sábado, março 12, 2005

Bloco de notas (1)

Encontrei há dias, esquecidos no fundo de uma gaveta, uns blocos de notas, com o primeiro a indicar a data de 1979. São pequenos momentos da vivência diária, relacionados com a guitarra de Coimbra.
Faço aqui um parêntesis para dizer que, após um interregno de quase dez anos sem tocar guitarra, teria então recomeçado havia pouco mais de dois anos. Andava, pois, num período de reaprendizagem e com uma grande incerteza. Nesse interregno dediquei-me à guitarra clássica (mais tarde direi por quê) e já tocava algumas peças interessantes
O que me fez então deixar a guitarra clássica? Logicamente a minha vida profissional. Sendo professor do ensino secundário, tive um dia que iniciar o Estágio Pedagógico. Foi no ano lectivo de 1973/74. É claro que, com todo aquele stress e carga de trabalho extra, deixei a guitarra. Foi um ano que considero perdido em todos os aspectos. No ano seguinte, acomodado que estava a não dedilhar qualquer instrumento, assim continuei. Comecei a dar explicações de Física e de Química, tornando-me um senhor burguês. A guitarra continuou parada mais um ano.
Mas um dia os neurónios começaram outra vez a trabalhar e decidi recomeçar onde tinha parado. Foi com grande entusiasmo que me agarrei à viola, na esperança de, rapidamente, atingir o patamar em que já estivera e avançar depois até onde fosse humanamente possível. Sabia que nunca poderia ser um virtuoso, pois a idade com que comecei já não o permitia.
Mas sofri a maior das desilusões. Cheguei a uma altura em que não conseguia avançar mais. A mão direita negava-se a obedecer-me, talvez devido a grande ansiedade e pressa em obter resultados práticos.. Bem me esforçava, mas de nada servia. Acabei por desistir e assim estive mais um ano sem dedilhar qualquer instrumento. A viola num canto e a guitarra dentro da caixa no cimo de um armário onde repousava merecidamente havia já quase uma dezena de anos.
Acontece então o inesperado. O senhor Valentim , guitarrista numa casa de Fados de Lisboa e morando em Almada onde eu estava a residir, foi a minha casa propor-me a compra da guitarra. Lá fui ao armário, sacudi o pó da caixa abri-a e eis novamente na minha frente uma linda guitarra, bem conservada, mas sem me causar qualquer tipo de emoção. Para mim já não significava nada. Era um objecto inútil que ali tinha, que nem sequer estava a servir de adorno.
Para complementar este pensamento, basta referir o seguinte: Um dia vou a um concerto do Carlos Paredes no Teatro Maria Matos, em Lisboa; na primeira parte tocava guitarra – peças do século dezanove – e na segunda viola, peças dele. Vim de lá desiludido com o som da guitarra. Aquilo devia ter sido tudo tocado em viola. A guitarra soava-me mal. Era o efeito de nos últimos anos me ter embrenhado a fundo no estudo e audição de peças em guitarra clássica. Estudei com grandes mestres, como Piñero Nagy, Xavier Hinojosa e Raúl Sanchez. Ainda tive lições de harmonia com Francine Benoit mas, confesso, de nada me vieram a servir. Não foi por incompetência da professora que era belíssima, mas pelo facto de eu não saber tocar piano. As aulas eram dadas à base deste e metade do que dizia e fazia, não conseguia captar.
Digo então ao senhor Valentim: muito bem, eu vendo-lha. Quanto me dá por ela? Resposta: ela vale entre cinco a seis contos!
Levei um baque. Seis contos! A guitarra tinha-me custado três, no Cacem, na oficina de Gilberto Grácio. Por esse facto, pouco mais que isso estaria à espera de ouvir. Já estão a reparar que para negócios sou uma lástima! Fiquei de pé atrás. Tanto, penso eu! Será que vale ainda mais? É que se me tem oferecido pouco mais de três mil, tinha-lha posto logo nas mãos. Resolvo então dizer que ia pensar. Entretanto a minha mulher Isabel que entretanto chega da escola, também foi peremptória: não vendes a guitarra!
Os dias passavam e um turbilhão de imagens assaltava-me o espírito e a guitarra lá andava a girar, estonteante, a tentar-me novamente até que não resisto e resolvo pegar novamente nela. O mais difícil já eu tinha feito; tirá-la da caixa.
Recomeço a dedilhar, primeiro a medo, mas pouco a pouco me convenci que estava a caminhar na direcção correcta. Já não vendi o instrumento, com muita pena do senhor Valentim. Isto passou-se em 1976...Por hoje fico por aqui. Com estas considerações acabei por não entrar propriamente nos ditos blocos. Fica para o Bloco de Notas (2).

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