sábado, abril 02, 2005




Francisco Filipe Martins:
(Dez) Primaveras de uma Guitarra
*


Armando Luís de Carvalho HOMEM



Foi por Abril de 1986 que surgiu no mercado o LP Canção da Primavera, de Francisco Filipe Martins / Rui Pato (com o apoio do violoncelo de Celso de Carvalho [já desaparecido] em dois temas), agora parcialmente reeditado. Face a uma Comunicação Social normalmente desatenta ao que se passa na Galáxia Musical coimbrã, face a uma intelectualidade não raro reproduzindo ipsis verbis as críticas do final da década de 60 ao universo das Tradições Académicas (de José Pacheco Pereira a António Barreto ou, estritamente no plano musical, a Joaquim Pais de Brito), o primeiro trabalho de fôlego de Francisco Filipe Martins (tirando a destacada presença no LP Flores para Coimbra, com António Bernardino, António Portugal e Luís Filipe) foi invulgarmente bem recebido pela crítica e pelos profissionais da Rádio e da Televisão:

o O caderno Revista de um dos primeiros números de Expresso publicados em Maio incluiu-o na selecção discográfica da semana;

o serviu de fundo musical de sucessivas emissões de Lugar ao Sul (RDP/1, sábados de manhã);

o foi incluído nos Setes de Ouro de 1986;

o no Natal constou de selecções/sugestões de prendas que publicações várias normalmente apresentam nessa altura do ano;

o finalmente, já em Jan.87, foi fundo para um dos apontamentos coreográficos que então fechavam as emissões da RTP/1.

É evidente que não faltaram também os coimbrinhas, sempre prontos a teorizar sobre o que é ou (já) não é «Coimbra» (terão digerido o violoncelo ?)... Mas não percamos tempo com tais problemáticas: ou não terá o nosso Povo razão acerca daquelas vozes que às celestiais alturas se não alcandoram ?
Em Abril de 1996, eis que a mesma dupla (agora com o violino de Manuel Rocha e o ‘reforço’ da viola de Humberto Matias), ‘reincide’. E agora, Francisco ?
Por ocasião da saída de Canção da Primavera, tive a oportunidade, em carta a Rui Pato, de longamente manifestar a minha opinião de fundo sobre o álbum. Em meu entender, o conjunto de temas originais de Francisco Martins traduzia a marca temporal de um executante que começara cedo (por volta dos 12 anos) e participara, a partir de 1964, daquilo a que alguém chamou «geração de viragem» em Coimbra, «não só no que à Canção diz respeito, mas em outros domínios». Confirmando o que discretamente pré-anunciava em Flores para Coimbra (particularmente nas introduções e/ou acompanhamentos dos temas «Trova da Planície», «Flores para Coimbra» e «Guitarras do meu País») – e que motivara a Orlando de Carvalho a interessante qualificação como «trobadour inteligente e subtilmente lírico» –, FM vinha corporizar plenamente as novidades que, com uma série de coetâneos ou próximos disso (Eduardo e Ernesto de Melo, Manuel Borralho, Nuno Guimarães, António Andias, Hermínio Menino, José Ferraz de Oliveira, José Bárrio, Luís Plácido ou Jorge Limpo Serra; sem esquecer o magistério de António Portugal, a coexistência lateral aos singulares casos de Jorge Tuna e Octávio Sérgio e a importância de executantes de viola como Paulo Alão, Durval Moreirinhas, Rui Pato, Rui Borralho, Jorge Moutinho, Jorge Rino ou Jorge Ferraz de Oliveira), ajudara a introduzir na Guitarra de Coimbra:

- a assimilação (que não reprodução servil) das ‘conquistas’ de Carlos Paredes [1925-2004] (bordões na corda de ré, dedilhação coordenada do indicador e do polegar, certas sequências harmónicas, etc.), a eventual posse de uma formação musical erudita, a também eventual execução cumulativa de viola clássica ou de instrumentos de plectro, como o bandolim, a atenção à evolução da música popular urbana (do rock à bossa), a frequente construção da melodia com uma surpreendente simplicadade de processos (v.g. a utilização de grupos de 3 notas) ou a própria interpretação (renovada) de temas tradicionais.

Canção da Primavera trazia tudo isto, ao que acrescia a novidade (indubitavelmente ousada, tendo em conta o meio) da inclusão de um violoncelo em 2 temas («Canção da Primavera» e «Passo de Dança»), pelo meio ficando ainda sugestões de universos musicais vários (palaciano, barroco, «rocky» ou «country») ou uma oportuna revisitação de Artur Paredes (particularmente conseguida nas «Variações em mi menor»).

E hoje, 10 anos decorridos ? À primeira vista estaríamos justamente no signo da continuidade: FM pareceria propor-se partir do exacto ponto em que há 10 anos nos deixara, ‘desenvolvendo’ uma parte dos temas de então («Canção da Primavera n.º 2», «Momento(s) Breve(s)» n.ºs 2 e n.º 3, «Passo de Dança n.º 2»), reinterpretando uma peça tradicional («Maxixe Poiarense», de Manuel Rodrigues Paredes) e uma vez mais incluindo um instrumento erudito (agora o violino, em «Canção da Primavera n.º 2» e «Passo de Dança n.º 2»). E, de facto, não faltam elementos de continuidade nesta gravação:

§ Não tendo embora uma formação musical escolar, o FM criador continua a evidenciar o melómano que também é. O universo sonoro do Barroco – confessadamente da sua predilecção – continua presente («Canção da Primavera n.º 2», «Momento Breve n.º 2» e «n.º 3»), afigurando-se que canon e contraponto não parecem ser-lhe propriamente estranhos; um auditor assíduo de J. S. Bach poderá mesmo sentir, face a «Canção da Primavera n.º 2», reminiscências de um universo sequencial a evocar o 2.º andamento (Largo ma non tanto) do «Concerto em ré menor» para dois violinos BWV 1043 (ou da transposição para dois cravos, em dó menor, BWV 1062).

§ Mais pontualmente, são as sugestões de música de câmara do Tardo-Classicismo, patentes há 10 anos em «Momento Breve» e agora nas duas peças homónimas (as quais constituem, aliás, os casos de maior sequencialidade entre as duas gravações).

§ A ludicidade com sugestões «countries» continua presente, agora em «Passo de Dança n.º 2», delicioso momento afirmativo de um criador irreverente e bem-humorado.

Mas nem só de continuidades se faz este CD. Assim, em 1996 FM parece menos marcado pelos anos 60, apresentando-nos um conjunto de novas peças que definitivamente o elevam à dimensão de um dos grandes criadores e intérpretes do instrumento em todos os tempos e a um lugar de indiscutível primeiro plano entre os vivos e em actividade.
Assim, e em primeiro lugar, FM apresenta-nos algumas peças em moldes relativamente tradicionais. É o caso de «Apontamento» (onde é notabilíssimo o domínio da escala evidenciado, com frases percorrendo uma multiplicidade de ‘registos, do bordão de ré a agudíssimas notas na corda de lá; o que, aliás, também se verifica em «Momento Breve n.º 2»), do desenvolvimento central das «Variações em Fá» (indubitavelmente só um Mestre se exprime neste tom com o brilho que FM aqui patenteia) e das «Variações em ré menor n.º 1»; mutatis mutandis, será ainda o caso de «Dança Estival», interessante tratamento de temas de raiz popular.
Por outro lado, FM mostra-se decididamente senhor de todos os contributos, em termos de criação melódica e de tratamento harmónico, trazidos à Guitarra de Coimbra pelos mais criativos entre os criadores (passe a redundância), ainda que formalmente exteriores ao universo coimbrão: correndo eu embora o risco de ser mal entendido (menos pelo principal interessado e pela faixa de potenciais leitores cuja opinião me possa interessar), não hesitarei em dizer que FM evidencia um perfeito domínio dos recursos trazidos à Guitarra por Carlos Paredes e por Pedro Caldeira Cabral (particularmente em «Variações em Fá» e em «Momento Breve n.º 2») e se exprime com uma mestria até agora (aparente) apanágio de um António Brojo, de um Jorge Tuna, de um Eduardo de Melo ou de um Octávio Sérgio (v.g. em «Apontamento», «Variações em Fá», «Variações em ré menor n.º 1» ou «Momento Breve n.º 3»).
Finalmente, se há 10 anos o Álbum Canção da Primavera ainda denunciava alguns ‘nervosismos’ de execução (v.g. em «Improviso» ou nas «Variações em Sol Maior» de Artur Paredes [não reproduzidas no presente CD]), tal impressão agora de todo se dissipa: FM está decididamente, e para ficar, um grande senhor da Guitarra !
Uma palavra final para o trabalho de Rui Pato. Praticamente o único viola da sua geração em actividade continuada (melhor dizendo: seriamente continuada), mantém-se evidenciando as qualidades e as subtilezas que há mais de 30 anos o notabilizaram, isto com resultados particularmente brilhantes em «Apontamento», «Canção da Primavera n.º 2», «Variações em ré menor n.º 1» e «Momento Breve n.º 3».

E será tempo de me calar. As opiniões valem o que valem, mas creio poder deixar o ouvinte que tenha optado por percorrer antes mais o desdobrável e os textos de apresentação com a ‘garantia’ de que tem nas mãos uma Obra de Mestres e que trabalhos como este não surgem propriamente ‘todos os dias’. E (talvez) ainda bem.




Porto, 31 de Março de 1996

* Texto incluído na capa do CD Primavera 2: Música para Guitarra de Coimbra, de Francisco Filipe Martins, [Lisboa], Philips/Polygram, 1998, 8 cols.

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