quarta-feira, março 23, 2005

“O Canto e as Armas” de Manuel Alegre

Um livro editado pelo autor em 1970, com um símbolo na capa e no interior a dizer "Poesia, Nosso Tempo". Poemas da clandestinidade, no tempo em que não era permitido expressar opinião diferente da oficialmente estabelecida.
Não se podia chegar a uma livraria e perguntar, como eu fiz mais que uma vez, se tinham, por exemplo, o livro de Aquilino Ribeiro, “Por quem os lobos uivam”. Olhavam-nos de alto a baixo, com ar de desprezo, pensando que éramos da PIDE e ali íamos tirar nabos da púcara. Ou se era conhecido, suficientemente bem, pelos livreiros, ou então nada feito. Muito poucos arriscariam a fornecer a um desconhecido uma obra registada no Index. Manuel Alegre era um desses autores proibidos.
Lembro-me de um dia encomendar uma centena de exemplares à sua mãe, não me lembro se deste livro se da “Praça da Canção”, também da autoria de Manuel Alegre, para o meu amigo Achando, em Almada, da Livraria Académica. Mas tudo feito sigilosamente, com o máximo cuidado. Vim a saber depois que a encomenda foi entregue.
Adriano Correia de Oliveira gravou um belo disco, exactamente com o título “O Canto e as Armas”, numa edição Arnaldo Trindade, no ano de 1969, com uma reedição em CD em 1994 pela Movieplay, fazendo parte da obra completa de Adriano, já referida neste Blog. O acompanhamento à viola está a cargo de Rui Pato que, como sempre, enriquece os textos e a voz, com a sua mestria amplamente reconhecida, desde as primeiras baladas de José Afonso.
Na face 1 do disco os textos são deste livro, começando pelo Canto I, Peregrinação. Se estes poemas são sublimes, só uma música também sublime os poderia envolver. E é exactamente isso que acontece. Parece estarmos em face de um compositor de música erudita, pela maneira como os poemas estão trabalhados.
Na face 2 deste disco, só dois poemas não são de Manuel Alegre: um é de António Cabral e o outro de José Afonso. Os que se seguem, “Canto da nossa tristeza”, “Trova do vento que passa nº 2” e “As mãos”, antecedem um “Post-Scriptum” com este final empolgante: “Sobre esta página escrevo o teu nome, LIBERDADE!” Um final em que Manuel Alegre e Adriano nos levam a um novo mundo, sem amarras nem mordaças.
Outros poemas deste livro estão também musicados, alguns ainda por Adriano, outros por António Portugal, josé Niza, J. Fernandes e Francisco Martins.
A poesia de Manuel Alegre é uma poesia muito musical. Destila música por todos os poros, pode dizer-se. António Portugal, a par de Adriano, soube também captar a poesia do seu cunhado, tendo escrito belas peças que a seu tempo aqui serão focadas.
Vou transcrever um texto de Adriano Correia de Oliveira inserto na primeira edição do disco “O Canto e as Armas”.

O trabalho que agora se submete à apreciação do público, leva-nos a algumas considerações, que cremos oportunas, explicativas da sua razão de ser.
Diremos, assim, que a forma de expressão de que se socorre, impropriamente designada por “balada”, é antes o resultado da fusão numa forma simples de dois tipos de linguagem – a da música e a das palavras. Assim, a expressão musical e a literária, se harmonizam e se fundem num todo, em que cada uma, para se atingir perfeita realização, terá igual papel e deverão servir-se mutuamente. Não se trata efectivamente de poesia musicada ou de música que utilize as palavras como mero suporte.
Nestas cantigas o modo de expressão resultante, utiliza-se de uma linguagem a um tempo musical e literária.
Ao musicar a primeira parte de “O Canto e as Armas”, tentou fazer-se uma experiência nova, realizando uma obra de maior fôlego que o normal, que ultrapassa pelo menos a sua extensão convencional. Trata-se, com efeito, de um poema em sete partes com perfeita sequência lógica, cuja unidade se obteve pela utilização de um tema musical comum que é diversificado consoante as características de cada parte e as necessidades de desenvolvimento ao longo da própria estrutura da “Origem, Peregrinação, Regresso”, I parte de “O Canto e as Armas”
Neste trabalho, queremos referir a ajuda preciosa nos acompanhamentos, do talento do Rui Pato, um dos principais obreiros de todo o movimento de recriação, iniciado nos últimos anos e lançado pelo virtuosismo indesmentível e espantosa capacidade criadora – e isto, sem esquecer os antecedentes contributos que o possibilitaram – do seu primeiro representante.
Além disso, o Rui Pato, é pelas circunstâncias da sua vida actual, um símbolo daqueles a quem gostaríamos de dedicar, fraternalmente, este modesto trabalho, exprimindo-lhes assim a nossa mais viva camaradagem e solidariedade.
Convirá ainda lembrar,que em toda a “viragem” à realidade, aos problemas concretos da nossa vida colectiva, que consideramos conteúdo e razão de ser deste movimento que cresce em múltiplas formas (com a consequente recusa de quaisquer tendências alienatórias, de tipo musical ou literário), tem importância fundamental, a acção dos estudantes portugueses no seu esforço irreprimível pela valorização da nossa sociedade e também de cada vez mais amplas camadas da população, representando todos o seu suporte social.

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