Alma (MOVIEPLAY, MOV. 30.473, 2003); António M. NUNES, «Da(s) memória(s) da Canção de Coimbra», in Canção de Coimbra: testemunhos vivos (Antologia de Textos), Coimbra, Direcção–Geral da Associação Académica, 2002, pp. 34-37 et passim; aponte-se ainda António de Almeida SANTOS, texto anexo ao CD Guitarra (A) de Coimbra (JORSOM, J-CD 7013, 1997); cf. ainda a notícia biográfica disponível em http://www.cidadevirtual.pt/fadocoimbra/%20tuna.htm; mais longe no tempo, vejam-se os breves textos, de Rocha PATO e sem indicação de Autor, respectivamente nos EP’s Coimbra (RAPSÓDIA, EPF 5.298, Porto, s.d. [ca.1965]) e Um som diferente nas Guitarras de Coimbra (POLYDOR, 10 001 CR, s.d. [ca.1967]); e as palavras de José Carlos de VASCONCELOS na contracapa do LP Coimbra Guitars. Sinopticamente, apontem-se: a) Nascimento (1937) e estudos liceais e superiores em Coimbra, culminando na licenciatura em Medicina (1961). b) Serviço militar, compreendendo uma estadia em Angola (1962-1965); pelo meio (1964), casamento com Maria Manuela Valadares Marques Lopo Tuna, licenciada em Filologia Germânica (UL); do casamento nasceriam quatro filhos. c) Um ano (1965/66) como assistente de Fisiologia (regência do Prof. José Gouveia Monteiro, 1922-1984; Reitor da UC, 1970-1971 [cf. Manuel Augusto RODRIGUES, Universidade (A) de Coimbra e os seus Reitores. Para uma História da Instituição, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1990, pp. 376 e 523]) na sua ALMA MATER. d) Ulteriores residência e exercício profissional em Lisboa, como cardiologista e docente da Fac. Medicina/UL, onde se doutorou (1980) e agregou (1995), atingindo o topo da carreira como lente de Medicina Interna; aposentou-se em 2003. e) As «primeiras letras» da Guitarra aprendeu-as com Júlio Ribeiro e com o tenente Custódio Moreirinhas (1889-1964, pai dos violas Durval e Custódio Moreirinhas). f) Musical e discograficamente esteve depois ligado a guitarristas como Júlio Ribeiro e (sobretudo) Jorge Godinho [1938-1972] e a violas como José Tito [Mackay] e (sobretudo) Durval Moreirinhas. Desde a década de 60 que, justamente com Durval Moreirinhas, optou por uma formação instrumental simplificada (apenas guitarra + viola). g) Globalmente, a sua discografia compreende, de finais da década de 50 a finais da de 60, 5 EP’s 45 RPM (sendo quatro inteiramente instrumentais e um de acompanhamento do cantor João Barros Madeira [ed. RAPSÓDIA, EPF 5.092, Porto, s.d.]; três dos EP’s instrumentais foram recentemente transpostos para CD: ed. EDISCO, ECD 133, 2000), a participação em 3 temas (onde acompanha António Sutil Roque, António Sousa Pereira e João Barros Madeira) de um LP do Orfeon Académico de Coimbra e um LP instrumental (Coimbra Guitars. Played by Dr. Jorge Tuna and Durval Moreirinhas, ed. POLYDOR 184 194, s.d.); de 1990 para cá, mais um LP (Tempos de Guitarra, ed. JORSOM, 1990, ulteriormente passado a CD, com o título Guitarra [A] de Coimbra, incluindo alguns temas inéditos: v. supra, início da presente nótula) e um CD (v. supra, início da presente nótula).
* Revista Portuguesa de História, XXXVI/2 (2002-2003), pp. 397-416.

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